A tragédia da "maré vermelha" completa agora 30 anos. Em abril de 1978, na costa de Santa Vitória do Palmar, milhares de focas, botos, peixes de todos os tamanhos e ostras de todos os tipos começaram a aparecer mortos na praia de Hermenegildo. Um odor a amoníaco infestou o mar e toda a região. Com chuva em terra e tempestade nas águas, a maré forte e alagadiça tornou o ar irrespiravelmente denso ao longo de dezenas de quilômetros.
Foi nossa maior tragédia ambiental. Não tanto pelo impacto (outras iguais ou maiores vieram depois), mas pela nossa ignorância sobre o que acontecia. Vivíamos sob ditadura e todo debate - a começar pelo científico - podia ser visto como perigoso e subversivo. A Agapan já fora fundada e funcionava, mas os governantes não haviam despertado para o perigo da contaminação. "A água lava tudo", diziam.
Até hoje se desconhece a causa exata e precisa do horror denominado "maré vermelha", pela cor das águas. Mas, um dia antes, uma tempestade partiu em três o casco do navio Taquari, naufragado sete anos antes, em 1971, junto ao Cabo Polônio, na costa uruguaia, a 90 quilômetros do Chuí. O navio, do Lóide Brasileiro, transportava carga tóxica produzida pela Dow Chemical, similar à encontrada nas vísceras das focas mortas. A multinacional norte-americana negou-se a revelar o conteúdo da carga (talvez agrotóxicos, intocados durante sete anos no fundo do mar) e limitou-se a um aviso lacônico: "Se cilindros vermelhos, de aço, derem à praia, evitar contacto".
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Todos os estudos científicos são unânimes num ponto: o desastre de Hermenegildo foi provocado por contaminação química. Ou pela incapacidade humana de controlá-la.
Esta é a grande lição que, aparentemente, não soubemos aprender. Para tudo, principalmente para a defesa da vida e da natureza, continuamos a aceitar as mais borbulhantes versões, das simplistas às absurdamente pedantes, todas irreais. E a partir da versão construída e repetida ao cansaço, tomamos a mentira mais vulgar com a naturalidade de verdade inquestionável. E a adotamos.
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Agora, 30 anos depois, surge a "maré verde". A metade sul do Rio Grande, empobrecida pelo latifúndio arcaico (que acabou limitado a uma pecuária extensiva, pouco redistributiva), parece descobrir agora um futuro sólido no plantio de eucaliptos e outras árvores exóticas, destinadas à indústria do papel. Em parte, volta-se à situação de décadas atrás, quando a instalação da Borregaard, em Guaíba, surgia como redenção econômica. Também uma indústria de papel, só que ninguém anteviu a poluição do rio e do ar. Durante anos, a pestilência tomou conta de parte da capital e o Rio Guaíba segue poluído até hoje.
Tenhamos cautela. O plantio alucinante e desordenado de eucaliptos não é em si mesmo o milagre do Rei Midas (que transformava tudo em ouro), mesmo havendo milhões de reais em investimento. A China fez este "caminho da riqueza" sem dar atenção ao meio ambiente, e hoje é o país mais contaminado do mundo.
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Por que não pensar no alerta da comunidade científica sobre os cuidados a tomar no caso das plantações extensivas de eucaliptos? Essa "planta beberrona" não agravará as secas na fronteira? Com banhados e restingas secas, o que será da fauna nativa, das emas às lebres ou dos pássaros do pampa? Ou da flora que compõe a medicina caseira do gaúcho e tem uma biodiversidade ainda pouco pesquisada?
Não toco no desaparecimento do gaúcho bom de laço, substituído pelo lenhador exímio na motosserra. A modernidade modificou a sociologia (o jipe 4 X 4 em vez do cavalo) e me conformo. Mas e o impacto ambiental?
O governo estadual deve ser rígido, não permissivo, na concessão de licenças de plantio extensivo. Licenciar a esmo inverte a ordem natural da Criação, que significa vida. Os olhos para avaliar as cores das marés devem ser técnicos e científicos, pois a vida vale mais do que os cifrões.
(Por Flávio Tavares,
Zero Hora, 13/04/2008)