No meio da tarde, o wapichana Manduca Tavares colhe melancias na roça da Comunidade do Milho, na Terra Indígena São Marcos, área de 111 mil hectares vizinha à Raposa Serra do Sol, onde que a Polícia Federal (PF) pode deflagrar a qualquer momento uma ofensiva para a retirada de arrozeiros e não-índios, como determina decreto de homologação de 2005. O índio aguarda o início da ação com ansiedade.
Desenvolvemos nossa área com nossa própria produção. Não precisamos de arrozeiro – resume Manduca, vice-coordenador da Associação dos Povos da Terra Indígena São Marcos
A lista de produtos inclui ainda mandioca e banana, vendidos nas cidades, assim como carne bovina e suína.
Comemos arroz porque compramos – ressalta o líder indígena, que não poupa críticas aos produtores rurais que ocupam a região.
Eles (arrozeiros) são invasores. Não são de Roraima, não têm 20 anos aqui e vieram usufruir sem dar porcentagem para a população – acusa.
A divisão dos indígenas da Raposa Serra do Sol entre o apoio e o repúdio aos arrozeiros seria, conforme Manduca, reflexo da ocupação da área por não-índios:
A gente vive integrado, mas quando alguém coloca na cabeça dos parentes promessa de ajuda... Os parentes apóiam (os arrozeiros) sem ter conhecimento. São poucos índios que trabalham com eles.
A presença do arrozeiros na região poderia ser até admitida, argumentou Manduca, mas diante de um novo tipo de relacionamento com as comunidades tradicionais:
Podem voltar como parceiros e não invasores. E precisam dar maior assistência.
Para o líder indígena, o fato de os índios da área já adotarem costumes típicos de quem vive nas cidades não significa que possam viver no mesmo espaço que os brancos. Seu argumento vem acompanhado por uma metáfora aprendida com os antepassados:
Um homem tinha um tamanduá e passou cinco anos dando leite para ele beber. Mas o tamanduá não virou bezerro nem vaca – disse.
Podemos usar sapatos e calças bonitas, pegar um avião para ir em Brasília, mas vamos morrer índios. (ABr)
Araújo saiu porque não viu outra alternatrivaDe família nordestina, Odílio Soares de Araújo nasceu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol e quase 60 anos depois teve de deixar uma fazenda na área homologada em abril de 2005, onde criava gado e praticava agricultura de subsistência. Agora, reassentado no Projeto de Assentamento (PA) Nova Amazônia, nos arredores de Boa Vista, ele, que optou por não resistir, afirma que não lhe restava outra saída.
Araújo mora na capital e vai ao assentamento nos fins de semana. A antiga fazenda de aproximadamente mil hectares foi trocada por uma parcela de terra no projeto de assentamento, de 446 hectares. A sede é uma casa de madeira de quatro cômodos. A principal reclamação é com a qualidade da nova posse:
A terra não presta e nessa quantidade é muito pouco para fazer pecuária extensiva.
Araújo não revela o valor da indenização recebida pelas benfeitorias, mas definiu-a como insatisfatória e deu um exemplo: Se uma cadeira custa R$ 10, eles (Funai) fazem depreciação e pagam R$ 5 – queixa-se.
Acrescentou que enfrenta "a realidade como ela é, mas o prejuízo não se discute". Segundo Odílio, seus antepassados ajudaram a construir Roraima e a desbravar o interior. Ele garante que nunca houve divergências entre agricultores com o seu perfil e indígenas na Raposa Serra do Sol, que daria para abrigar todos. E prefere não fazer juízo de valor sobre a resistência dos arrozeiros em sair de lá:
Cada um toma a sua decisão. De acordo com o Incra, havia 292 famílias de não-índios cadastradas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Delas, 139 já foram reassentadas em lotes. Além do assentamento Nova Amazônia, há famílias na zona rural do município de Alto Alegre, a 55 quilômetros da capital. Sessenta e quatro lotes têm até 100 hectares e o restante, de 100 a 500 hectares.
(Jornal do Brasil,
FGV, 08/04/2008)