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febre amarela
2008-04-07

Médico da Fiocruz avalia que país está próximo de uma epidemia de dengue 4, mais grave que a atual, no Rio

A febre amarela urbana ameaça Rio e São Paulo, avalia o clínico Antônio Sérgio Almeida Fonseca, médico que em 1986 examinou em Nova Iguaçu (cidade na região metropolitana do Rio) o primeiro caso de dengue após décadas sem registros. A falta de eficácia do poder público no combate ao mosquito Aedes aegypti, transmissor das duas doenças, trará de volta, inevitavelmente, a febre amarela em sua forma urbana, estima o especialista.

A população brasileira está "totalmente exposta" às doenças ao mosquito Aedes aegypti.

Em entrevista a Folha, Fonseca, 51, assessor da Vice-Presidência de Serviços de Referência e Ambiente da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) alerta sobre o risco de retorno da febre amarela urbana.

Além disso, o especialista prevê que muito em breve haverá, em alguma grande cidade brasileira, uma epidemia de dengue mais grave do que a atual, em curso no Rio. Desta vez provocada pelo vírus tipo 4, existente em países fronteiriços e no Caribe e que não é registrado no Brasil desde 1982. "Se estivesse sendo feita alguma coisa não teria voltado o 2", disse ele, referindo-se à epidemia no Rio, responsável pela morte de 44 pessoas até sexta-feira no Rio e 67 em todo o Estado.  

FOLHA - O sr. fala que essa epidemia demonstra o despreparo das autoridades de saúde. Por quê?
ANTÔNIO SÉRGIO DA FONSECA - Uma doença como a dengue tem mecanismo de transmissão conhecido. Tem as formas de prevenir, de atuar, conhecidas. Tem previsibilidade do que pode vir a acontecer. Logo, você tem de tentar montar uma estratégia que seja mais eficaz.
Por mais que se esperasse, havia um despreparo completo. Isso é fundamental. Certamente nossa rede não estava preparada para isso. Em tese, era de se esperar que não houvesse nenhum óbito.
Se a gente pegar a história desde quando começou, em 1986, há uma série de elementos que vão prevendo a sucessão de coisas que aconteceram nesses 22 anos. No final da década de 70 já se falava sobre o risco da urbanização da febre amarela, por conta do ressurgimento do Aedes aegypti e da população que vinha aumentando. Existia a preocupação da entrada da febre amarela.
Um mosquito que tinha sido eliminado foi reintroduzido.
Em 1986, em Nova Iguaçu, nos primeiros casos, que tive oportunidade de atender, achávamos até que era febre tifóide. Era uma família inteira, todas próximas do mesmo local. A gente não estava acostumado. Dengue a gente sabia de livro.
Até que o vírus foi isolado na Fiocruz, era o dengue 1. Isso se estendeu rapidamente pelo município do Rio.

FOLHA - Por que sempre no Rio?
FONSECA - O Rio apresenta algumas condições que favorecem isso. É cidade com problema habitacional sério. Um não-acesso de grande parte da população à água encanada, principalmente em favelas. O Rio tem a característica de ter uma periferia central. Você tem no centro morro da Providência, morro do Estácio. Na zona sul, morro do Chapéu Mangueira, Pavãozinho. As cidades se organizam e as periferias vão ficando cada vez mais afastadas. No Rio, ela está dentro.

FOLHA - Então não tem jeito?
FONSECA - É uma situação que permite o surgimento de criadouros. Além das condições climáticas, que são favoráveis. Em 1986 foram casos relativamente simples, com muita sintomatologia, mas sem maior gravidade. Uma epidemia volumosa, mas de certa forma benigna, como a maioria dos casos de dengue. O que se temia, pelos estudos, é que a sucessão de entrada de outros vírus em períodos curtos permite o surgimento de formas mais graves da doença.
Dois anos depois entrou outro vírus, o 2, que está circulando atualmente. Fez uma segunda epidemia. Aí apareceram os primeiros casos de febre hemorrágica da dengue. A partir do Rio essas epidemias foram nacionalizadas, atingiu o Brasil como um todo. A partir daí tivemos epidemias sucessivas em Estados diferentes.

