No último dia 26 de março, o Parque Nacional da Floresta da Tijuca modificou o sistema de acesso ao mirante do Corcovado. A mudança implicou na proibição da subida de automóveis particulares além das Paineiras e na implantação de um sistema de furgões licitado para o transporte de visitantes. Trata-se de medida há muito necessária, seja dos pontos de vista da preservação ambiental, do controle da corrupção ou da desorganização do acesso ao monumento. Como toda medida nova, contudo, está sendo alvo de imensas críticas, que vêm de várias esferas públicas e privadas. A maioria delas não é justa e deve se esvanecer com o tempo.
O Corcovado é popular entre cariocas e turistas desde que a primeira trilha levando até o seu topo ficou pronta em 22 de fevereiro de 1824. Segundo Debret, D. Pedro I, entusiasmou-se com o projeto e supervisionou os trabalhos de sua abertura, diariamente e em pessoa:
“ O Corcovado, muito alto, e que permanecera até então impraticável, inspirou-lhe (a D. PedroI) o projeto de aplicar os conhecimentos recém-adquiridos na abertura de um caminho, para um cavaleiro, através dos obstáculos de uma vegetação virgem, que, a princípio gigantesca, diminui na medida em que o viajante se aproxima do pico estreito e quase nu desse promontório, imponente no seu isolamento. Pessoalmente responsável por esse empreendimento, e diariamente a cavalo desde a madrugada, dirige os trabalhos, e aproveitando com inteligência a natureza do solo, atinge em pouco tempo o objetivo que se propusera.”
Uma vez pronta a trilha, o Imperador cuidou para que o cume onde localizava-se o mirante, naquele tempo separado do resto da montanha por um profundo vão, fosse dotado de uma ponte, protegido por um parapeito treliçado e sombreado por uma cobertura rústica. Nele também foi instalado um telégrafo.
Desde então, e até nossos dias, o Corcovado se consagraria como o belvedere mais freqüentado do Brasil. Entre os primeiros estrangeiros a visitar o Corcovado estão os naturalistas austríacos Spix e von Martius, que ficaram absolutamente encantados:
“uma vista maravilhosa da baía, das ilhas verdes, flutuantes, do porto com os mastros e bandeiras sem número, e da cidade estendida ao pé da mais garbosa montanha, cujas casas e torres reluziam ao sol. Longamente nos reteve presos o mágico espetáculo de uma grande cidade... surgida no meio de rica natureza tropical”.
Alguns anos depois, em 1832, o autor da Teoria da Evolução das Espécies, Charles Darwin, que aqui esteve a bordo do Beagle, também visitou o Corcovado. Apesar de ser um homem viajado, o cientista inglês não conteve seu entusiasmo:
“Nessa elevação a paisagem enfeita-se com tintas tão brilhantes, as formas e as cores sobrepujam tanto em grandeza tudo o que o europeu viu em suas terras, que lhe faltam expressões para descrever o que sente.”
Trinta e cinco anos mais tarde, em 1868, foi rasgada uma estrada para carruagens até às Paineiras, logo estendida até o pé do mirante do Corcovado, em 1871. Cresceu tanto a visitação que, aos domingos, havia congestionamento de carroças e montarias. Para minorar o engarrafamento, em 1882, com uma cláusula que proibia expressamente o uso da mão de obra escrava, foi dada uma concessão para que o futuro prefeito Pereira Passos e seu sócio, Teixeira Soares, construíssem um hotel e uma ligação ferroviária entre o Cosme Velho e o Corcovado. A primeira etapa, até as Paineiras, e o Hotel, foram inaugurados em 1884, com a presença de D. Pedro II e demais autoridades do Império. A ligação final até o Corcovado foi concluída quase um ano depois, em julho de 1885. Em 1910, já administrada pela Light, a ferrovia foi eletrificada.
Em 1926 tem início a obra de construção ao monumento ao Cristo Redentor, que é inaugurado em 1931. Em seguida à abertura da Estátua à visitação pública, mais uma vez o mirante experimentou um aumento considerável no número de visitantes. Logo, a ferrovia não dá mais vazão à demanda e uma estrada para automóveis, ligando o Corcovado às Paineiras é construída em 1936. Pouco depois, de 1943 a 1945, sob a administração do prefeito Dodsworth o complexo das escadarias e mirantes é reformado e ampliado. Novos estacionamentos são construídos.
Em 1990, sob os auspícios da Fundação Roberto Marinho, uma reforma é realizada de forma a recuperar a estrutura e as ferragens da estátua e a protegê-la do desgaste natural da exposição aos rigores do clima. Bem a tempo do maior evento internacional que o mundo já viu: a ECO 92, realizada no Rio de Janeiro e que levaria ao Corcovado diversos Chefes de Estado.
