A Avaliação Internacional do Conhecimento, da Ciência e da Tecnologia no Desenvolvimento Agrícola (IAASTD), apresentada ontem nesta cidade sul-africana, propõe reinventar a agricultura para alimentar o mundo. O estudo, conhecido enquanto se tornam evidentes os efeitos da mudança climática e da crise alimentar em numerosos países, está dedicado a enfrentar os múltiplos desafios que implicam alimentar a crescente população mundial de maneira sustentável. Para a avaliação se recorreu ao conhecimento e à experiência de aproximadamente 400 cientistas e outros especialistas.
Do processo participaram delegados de nações do Norte industrializado e do Sul em desenvolvimento, organizações da sociedade civil e representantes do setor privado. Além disso, os cientistas integraram conhecimentos e práticas tradicionais em uma primeira tentativa de reunir todos os atores envolvidos na temática para examinar a questão da segurança alimentar. Os participantes realizaram cinco avaliações regionais e um informe adicional de síntese de 110 páginas.
Entre as 22 conclusões às quais chegou a avaliação, que pauta uma nova direção para o desenvolvimento futuro da agricultura, a IAASTD diz que o enfoque dominante, industrial em grande escala, não é sustentável, pois depende do petróleo barato, tem efeitos negativos sobre o ecossistema e agrava a crescente escassez de água. Por outro lado, devem ser reconsiderados monoculturas e favorecer os ecossistemas que combinam a produção de alimentos com impedir a contaminação do recurso hídrico e a preservação da biodiversidade, ao mesmo tempo em que melhora o sustento dos pobres.
“Tendo em conta os desafios futuros, foi muito claro para todos que continuar fazendo o mesmo não é uma opção”, disse à IPS Hans Herren, um dos presidentes da IAASTD. O especialista participou do plenário inter-governamental realizado de 7 a 12 deste mês em Johannesburgo para revisar as conclusões da avaliação que será apresentada hoje. Os fornecimentos mundiais de alimentos são adequados. Mas, 850 milhões de pessoas continuam com fome e sofrem desnutrição porque não tem acesso – ou dinheiro – aos recursos alimentícios necessários, acrescentou Herren, também presidente da organização Millennium Institute, com sede em Arlington, nos Estados Unidos. Concentrar-se em melhorar o rendimento dos cultivos não solucionará o problema. “Precisamos melhorar a qualidade dos alimentos nos lugares certos”, ressaltou.
O rendimento não pode ser o único fator para medir o sucesso da exploração agrícola, destacou o representante do Greenpeace Internacional, Jan van Aken. Deve-se considerar até que ponto a agricultura promove as necessidades nutricionais, acrescentou. Pode-se cultivar 70 espécies de verduras, frutas e ervas em um pedaço de terra de meio hectare na Tailândia, o que proporciona uma alimentação muito melhor e para mais pessoas do que se a mesma superfície fosse destinada ao cultivo de arroz de alto rendimento. A avaliação diz, ainda, que os especialistas em agronomia e tecnologia não só devem trabalhar com agricultores locais como, também, com economistas, especialistas em assuntos sociais, de saúde, governos e da sociedade civil.
“Esses problemas não podem ser solucionados apenas nos ministérios de agricultura”, disse Judi Wakhungu, outra presidente do IAASTD e também diretora-executiva do Centro Africano de Estudos Tecnológicos, com sede em Nairóbi. “É necessária uma liderança para mudar as coisas”, disse, ao reconhecer que a maioria dos governos, centros de estudos e outros atores ligados ao setor agrícola não estão acostumados ao trabalho conjunto e costuma competir por financiamento.
Houve desacordos no plenário pelos sempre polêmicos assuntos de comércio e biotecnologia. De fato, um longo e tenso debate quase acaba com o encontro. Representantes de Washington e Canberra objetaram a redação do informe de síntese, que questiona se o uso de cultivos alimentícios geneticamente modificados é saudável e seguro. Esse assunto, junto a outros desafios em matéria comercial, esteve no centro de intensos debates nos três anos que durou o processo de avaliação. Os documentos finais refletem evidências científicas.
O informe afirma que a biotecnologia tem um papel a desempenhar no futuro, mas continua sendo muito discutida. Como a informação sobre os cultivos geneticamente modificados é confusa, o documento acrescenta que as patentes causam problemas para agricultores e pesquisadores. Syngenta e outras grandes companhias de pesticidas e biotecnologia abandonaram o processo de avaliação no ano passado. O plenário superou o impasse quando os dois países concordaram em colocar uma nota ao final da página constando suas reservas sobre a redação.
Também acordaram aceitar o informe em sua totalidade, junto com Canadá e Suazilândia. “Nosso governo defende isto, embora tenhamos reservas sobre certas partes”, disse o delegado australiano. Os outros 60 países representantes no plenário adotaram o informe. “Estou atônita. Nunca pensei que fosse aprovado”, disse Janice Jiggins, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de Wageningen, na Holanda, e uma das especialistas que trabalharam na revisão do conhecimento global em matéria de agricultura e seus efeitos em todo o mundo. Também contou com o aval da sociedade civil.
“Temos uma postura muito forte contra os organismos geneticamente modificados, mas concordamos em aceitar a síntese com os resultados do informe porque era neutro”, disse Van aken. “Não estamos contentes com tudo, mas, concordamos com o consenso científico expresso no documento”, acrescentou. A IAASTD acaba de colocar à prova a resistência de pesquisadores em fazer o mesmo com a vontade dos políticos. “Estes documentos são como uma Bíblia com a qual se pode negociar com várias instituições em meu país e transformar a agricultura”, disse no plenário o delegado da Costa Rica. Outros foram mais cautelosos sobre as possibilidades futuras da avaliação, mas, mesmo assim, têm esperanças. “Agora, todos vamos na mesma direção, embora alguns caminhem e outros corram”, disse Wakhungu.
(Por Stephen Leahy, IPS, Envolverde, Carta Maior, 15/04/2008)