Sem vender seus produtos, caingangues instalados próximos à Rodoviária não têm como voltar para casa
Sábado o país lembrou o Dia do Índio. Em Santa Maria, os dois grupos indígenas instalados na cidade para a comercialização dos produtos artesanais que fabricam, passaram o dia aguardando a presença de pessoas da comunidade. A tribo de guarani fixada no Arenal (na saída para São Sepé) recebeu a visita de uma turma da escola Euclides da Cunha. Religiosos e representantes de entidades também estiveram no local, inclusive diretores da secretaria de Assistência Social, Direitos Humanos e Cidadania percorreram o acampamento para verificar as condições de vida desses povos que estão de passagem pela cidade. Já o grupo de caingangues da rua Pedro Santini (próximo a Estação Rodoviária) acolheu um ou outro munícipe que ofereceu ajuda às oito famílias que ali vivem desde a segunda quinzena de março. O comerciário Rodrigo Severo, 29 anos, foi um dos santa-marienses que visitou a tribo levando alimentos não perecíveis. Ele a esposa Carla Camargo Neto, 23, se comoveram com a situação dos índios e mobilizaram outros amigos ao mesmo gesto.
“Meu esposo trabalha próximo ao acampamento deles. Presenciou o esforço para vender seus produtos que infelizmente não saíram tanto este ano. Entendemos que sem isso, não há como sobreviver na cidade e oferecemos apoio”, comenta Carla que é promotora de vendas na cidade.
O grupo visitado reside na Reserva Indígena da Serrinha (na Aldeia do Alto Recreio, município de Ronda Alta/RS). Como sobrevivem da caça, da pesca e do plantio de pequenas culturas, saem de suas casas algumas vezes no ano para venderem produtos artesanais que garantem a compra de roupas e utensílios.
Domingos Cristão, 42, ou Pénî (que na linguagem caingangue quer dizer tartaruga), é um dos índios mais velhos do grupo instalado na Pedro Santini. Ele conta que as oito famílias são aparentadas, composta de irmãos e primos de uma mesma árvore genealógica.
“Na aldeia moramos num total de 1000 famílias. A minha origem é da reserva de Tenente Portela. Meus pais e avós, nasceram ali. Mas, com os anos percebemos que a vida estava melhor na Serrinha, onde vivo com minha esposa e meus cinco filhos há seis anos”, conta. Domingos acabou incentivando outros familiares a fazerem o mesmo percurso.
A esposa Cleusa Salles, 44, que está grávida de sete meses, acabou trazendo a irmã, Vanessa Pinto, 26, e o cunhado Ivo Cipriano, 24, que este ano comemoram três anos de vida na Serrinha.
Todos os anos, especialmente na época que antecede o inverno, os homens da etnia caingangue reúnem-se para as definições sobre a produção e quantidade das peças artesanais, bem como os locais do Estado onde procurarão comercialização. Depois das decisões tomadas, os líderes do grupo procuram a direção da escola onde os filhos estão matriculados e pedem autorização para interromper a freqüência escolar por um período médio de 20 dias.
“Nossa cultura valoriza o convívio com nossos filhos, especialmente os pequenos. Há também, a necessidade de que eles nos acompanhem para aprender sobre a lida nos momentos de reposição de vestuário e de comida”, explica Ivo, cujo nome caingangue é Katui (árvore que não se quebra).
Ele lembra que os índios que vivem nas reservas não possuem nenhum tipo de trabalho remunerado. Isto é, não têm contato com dinheiro - moeda necessária para aquisição de produtos da cidade. “Nossas terras não são como as dos nossos antepassados. Imensidões de áreas com diversidade de plantas e de animais. Não temos mais como produzir roupas, por exemplo. Nem mesmo objetos que serviam para uso doméstico. O jeito é comercializar os produtos que confeccionamos”, justifica.
O dinheiro ajuda ainda para a compra do uniforme das crianças em período escolar e materiais que as mesmas utilizam na escola.
“Todo índio reconhece que foi com o estudo que não perdemos o resto das nossas terras. Antes, ninguém entendia nada e simplesmente os brancos foram ocupando área por área até nos encurralarem em uma terrinha. Agora que sabemos do nosso direito, exigimos o que nos pertence. Por isso, nossas crianças continuam estudando. Não queremos que percam o que lutamos para conseguir”, desabafa Domingos Cristão.
Saudade de casa
Vanessa Pinto ou Dáte (nome de batismo) comentou à reportagem a tristeza de passar o Dia do Índio (festa conhecida entre os caingangues como Kainhaj Curoj) longe da reserva.
“Não estávamos com a família completa. Não dançamos nem comemos os alimentos tradicionais”, lamenta.
