Especialistas expõem opiniões divergentes em entrevistas ao G1. Eles avaliam se o Brasil tem responsabilidade na anunciada crise mundial de alimentos
Assunto principal na agenda mundial das últimas semanas, a polêmica dos biocombustíveis e da crise mundial dos alimentos tem o Brasil no centro do debate. A principal questão é: o Brasil é ou não um vilão no cenário de escassez de alimentos? O G1 ouviu dois especialistas na área de agricultura com opiniões dissonantes sobre o tema.
Para o economista Ricardo Abramovay, professor da USP, ao estimular a pesquisa e a produção do etanol, o Brasil não contribui para a inflação dos preços dos alimentos no mundo. "Não há escassez ou ameaça ao aumento da produção agropecuária brasileira em virtude da expansão dos biocombustíveis", afirma.
Para o economista Sérgio Schlesinger, o Brasil tem responsabilidade direta na crise, e, se o atual cenário dos biocombustíveis se mantiver pela próxima década, o futuro estará comprometido. "O pior cenário é justamente continuar no caminho pelo qual as coisas estão indo."
O Brasil não tem responsabilidade pelo aumento dos preços alimentares, não há escassez ou ameaça ao aumento da produção agropecuária brasileira em virtude da expansão dos biocombustíveis", afirma Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP).
Pós-doutor pela Fondation Nationale des Sciences Politiques, de Paris, e membro titular do Conselho Científico da Maison des Sciences de l'Homme de Montpellier, ele avalia que, se há perdas causadas pelo cultivo de cana-de-açúcar em larga escala para a produção de biocombustíveis, elas são ambientais.
Em entrevista ao G1, Abramovay destacou a importância do desenvolvimento de novas tecnologias e de maneiras inteligentes de produzir os biocombustíveis e fez um alerta sobre a devastação do cerrado. Leia os principais trechos:
G1 - Qual é o papel do Brasil na crise dos alimentos? Ao incentivar a produção de biocombustíveis, o país contribui para a inflação mundial do preço dos alimentos? Ricardo Abramovay - Não, não contribui. Existem duas fontes importantes de biocombustíveis no Brasil. A primeira, a que realmente tem peso em termos nacionais, é o etanol. O etanol é cultivado em uma superfície de 6 milhões ou 7 milhões de hectares, em um país cuja área de lavoura está em torno de 70 milhões de hectares. A segunda é o biodiesel feito de soja.
O Brasil não é responsável pelo aumento dos preços alimentares, não há escassez ou ameaça ao aumento da produção agropecuária brasileira em virtude da expansão dos biocombustíveis.
O que está acontecendo com os preços brasileiros é resultado do que ocorre com os preços alimentares mundiais, estes sim fortemente influenciados por opções tecnológicas - tanto dos EUA, quanto da Europa.
Se tudo der certo para o etanol brasileiro, o horizonte é de passar de 6 milhões, 7 milhões de hoje para 13 milhões de hectares em torno de 2020.
G1 - Isso não prejudica a agricultura? Abramovay - Não. A ameaça dessa expansão não é ao abastecimento, mas sim ao meio ambiente. E não sobre a Amazônia. O problema é o cerrado, um bioma fundamental no equilíbrio, na oferta de água, nas bacias hidrográficas subterrâneas. É preciso planejar a ocupação do cerrado de maneira estratégica.
G1 - Como é a ocupação no cerrado? Abramovay - No PAC, há a previsão de construção de um alcoolduto de 1.150 km, ligando estados de Goiás a São Paulo. Por aí, vão ser exportados 3,5 bilhões de litros por ano a partir de 2011, e este alcoolduto vai estimular a construção de 40 usinas na sua rota em Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná. Cada uma dessas usinas são extensões contínuas de 20 mil, 40 mil hectares, num total de mais de um milhão de hectares de cultivo de substituição.
G1 - Mas, nesse cenário, já começa a ficar mais preocupante? Abramovay - Do ponto de vista ambiental, sim. Não dá pra deixar de levar em conta que é uma cultura energeticamente eficiente. É uma cultura que apresenta um produto melhor que os de origem fóssil. Mas será que a reserva legal de 50% no cerrado está sendo respeitada?
O horizonte do setor é ampliar a produção da cana de açúcar das 425 milhões de toneladas em 2006 e 2007 para 727 milhões de toneladas entre 2007 e 2013, um aumento de 71%. A área não será aumentada proporcionalmente, porque há expectativa de aumento da produtividade.
Em compensação, em termos de condição de trabalho é uma tragédia. Mas essa tragédia será suprimida porque o setor, até 2014, em São Paulo, não vai ter mais colheita manual.
G1 - Se é problemática a expansão da cana porque ela invade o cerrado, por onde ela poderia crescer? Abramovay - Ela poderá crescer no cerrado caso esse crescimento seja rigorosamente acompanhado do cumprimento das leis ambientais. Talvez não seja o caso de todo mundo virar produtor orgânico.
G1 - Qual o melhor e o pior cenário para a próxima década no que diz respeito ao meio ambiente? Abramovay - O melhor cenário envolve o fim do motor de explosão e o início da produção massiva de transporte individual baseado em eletricidade, além da redução do uso do automóvel.
O pior cenário é que aquele em que essas inovações tecnológicas, por razões muito provavelmente ligadas a alguns interesses - é difícil analisar quem está a favor e está contra -, não sejam utilizadas.
G1 - Como o sr. Avalia a declaração de que os biocombustíveis são um crime contra a humanidade? Abramovay - Há um exagero nisso. Dizer que é crime contra a humanidade me parece um pouco demagógico, assim como me parece ingênuo pedir que os EUA parem de usar milho e comecem a importar nosso etanol.
G1 - Dá para dizer qual é o causador da crise dos alimentos? Há um único fator para isso? Abramovay - Há alguns fatores. O aumento da renda dos países emergentes é um deles. Em 1975, um chinês consumia em média 20 quilos de alimento por ano. Hoje ele consome 50 quilos. Quem mais pesa sobre os recursos mundiais, no entanto, não são os mais pobres. Um habitante dos EUA, da Europa, do Japão, tem um consumo 32 vezes maior que um habitante da África negra.
O segundo fator é a dependência entre petróleo e agricultura. A agricultura depende do petróleo. Se ele fica mais caro, a produção agrícola fica mais cara também. Um terceiro fator é a financeirização dos mercados mundiais. Os preços agrícolas internacionais variam não só em função de oferta e procura, mas das commodities também.
E quarto, claro, é muito importante a questão dos biocombustíveis. Eles, hoje, são elemento de pressão sobre os preços, mas não os que são produzidos no Brasil. A opção de dedicar parte importante da produção de grãos, nos EUA, e, no caso europeu, de beterraba, para o etanol, exerce uma pressão sobre os preços internacionais. E o patamar passa a ser o preço de petróleo.
G1 - O Brasil pode ser beneficiado nesse sentido pelas recentes descobertas de petróleo? Ou isso nem pode ser ainda discutido? Abramovay - Pode. Ao mesmo tempo é muito perigoso. O desafio da humanidade nos próximos anos é descobrir como se descarboniza a matriz energética da civilização contemporânea. E essas descobertas podem sinalizar para a sociedade que isso não é tão importante.
G1,
FGV, 22/04/2008)