François Houtart, sacerdote católico de 83 anos, é, há meio século, um dos pilares da análise das sociedades latino-americanas. Seus estudos estabeleceram ali a base da sociologia da religião e fundamentaram a Teologia da Libertação. Como sociólogo inscrito na metodologia marxista, é, no presente, um dos líderes intelectuais do Fórum Social Mundial.
Houtart (Bruxelas, 1925) se formou inicialmente no Seminário de Malinas (Bruxelas) e é doutor em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidade Católica de Lovaina, da qual é professor emérito. Também é diplomado pelo Instituto Superior Internacional de Urbanismo Aplicado (Bruxelas). Aprofundou seus estudos na Universidade de Chicago e sua tese de doutorado tratou sobre Sociologia do Budismo no Sri Lanka. É fundador do Centro Tricontinental (Cetri) da Universidade Católica de Lovaina e diretor da Revista Alternatives Sud.
Participou, na Espanha, da jornada organizada pela área municipal de Cooperação e Solidariedade Internacional - conduzida pela IU - sobre biocombustíveis, que considera o capítulo mais recente da "lógica capitalista de lucros a curto prazo". Segue a entrevista que Houtart concedeu a Javier Morán e que está publicada no jornal espanhol La Nueva España, 8-04-3008. A tradução é do Cepat.
Muitos sacerdotes europeus e latino-americanos se formaram na Universidade de Lovaina, por que?
Tem faculdades de Filosofia e Teologia bastante conhecidas e é um dos centros católicos mais antigos. Nos anos cinqüenta e sessenta nasce o interesse pelos problemas sociais.
É uma Universidade progressista?
Relativamente, sim. Depende um pouco das faculdades, das pessoas, dos momentos... mas, de modo geral, houve um ambiente aberto e interessante.
Sob suspeita da Santa Sé?
Sim. Ultimamente, com a Faculdade de Medicina, por problemas relacionados à pesquisa sobre a reprodução da vida.
Quando você iniciou seu trabalho na América Latina?
Muito antes de ser professor em Lovaina. Trabalho com a JOC (Juventude Operária Católica) e mantenho contatos com estudantes sacerdotes, principalmente latino-americanos. Desde 1953 trabalhei em quase todos os países latino-americanos, em pesquisa e ensino. De 1958 a 1962, realizei, com uma equipe ou um centro em cada país, um estudo sócio-religioso do continente que foi publicado em 43 volumes.
Sua finalidade?
Terminou um pouco antes do Concílio Vaticano II e o bispo Dom Hélder Câmara, na época vice-presidente da Conferência do Episcopado da América Latina (Celam), me pediu para que fizesse uma síntese do estudo em cem páginas e três línguas, a fim de que fosse distribuído aos bispos no começo do Concílio, para que se dessem conta do que era a realidade latino-americana.
A que conclusões o estudo chegava?
Que a América Latina estava em plena transformação demográfica e social, mas com grandes contradições. A Igreja era ainda, nesse tempo, bastante tradicional e concentrada em setores como a educação ou as cidades. Tinha um aparelho pastoral totalmente desvinculado da realidade. Era necessário repensar a organização pastoral da Igreja e sua presença social frente aos problemas novos introduzidos pelo capitalismo.
Qual foi seu trabalho no Concílio?
Fui perito do Episcopado Latino-americano e, em particular, assessor de Hélder Câmara e de meu bispo, o cardeal Suenens, um dos moderadores do Concílio. Também fui secretário da redação da introdução à Gaudium et Spes, que é o documento sobre a Igreja no mundo contemporâneo
Onde está o Concílio Vaticano II?
Durante o Concílio houve uma reflexão importante e uma orientação de renovação. O Episcopado Latino-americano teve um papel importante nisso, porque tinha liderança. Mas a estrutura fundamental da Igreja não havia mudado, e depois houve todo um período de restauração que vinha de Roma: políticas eclesiásticas de nomeação de bispos, controle das faculdades de Teologia e dos seminários... Na América Latina houve a destruição do dinamismo novo que havia nascido com as comunidades de base e com a Teologia da Libertação. É um fato que custou muito do ponto de vista religioso e humano. Até vidas custou.