A esperança estava voltada às famílias santa-marienses que também não apareceram no acampamento. “A gente tem período certo para ficar longe de casa. Como não conseguimos vender os cestos e outros objetos que produzimos, não conseguimos ir embora e nem mesmo sobreviver direito”, confidencia.
A índia que é mãe de duas meninas, Andressa de 4 anos e Andrieli, de 2 anos, deixou o filho mais velho, de 13 anos, na Aldeia. “Prometi que levaria roupas e comida, mas nossa situação não é nada boa”, conta Vanessa que essa noite deixa Santa Maria.
No domingo uma das oito famílias também partiram. Segundo a índia, o cacique que comanda o grupo da Reserva Serrinha, orientou que fossem juntando recursos para aos poucos enviarem mulheres e crianças. “Temos duas grávidas no acampamento. Várias crianças de colo e já não há fraldas nem cobertores. Na sexta-feira, um dos nossos líderes apontou escassez de comida”, relata.
O dinheiro com a venda de um produto ou outro, acaba sendo direcionado para a compra de um produto que falta. Com isso, juntar dinheiro para pagar as passagens de ônibus fica quase impossível.
“Cada passagem custa R$46. Mas, somos em oito adultos e 22 crianças. Ainda temos 40 cestos para vender (comercializados em média a R$15) e as palestras que pretendíamos dar na semana do índio não aconteceram”, explica Ivo Cipriano, esposo de Vanessa. Ele deverá ficar com a filha mais velha do casal enquanto a mulher volta para a casa, com a menina ainda de colo. Ivo pretende continuar sua peregrinação pela cidade em busca de escolas que aceitem sua ministração sobre a cultura indígena.
“Nossas palestras não são cobradas. Contamos apenas com a ajuda espontânea dos alunos e professores. Falamos sobre nossa origem, o artesanato, nossas crenças, as mudanças com o passar dos anos e as coisas que ainda mantemos mesmo com o contato com o homem branco”, resume.
Sobre o grupo que deverá continuar na Pedro Santini, Ivo apela para a comunidade santa-mariense. Segundo ele, a prefeitura ou particulares podem ajudar com a doação de alimentos, roupas e cobertores. “Se alguém tiver condição de dispor de um veículo para nos levar para casa, seria muito válido. Não teria nem como agradecer”, comenta.
Índia releva como é o dia-a-dia na cidade
Terezinha Leopoldina, uma simpática senhora de 30 anos, também moradora da Reserva Indígena da Serrinha, é mãe de cinco filhos, destes o mais novo do grupo que está de passagem por Santa Maria. O pequeno Iudi, de 6 meses, foi batizado na língua caingangue como Pósi (que significa pedra).
Ela é alfabetizada e uma das poucas pessoas do grupo a freqüentar bancos escolares. Esposa de José Cipriano, 35, revela como os indígenas vivem na cidade.
“Ficamos perdidos aqui com tantos carros e o jeito que as cidades são estruturadas lembram prisões. Na reserva, somos livres e não precisamos pedir permissão para conseguir água nem fazer fogueira”, relata.
Desde que chegaram no município, o grupo de kaingang contou com a colaboração de serventes que trabalham em uma área em construção nas proximidades da Estação Rodoviária. Eles cedem água para o consumo e também para processos de higienização.
Durante o dia, os índios com idade superior a 5 anos, preparam a taquara e o cipó para a confecção dos produtos artesanais. Geralmente, cestos, peneiras, vasos, arcos e flechas.
Quando há estoque no acampamento, o mais velho do grupo divide as famílias que deverão sair para a venda. As crianças também ajudam.
“Os homens procuram eventos que possam participar, escolas para palestrar. E são eles que fazem o serviço mais difícil com a matéria prima utilizada para a confecção das peças. Na maioria das vezes, as mulheres saem para vender e como é de costume, os filhos sempre estão juntos”, conta.
Terezinha lamenta a perda de cestos confeccionados na chegada do grupo ainda no mês de março. “Com as chuvas, muitos produtos molharam e tiveram de ser descartados. Tivemos prejuízo com essa viagem. Não vendemos quase nada. Agora, queremos voltar para casa e não temos como. Lá há rios para o nosso banho, a lenha e a carne é carne de verdade”, destaca ela.
“Não gosto muito da carne daqui. Ela é velha. Lá nós matamos os animais e comemos logo em seguida”, acrescenta.
Sobre as palestras
Ivo Cipriano e demais companheiros da etnia caingangue disponibiliza para a rede educacional de Santa Maria palestras que trazem enfoques e abordagens como os significados da arte indígena, a função da língua como forma de manifestação cultural e um retrato da vida quotidiana dos caingangues.
Informações pelo telefone (55) 8139-3477 ou com a sede do jornal A Razão, (55) 3220-2100.
(Por Elen Almeidah, A Razão, 22/04/2008)