Valor é o mais alto já desembolsado pelo órgão por um único pedaço de terra
Área alvo de disputa judicial, em Rondônia, pertencia a um casal de pecuarista que vendeu parte de seus direitos a dois bancos
A cinco horas de Porto Velho (RO), escondido num ponto da floresta amazônica acessível por meio de trilhas, está um pedaço de terra que nunca produziu nada legalmente e cuja indenização pela desapropriação custará R$ 371,5 milhões aos cofres públicos.
Trata-se do mais alto valor a ser desembolsado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) por um único pedaço de terra. Ele equivale a um terço da quantia reservada pelo governo no ano passado para a aquisição de terras visando a reforma agrária.
A indenização resulta de uma disputa judicial de duas décadas entre a União e um casal de pecuaristas, num processo marcado por suspeitas de especulação e falsificação de documentos, além de trapalhadas topográficas oficiais.
Na área, de 17,2 mil hectares, chamada de Seringais Serra e Repartimento e encravada no município de Cujubim, o cenário de mata nativa dos anos 80 dá lugar hoje a uma pastagem a se perder de vista. Lá, invasores se dizem criadores de gado.
O pagamento da primeira das dez parcelas da indenização foi agendado pela Justiça Federal de Rondônia para as próximas semanas. Antes disso, porém, o casal de pecuaristas vendeu parte de seus direitos no processo, o que lhe proporcionou milhões de reais antecipados e criou um grupo paralelo de interessados na ação. Entre eles estão dois bancos, o suíço UBS Pactual e o alemão Deutsche Bank, o ex-procurador-geral da República Aristides Junqueira, uma universidade de Cuiabá e duas lojas de tintas, uma em Rondonópolis (MT) e outra em Presidente Prudente (SP).
Os principais beneficiados com a conclusão do processo foram Wilson e Carmela Telles, casal de 76 anos e que, em meio ao processo, trocou Presidente Prudente por Londrina (PR).
Em troca dos R$ 246,2 milhões a que tem direito no processo, o casal já recebeu dos bancos o montante de R$ 142,6 milhões. "O dinheiro vai ficar para os meus seis filhos", disse Wilson à Folha, por telefone.
Em setembro de 1988, o casal entrou na Justiça Federal de Rondônia com uma "ação ordinária de indenização" contra o então Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário.
Eles alegaram ser os legítimos proprietários da Seringais Serra e Repartimento, usada seis anos antes pelo presidente João Baptista Figueiredo como parte de um projeto de assentamento para antigos seringueiros, conhecidos como os "soldados da borracha".
O acesso complicado, apenas por barco nos anos 80, inviabilizou o projeto. Os poucos seringueiros que se instalaram lá logo abandonaram a área, comprada pelos Telles em 1986, quatro anos após a criação do projeto de assentamento.
"Esse caso é emblemático para o Incra, não apenas pelo valor mas também por saber que é uma área que foi comprada exclusivamente para fins de especulação. Porque o proprietário que agora está sendo indenizado jamais produziu qualquer coisa nessa área", disse Gilda Diniz dos Santos, procuradora-geral do Incra.
Nesses 20 anos, o Incra acumulou derrotas no TRF (Tribunal Regional Federal), no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e no STF (Supremo Tribunal Federal) e, devido à morosidade judicial, viu a criação de dois fatores extras no processo, ambos desfavoráveis à União.
O primeiro deles foi o acúmulo dos juros compensatórios. Hoje, os juros (R$ 279,1 milhões) representam 75% da indenização. O segundo foi o fato de o casal, em troca de dinheiro adiantado, ter cedido a terceiros parte de seus direitos.
"[A decisão da Justiça] foi a coisa mais lícita que poderia ter acontecido. Foi mais do que isso [justiça]. Uma questão de Deus lá em cima. Houve realmente o esbulho, fiquei sem nada, tomaram tudo o que eu tinha", declarou Wilson Telles.
Os recursos do Incra e do casal Telles se sucederam até o início deste ano, quando, vencidas todas as etapas do processo, a União depositou em juízo o valor referente à primeira das dez parcelas da indenização.
A Justiça tem até dezembro para autorizar o pagamento.
(Eduardo Scolese, Folha de São Paulo, 22/04/2008)