Se em cidades como Santa Maria, em que há um sistema de recolhimento de lixo implementado, o destino dado aos resíduos ainda é um grande problema, imaginem o colapso de um sistema quando não há, sequer, recolhimento. No Haiti, o lixo se acumula onde for solto. Seja nas ruas, seja nas calçadas. Pilhas de dejetos que, sem destino, ocupam as ruas e dividem espaço com a população.
O mesmo lixo acumulado que serve para alimentar os porcos e os cabritos, refeições principais dos haitianos, também atua como canal de proliferação de doenças. Crianças, geralmente nuas ou usando apenas camisetas, brincam no lixo como se estivessem em tapetes. No Haiti, diante da pobreza financeira e da miséria de valores, o lixo foi incorporado à população. Mas, na pequena cidade de Carrefour, a leste da grande Porto Príncipe, o lixo começa, aos poucos, a ter um destino.
Basta chegar à cidade para verificar a diferença. Em Carrefour, que tem cerca de 150 mil habitantes, as ruas são limpas, diferentemente do restante do país. São dezenas de moradores, uniformizados, varrendo as ruas e recolhendo os resíduos que, antes, ficariam acumulados na via. Eles usam máscaras. Trocam o lixo pela dignidade de viver, a partir de agora, em um local limpo.
São homens e mulheres que antes não tinham emprego, nem sequer possibilidade de melhoria de vida, e que agora conquistaram, além de higiene no local em que moram, uma fonte de renda. Eles fazem parte de um projeto piloto no Haiti: o Sant Triyaj Fatra Kafoufey, que, em creole, língua do país, quer dizer, "centro de reciclagem de Carrefour". O projeto foi elaborado em 2004, mas apenas em dezembro de 2007 conseguiu inaugurar seu centro de triagem. A verba veio do programa de Cooperação Sul-Sul, financiado por três países: Índia, Brasil e África do Sul (Ibas).
- Faço questão de esclarecer para eles (haitianos) que o projeto é pago por cidadãos como eles, de outros países, que pagam impostos. É em solidariedade ao povo do Haiti que esse recurso chega aqui - explica a mineira Eliana Nicolini, conselheira técnica responsável pelo projeto de coleta de dejetos sólidos em Carrefour.
O projeto integra o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e, em 2007, foi eleito pelo Conselho das Nações Unidas como o melhor trabalho das Nações Unidas no Haiti. Para o trabalho, foi investido US$ 1,5 milhão.
- Cabe a nós gerar esses recursos com responsabilidade - diz Eliana.
Engenheira civil, mãe de três filhos, Eliana chegou ao Haiti em 2004 e, desde lá, não abriu mão da busca por recursos que viabilizassem o projeto. Depois de Carrefuor, a meta é expandir o projeto para Pétion-Ville.
- O povo haitiano não precisa de esmola. Precisa de oportunidade - afirma Eliana.
Briquete - O material que chega ao centro de triagem é separado de forma manual. O papel, depois de prensado, é transformado em um composto chamado de briquete. Para cada briquete, são usados 25 quilos de papel. A meta do projeto é conseguir compradores para substituir o carvão pelo material de papel como combustível. Uma forma de pensar na recuperação ambiental do Haiti, já que o desmatamento é alto.
- A conscientização faz parte do projeto. Temos problemas graves, mas os resultados aparecerão a médio e longo prazo - diz o embaixador do Brasil no Haiti, Igor Kipman.
O projeto em números
- 385 pessoas atuam no projeto de reciclagem
- Cada trabalhador recebe um salário de cerca de US$ 75 a cada dois meses
- São 50 pontos de coleta de lixo em Carrefour
- 2 caminhões fazem o recolhimento do lixo
- As vassouras usadas para limpar as ruas são feitas no próprio centro de triagem de lixo. Por dia, chegam a ser produzidas 25 vassouras, de folhas secas. O cabos das vassouras são reaproveitados
- Carrefour, tal como Cité Soleil - a maior favela das Américas - , era considerada um dos pontos mais calamitosos do Haiti quando as tropas brasileiras chegaram ao país, em 2004
- O local onde hoje funciona o centro de reciclagem precisou ser implodido. Uma grande pedra impedia as instalações no local. A dinamite usada na implosão foi importada da República Dominicana
(Por Iara Lemos, Diário de Santa Maria, 17/04/2008)