Sempre foi um cenário "e se" perturbador para os pesquisadores climáticos: hidratos gasosos armazenados no leito marítimo do Ártico -massas duras de gelo e metano, preservados por temperaturas congelantes e alta pressão- poderiam se tornar instáveis e liberar quantidades imensas de metano na atmosfera. Como o metano é um potente gás do efeito estufa, mais preocupante do que o dióxido de carbono, o resultado seria uma aceleração drástica do aquecimento global. Até agora esta idéia era basicamente acadêmica; os cientistas alertavam que esta coisa "poderia" acontecer. Agora parece mais provável que "acontecerá".
Cientistas polares russos têm forte evidência de que os primeiros estágios do derretimento estão em andamento. Eles estudaram a maior plataforma marítima do mundo, além da costa da Sibéria, onde a plataforma continental asiática se estende por uma área submarina com seis vezes o tamanho da Alemanha, antes de cair gentilmente no Oceano Ártico. Os cientistas estão apresentando seus dados a partir desta região remota, pouco investigada, na conferência anual da União Européia de Geociências, que ocorre nesta semana em Viena.
No leito de permafrost (gelo permanente) do mar de 200 metros de profundidade, depósitos enormes de hidratos gasosos se encontram adormecidos em poderosas camadas congeladas de sedimentos. O conteúdo de carbono da mistura de gelo e metano aqui é estimado em 540 bilhões de toneladas. "Este hidrato submarino era considerado estável até agora", disse a biogeoquímica russa Natalia Shakhova, atualmente uma cientista convidada na Universidade do Alasca, em Fairbanks, que também é membro do Instituto de Geografia do Pacífico na Academia de Ciências Russa em Vladivostok.
O permafrost se tornou poroso, disse Shakhova, e a plataforma marítima já se tornou uma "fonte de metano para a atmosfera". Os cientistas russos estimaram o que poderia acontecer quando este selo do permafrost siberiano degelasse completamente e todo o gás armazenado escapasse. Eles acreditam que o conteúdo de metano na atmosfera do planeta aumentaria vinte vezes. "O resultado seria um aquecimento global catastrófico", disseram os cientistas. O potencial do metano como gás do efeito estufa é 20 vezes o do dióxido de carbono, como medido pelos efeitos de uma única molécula.
Shakhova e seus colegas reuniram evidência da perda de rigor na superfície congelada do mar em uma campanha de medição durante o verão siberiano. A água do mar provou estar "altamente saturada com metano soluto", informou Shakhova. No ar sobre o mar, o conteúdo de gás do efeito estufa foi medido em alguns lugares como cinco vezes os valores normais. "Em vôos de helicóptero sobre o delta do Rio Lena, concentrações maiores de metano foram medidas em altitudes de até 1.800 metros", ela disse.
O tique-taque da bomba de metano climática também ocorre em terra: há poucos anos pesquisadores notaram maiores concentrações de metano no norte da Sibéria. O permafrost siberiano é conhecido como um dos pontos cruciais para o clima do planeta, já que o potente gás do efeito estufa se desenvolve sempre que microorganismos decompõem as massas imensas de material orgânico de eras mais quentes que estão congeladas aqui há milhares de anos.
"Um alerta para a ciência"
Dados de perfuração marítima na região, estudados por especialistas no Instituto Alfred Wegener para Pesquisa Polar e Marítima (AWI) também sugerem que a situação se tornou crítica. Os resultados do AWI mostram que o permafrost na plataforma está perigosamente próximo do degelo. A três a 12 quilômetros da costa, a temperatura do sedimento marítimo era de -1ºC a 1,5 ºC, pouco abaixo do congelamento. Mas a temperatura do permafrost em terra era de -12,4ºC. "Esta é uma diferença drástica e a melhor prova de uma condição térmica crítica do permafrost submarino", disse Shakhova.
Paul Overduin, um geofísico do AWI, concordou "Ela está certa. É bem mais provável que as mudanças ocorram na plataforma marítima do que em terra."
A mudança climática poderia dar um empurrão adicional nesta tendência. "Se o gelo do Mar Ártico continuar recuando e a plataforma se tornar livre de gelo por períodos prolongados, então a água nestas áreas se tornará mais quente", disse Overduin. Isto poderia levar a uma situação em que a temperatura do sedimento marítimo subiria acima do ponto de congelamento, o que degelaria o permafrost.
"Nós não temos nenhum dado a respeito -estas são apenas suspeitas", disse o cientista canadense. Natalia Shakhova também não soube responder se devemos esperar uma emissão gradual de gás ou uma liberação abrupta de grandes quantidades de metano. "Ninguém pode dizer no momento se isto levará anos, décadas ou centenas de anos", ela disse. Mas não se podem descartar emissões repentinas de metano. Elas poderiam ocorrer "a qualquer momento".
Mas uma coisa é clara: o degelo do leito marítimo do Ártico criará "novas fontes potenciais de metano (...) com as quais ninguém contava até agora", disse Laurence Smith, um professor de geografia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Smith está pesquisando as zonas congeladas do Pólo Norte e espera que um degelo do permafrost "fornecerá combustível para motores a metano".
O primeiro foguete com propulsão a metano foi testado pela Nasa (Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos) em 2007, e o metano do estrume tem sido coletado como "biogás" para aquecimento e fornecimento de energia elétrica para lares em cidades experimentais alemãs.
De qualquer forma, a equipe que participou do estudo siberiano instalou várias sondas no Mar Laptev, uma parte central da ampla plataforma marítima siberiana. Estas sondas estão medindo a temperatura na parte superior do permafrost submarino. Overduin deseja recolher as sondas em agosto. Então, pela primeira vez, os cientistas terão acesso a um ano inteiro de dados sobre as condições do leito marítimo.
Por sua vez, Shakhova acha que os pesquisadores deveriam fazer bem mais. Ela disse que muito pouco se sabe sobre a frágil plataforma de sedimentos e o metano que ela armazena, que poderia ser explosivo para o meio ambiente. "Na verdade isto é um alerta para a ciência", ela disse.
(Por Volker Mrasek, Der Spiegel, tradução de George El Khouri Andolfato, UOL, 18/04/2008)