A crise da alta de preços dos alimentos embaralha as cartas do comércio internacional e deve acirrar o confronto na combalida Rodada Doha sobre quem pagará pelos ajustes na produção global. Cerca de 30 países em desenvolvimento tiveram de reduzir tarifas, para estimular as importações de produtos agrícolas, ou restringir exportações para garantir seu próprio abastecimento interno.

O porta-voz da Organização Mundial do Comércio (OMC), Keith Rockwell, aponta " uma dinâmica diferente na negociação " no rastro da crise, mas admite que os países não mudaram de posição em Genebra - pelo menos não ainda. Certos negociadores vêem o risco de a crise atrasar ainda mais a negociação global. " Políticos não podem ver gente protestando nas ruas e talvez desviem a atenção da negociação " , avalia o embaixador da Noruega, Eirik Glenn.

Já para o principal negociador comercial do Brasil, embaixador Roberto Azevedo, os preços altos " facilitam o desfecho da rodada, porque os subsídios estão caindo " . A crise de alimentos começou a entrar na OMC com argumentos contraditórios. Para exportadores, incluindo os que limitam exportações, a crise deveria levar ao maior acesso possível a outros mercados. E países que estão tendo de estimular importações acham que a situação atual reforça a importância de segurança alimentar, e portanto estimular a produção local.

Os EUA dão menos subsídios agrícolas, cerca de US$ 9 bilhões, pois seus agricultores precisam de menos ajuda. Mas, para o acordo, querem manter ampla margem. Nesse cenário, analistas de várias tendências vêem a governança do comércio internacional totalmente desconectada da realidade.

O professor Jean-Pierre Lehman, do Instituto de Administração de Lausanne (IMD) e líder do Grupo de Evian (liberal), aponta incoerência das políticas dos governos. " Há em grande parte reação de pânico, mas os governos parecem não ter visto o pior. O espetáculo de Doha é um grupo de países bloqueados em posições táticas que representam políticas rígidas, incapazes de flexibilidade, enquanto a realidade muda dramaticamente. Doha é um símbolo da incapacidade de gerar os temas mundiais num espírito de cooperação. "

Para um respeitado especialista em comércio, o indiano Chakravarthi Raghavan, governos de países em desenvolvimento que tentarem impulsionar uma agenda de liberalização correm risco de cair, como na Índia. No rastro da alta de preços, e para garantir comida aos pobres, mais governos serão forçados a dar subsídios a produtos básicos para suas populações.

Para ele, nenhuma regra comercial atual ou futura (se Doha avançar) pode alterar essa situação. Ainda mais com os sérios impactos em vários países em desenvolvimento, em particular com grandes populações pobres, como Índia, China, Indonésia e Egito, podendo criar mais distúrbios sociais, como o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) advertiu.

" Os países ricos não podem cruzar os braços e ver os demais sofrerem, porque haverá desordens violentas, numa forma que nenhuma policia ou Exército poderá frear, ao ponto em que a segurança e a paz internacional serão afetadas. A alta de preços já afeta até os pobres nos países ricos " , diz Raghavan.

Essa situação pode perdurar. A FAO, agência da ONU para agricultura e alimentação, diz que a produção agrícola mundial vem crescendo menos que a demanda. A alta de preços pode ser " estrutural " e não simplesmente passageira, ameaçando jogar milhões de pessoas na " insegurança alimentar " .

Para Martin Khor, importante ativista contra a liberalização comercial, isso reforça a tese de países asiáticos pela segurança alimentar. " A liberalização permitiu importação barata e desestimulou a produção interna. Agora veja, o Vietnã não quer exportar mais arroz para Tailândia. E importadores querem ter sua própria produção. "

Para a Argentina, o que está em jogo em Doha é o custo do ajuste na produção global. " O mundo está mudando, há problemas estruturais nos países industrializados e nos países em desenvolvimento, e é necessário um ajuste em geral para melhorar a distribuição dos recursos em nível mundial " , disse o subsecretário de comércio internacional Ernesto Stancanelli. " Está faltando alimentos porque não foram dadas condições aos países em desenvolvimento para produzir mais. Essa [crise] é conseqüência dos subsídios distorcivos dos ricos. E o custo do ajuste tem de ser dos países ricos, com forte corte de subsídios e de tarifas e mais flexibilidade para políticas públicas pelos países em desenvolvimento. "

O brasileiro Azevedo crê que um acordo em Doha ajudaria ainda a agricultura familiar, com impacto nos fluxos migratórios, reduzindo inchaço e violência urbanas.

Já Simon Evenett, professor de comércio internacional na Universidade de St. Gallen (Suíça) avalia que, com os preços baixos de hoje, um acordo agrícola não terá impacto real na redução dos subsídios - o que alimenta a discussão sobre concessões que países como o Brasil estariam dispostos a fazer para fechar o acordo.

Azevedo contesta essa visão. " Toda negociação exige um balanço de compromissos, e ela não pode ser conduzida olhando apenas para o curtíssimo prazo. Nada garante que dentro de poucos anos os preços não voltem a recordes historicamente baixos, como aconteceu pouco depois da Rodada Uruguai " , afirma ele.

Além do problema de alimentos, a inflação pressiona nos EUA e na Europa. A grande liquidez e a conseqüente desvalorização do dólar contribuíram para a inflação global e a alta dos preços de commodities e petróleo.

De um lado, países em desenvolvimento podem ter mais o que fazer atualmente. E um acordo agrícola e industrial proximamente, sem calendário de concessões (até que o fast track seja obtido pelo governo dos EUA), está destinado ao fiasco - porque de toda maneira uma nova administração nos EUA iria querer rediscuti-lo, avalia Raghavan.

(Por Assis Moreira, Valor Econômico, 14/04/2008)