Você teve problemas?
Felizmente, eu estava na Faculdade de Ciências Sociais e Econômicas, e não na de Teologia. Mas, várias vezes, a Santa Sé pediu à Universidade para que eu saísse, mas não conseguiram. Em Lovaina somos pagos pelo Estado e tem que se formar uma comissão jurídica para comprovar que houve erros graves, que, no meu caso, não puderam demonstrar. Assim que, em certo sentido, fui defendido pelo Estado contra a Igreja. E também fui protegido pelo meu bispo, Suenens, naquele tempo.
As seitas pentecostais e evangélicas estão ganhando terreno em relação à Igreja católica na América Latina?
Absolutamente. Penso que 30% da população pertencem a esses novos grupos. Devemos entender o que significa isto. Esses grupos respondem a uma necessidade social, psicológica e religiosa, porque estamos diante de sociedades tradicionais destruídas pelo fenômeno urbano. Há um desejo de reconstruir comunidades naturais que foram destruídas pelo modelo econômico neoliberal e, por outro lado, há uma necessidade de sentido da vida. E estes grupos criam novas comunidades e dão um sentido, ainda que equivocado, porque são individualistas; falam de uma salvação individualista que rechaça qualquer compromisso social. Não digo que seja uma resposta totalmente ilusória que esses grupos dão, mas quando se analisa mais a fundo não é uma resposta real. Não há transformação social nem integração de seus seguidores na sociedade.
Momento da Teologia da Libertação?
Os canais de transmissão da Igreja como instituição estão fechados para a Teologia da Libertação, mas isso não significa que não existam. Existe em espaços ecumênicos ou laicos. Leonardo Boff é agora professor na Universidade do Rio, que é uma Universidade laica. Esta teologia ainda vive na realidade concreta de muitos grupos, de muitas comunidades de base. Muitas foram destruídas pelas autoridades religiosas, mas não desapareceram completamente. Há também dioceses onde a autoridade os está apoiando. Todos estes grupos se situam diante de uma realidade fundamental do continente: a destruição que significou o período neoliberal durante os últimos 20 ou 30 anos, com um aumento do número de pobres por força do capitalismo. Isto é uma base de interrogação nova para um pensamento teológico novo. Vemos teologia feminista, teologia indígena, teologia negra... todo um esforço de pensar teologicamente as alternativas para um sistema capitalista destruidor.
O que significa a produção dos biocombustíveis neste marco?
Os agrocombustíveis emitem menos gás de efeito estufa, mas quando se olham todas as condições de sua produção vemos que é uma destruição sistemática da biodiversidade e das florestas, para estender as terras de cultivo, e destruição do solo, pela utilização de fertilizantes e de pesticidas. E uma destruição também das fontes de oxigênio, como a floresta amazônica. Ao mesmo tempo se diz que vamos ganhar por emitir menos CO2, mas se destrói a floresta que absorve esses gases. O balanço ecológico não é necessariamente positivo.
Conseqüências sociais?
Expulsão dos pequenos agricultores, destruição da agricultura camponesa, deslocamento de milhões de pessoas... O novo modelo de agricultura, no qual se inserem os agrocombustíveis, produz monoculturas dominadas pelos grandes fazendeiros ou as multinacionais.
Deve-se interromper a produção de biocombustíveis?
Os custos ecológico e social devem ser levados em conta quando queremos fazer um juízo. Isso não significa uma oposição dogmática aos agrocombustíveis, mas à maneira de produzi-los. A função que eles têm no sistema econômico não é salvar o clima - isso é propaganda -, mas ajudar na reprodução do capital, especialmente no momento de crise econômica do capital produtivo e financeiro. Os dois encontram nos agrocombustíveis uma possibilidade de lucros a curto prazo e assim continuar com um processo de acumulação. Estou, atualmente, preparando um livro sobre isso: Agrocombustíveis, solução climática ou reprodução do capital?.
(Por Javier Morán, Adital, 17/04/2008)