Em 1999, a Prefeitura do Rio de Janeiro e o IBAMA reconheceram que a importância da Floresta extrapola a Preservação Ambiental e tem contornos de equipamento público de turismo e lazer de suma importância para a cidade. Por isso, assinaram um convênio para gerir o Parque Nacional da Tijuca de forma compartilhada. Este acordo resultou em uma vasta gama de benefícios para o Corcovado. Novamente, sob a coordenação da Fundação Roberto Marinho, foram iniciadas obras de fôlego com o objetivo de melhorar significativamente a infraestrutura do monumento, mais uma vez defasada. Na primeira etapa, essas intervenções incluíram a impermeabilização e a proteção da estátua com uma malha catódica e um novo projeto de iluminação que valoriza a imagem do Cristo à noite. Também realizou-se a tão necessária obra de implantação de elevadores e escadas rolantes, ligando a estação superior da ferrovia à base do Cristo. Projetado para não causar impacto visual ou ao meio ambiente esse acesso mecanizado, com custo de US$ 3 milhões, era uma antiga reivindicação de pessoas idosas e deficientes físicos, que encontravam muita dificuldade para vencer os 220 degraus que levam ao topo do mirante.
Restaram, contudo, ainda alguns problemas sérios como o abandono do Hotel das Paineiras, as licitações vencidas das lojas do mirante, o excesso de automóveis no exíguo espaço de estacionamento do Cristo, a corrupção nas bilheterias e a bandalha de diversos táxis que aliciavam passageiros no Cosme Velho.
No início do ano 2000, soluções para esses problemas estavam encaminhadas. Nessa altura, o mirante não era então gerido apenas pelo IBAMA. De acordo com o Convênio de Gestão Compartilhada para o Parque Nacional da Floresta da Tijuca, seu diretor-executivo era nomeado pela Prefeitura e respondia NÃO ao IBAMA, mas a uma Comissão-Executiva. Essa Comissão era presidida pelo Gerente do IBAMA no Rio de Janeiro, co-presidida pelo Secretário Municipal de Meio Ambiente e composta pelo diretor-executivo do PNT, pelo gerente do PNT, pelo Coordenador do Núcleo de Unidades de Conservação Federais no Rio de Janeiro, pelo Chefe do Escritório da Embratur no Rio de Janeiro, por representante do Serviço de Patrimônio da União, pelo Presidente da Riotur, pelos Secretários Municipais de Turismo, Obras e Habitação, além do Presidente da Sociedade de Amigos da Floresta da Tijuca.
A Comissão reunia-se todos os meses e contava com participação de alto nível. Os problemas do Parque eram expostos na mesa do conclave e dali mesmo os secretários municipais disparavam telefonemas ordenando soluções. Foi assim que a Comlurb retirou mais de 100 toneladas de lixo do Parque em apenas um mês, que a Riourbe reformou a Capela Mayrink, que a Guarda Municipal cedeu 28 agentes florestais para o Parque (responsáveis pela desativação de 70 acampamentos de caçadores), que a CET-Rio refez a sinalização das vias internas da Floresta, que a Fundação Parques e Jardins implantou uma ciclovia na Unidade de Conservação, que a Secretaria de Cultura criou o programa Música na Floresta, que a Secretaria de Educação cedeu 3 professoras ao Parque e criou um programa de educação ambiental voltado para as escolas, que a RioLuz criou nova iluminação para o Cristo, que a Secretaria de Ciência e Tecnologia se responsabilizou pela manutenção dos computadores do Parque, que a Secretaria de Obras reformou a Ponte do Aluísio e construiu a ponte pênsil da Cova da Onça e assim por diante.
IBAMA e Prefeitura não apenas conversavam. Eram PARCEIROS de fato, com preponderância clara da Prefeitura. No Parque funcionários de ambos os órgãos trabalhavam juntos em equipes mistas com uniforme e logotipo comuns. Um apanhado de reportagens de imprensa e cartas de visitantes, escritas naquela época, atesta que jamais o Parque viveu momento tão bom em seus quarenta e poucos anos de história.
Mas, voltando à nova medida implementada pelo Ibama, houve erros em sua implantação? Pessoalmente, preferia que os furgões licitados saíssem do Largo do Machado, da Lagoa Rodrigo de Freitas ou do Mirante Dona Marta, mas depois de, quando era diretor do PNT, ter sido ameaçado de morte uma dezena de vezes por supostos motoristas de táxi e bilheteiros corruptos, aprendi que o bom é inimigo do ótimo. Antes essa medida do que o jeito deplorável em que as coisas estavam.
Reclama o Secretário Municipal de Turismo, Rubem Medina, que o esquema foi criado sem que as autoridades municipais fossem ouvidas. Defende uma ação conjunta entre Ibama e Prefeitura e diz que “o Ibama, infelizmente, resolveu que o Corcovado é dele e não da cidade. Errado. Estamos (a Prefeitura) à disposição para conversar.” O Secretário só não explica por que a conversa fluida que havia foi ROMPIDA PELA PREFEITURA. Perdoo o Sr. Medina pelo lapso pois, quando assumiu a parceria já estava desfeita. Ainda assim, cabe a seu chefe, o Prefeito César Maia, explicar porque prometeu em sua campanha eleitoral dar prioridade ao meio ambiente, subordinando o tema a uma supersecretaria municipal e, ao invés de dar continuidade ao projeto bem sucedido da Floresta da Tijuca, destruiu-o.
Designou para secretário de Meio Ambiente o Deputado Eduardo Paes, que colocou o Sr. Antônio Pedro Figueira de Mello na posição de Diretor-executivo da Gestão Compartilhada. Em seguida gestionou junto ao Governo Federal e obteve a substituição do gerente do Parque pelo Ibama, Luiz Otávio Langlois, pela Sra. Sônia Peixoto, por sua vez ligada ao então Secretário Municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis. Ou seja, mais do que na gestão anterior, a Prefeitura tinha a faca e o queijo na mão no que toca à gestão do Parque Nacional da Tijuca. Detinha todos os cargos decisórios e tinha sob sua égide o poder de determinar o planejamento da Unidade de Conservação.
O que fez? Com menos de quinze dias, a nova direção exonerou a Sra. Mônica Barbiratto, representante da Riotur no Parque. Mônica era especializada em turismo e era a responsável pelo Corcovado. Não foi substituída e o Cristo ficou ao Deus-Dará. Também foram canceladas as reuniões da Comissão da Gestão Compartilhada, acabando com o clima de entendimento e cooperação direta e clara que havia entre as instâncias Federal e Municipal. Mais do que isso, a Prefeitura retirou o comando operacional que o diretor do Parque tinha sobre o contigente da Guarda Municipal à sua disposição, descontinuou o programa de educação ambiental e reduziu drasticamente a quantidade de funcionários da Prefeitura cedidos ao Parque. Por fim, em meados de 2000, negligenciou a renovação do Convênio de Gestão Compartilhada, permitindo a desfiguração do instrumento legal que balizava a cooperação entre Prefeitura e Ibama.
Dois anos depois o diretor-executivo do PNT e o Secretário de Meio Ambiente candidataram-se respectivamente a vereador e deputado. Em suas campanhas políticas, apropriaram-se de avanços obtidos antes de suas gestões. No bojo do processo eleitoral, foram substituídos por pessoas ainda mais afastadas do clima de parceria pré-existente e mais enfraquecidas politicamente perante as instâncias de poder tanto do Ibama quanto da Prefeitura. O Parque, como era de se esperar, desceu a ladeira.
Agora, em 2008, após a substituição da Sra. Sônia Peixoto pelo Sr. Ricardo Calmon, parece haver alguma esperança no horizonte. Fala-se a sério em gerir a Floresta como uma Unidade de Conservação da sua importância deve ser gerida. Dentro desse espírito, finalmente algo foi feito no sentido de regularizar a bagunça do Corcovado, cujo projeto inicial, É PRECISO LEMBRAR, nasceu na época em que a Comissão da Gestão Compartilhada ainda existia e quando as partes conversavam. Não por acaso, esse esboço de projeto, sobre o qual a proposta adotada pelo IBAMA evoluiu, saiu das pranchetas dos técnicos do Instituto Pereira Passos, ÓRGÃO DA PREFEITURA.
Se o projeto é bom ou ruim, o tempo dirá. No que toca à conversa pedida pelo Secretário de Turismo, contudo, posso garantir que o IBAMA não é o judas dessa história. Nesse sentido, se é o desejo da Prefeitura voltar a ter influência nas decisões do Parque, acho que é idéia bem vinda. As bases, rompidas pela própria Prefeitura, ainda estão aí. Não é necessário andar sobre as águas, trata-se apenas de reconstruir pontes. Tenho certeza que um movimento sincero do Poder Municipal há de ser bem recebido pela Ministra Marina Silva e abençoado por esse Cristo que, no final é Redentor de todos os pecados.
(Por Pedro da Cunha e Menezes* ,
O Eco, 08/04/2008)
*Membro da UICN Brasil, Especialista em Unidades de Conservação urbanas. Ex-Diretor Executivo do Parque Nacional da Tijuca.