FOLHA - Se era previsível porque não se impediu a propagação da doença?
FONSECA - As estratégias foram muito voltadas para a propaganda. A estratégia montada ao longo desses 22 anos foi focada na destruição dos criadouros. Mas ela é muito informativa. Ela recomendava fazer isso.
Existe uma precarização clara da contratação dos profissionais que já foram chamados de mata-mosquitos, hoje agentes de endemias. Eles têm contratos precários. É leviano para mim falar da questão da formação, mas acredito que essa formação talvez não seja a mais adequada. E existe uma desarticulação completa da estrutura do trabalho dos agentes de endemias, da área de vigilância sanitária, com a área do atendimento básico.
Ao longo desses anos o Brasil investiu em proposta de mudança do modelo assistencial, trabalhando a atenção básica com a estratégia de saúde da família, atingindo índices de cobertura ótimos, o que não existe no Rio.
Aqui é muito baixo, 8%. A gente sabe que nas grandes cidades é mais difícil. Atingir uma cobertura completa na cidade menor é muito mais fácil. Agora, no Rio existe um aparelho público estatal grande de saúde. Modificar esse modelo é mais difícil. Rio e São Paulo tiveram grandes dificuldades.

FOLHA - Isso foi fundamental para a atual epidemia?
FONSECA - Uma cobertura baixa do programa de saúde da família. Uma cidade onde você tem uma periferia central. Uma cidade que foi vítima da entrada dos três vírus, sucessivas epidemias, clima favorável, déficit habitacional. O Rio tem atenção básica, mas no modelo convencional, o posto de saúde. O saúde da família vai aonde o indivíduo está e trabalha com membros da própria comunidade. Vai ter uma possibilidade de transformação muito maior.

FOLHA - Por que não se adotou uma estratégia específica?
FONSECA - Ela foi muito focada na responsabilização do cidadão. "O culpado é você porque tem bromélia, o culpado é você porque deixa água empoçada, que não tampa as caixas d'água". É falho.
Outra coisa falha é que as medidas têm que ser contínuas e acompanhadas de grandes exemplos. Quando você identifica um depósito de carros oficiais abandonado com água dentro, ora, como você vai poder falar com uma mãe que tem que botar terrinha no vaso? Ela faz isso, e a filha fica doente porque do outro lado o poder público não deu conta de eliminar um grande criador.

FOLHA - O vírus 4 já ameaça?
FONSECA - A epidemia de dengue de 2002 entrou em janeiro. Quando voltei para trabalhar depois do Ano Novo eu estranhei: vai estourar alguma coisa. Em 2002 a coisa foi muito mais explosiva. Era a entrada de um vírus. A população toda está exposta. É o risco que a gente corre com a entrada do 4.

FOLHA - E quando chega o 4?
FONSECA - Está batendo na trave, a gente pode dizer isso. A qualquer momento. Roraima é perto da Venezuela, do Caribe, onde o vírus circula. A população brasileira está totalmente exposta. Talvez ainda não tenha tido essa explosão porque o vírus está em área de baixa densidade demográfica. Uma epidemia dessa monta certamente vai começar na região Sudeste. Ou nas capitais do Nordeste. Ela precisa de um aglomerado urbano importante. A entrada de um novo vírus é algo esperado. Desde 1986 eles têm entrado sucessivamente.

FOLHA - O que está sendo feito pelas autoridades em relação ao 4?
FONSECA - Acho que se estivesse sendo feita alguma coisa não teria voltado o 2. Acho que está sendo feito muito pouco. Tem coisas de longo prazo, que dizem respeito a articulações entre os diversos setores; em envolvimento de poder público, privado e comunitário. Tem que haver no poder público a articulação entre as esferas federais, estaduais e municipais. Nas municipais, articulação de educação, saúde, saneamento, habitação.

FOLHA - Mas isso não existe?
FONSECA - É muito pouco, estamos engatinhando.

FOLHA - Só no Rio?
FONSECA - Diria que nos país inteiro. Alguns locais estão mais avançados, pelo menos no campo da saúde existem alguns avanços. A estruturação de um sistema de saúde, com atenção básica eficaz, ações articuladas no setor público, envolvendo a participação da comunidade.

FOLHA - O alto número de mortes mostra que o médico, de um modo geral, não estava preparado para diagnosticar a doença?
FONSECA - É uma análise difícil. A teoria é uma, a prática, outra. Sabíamos de ler, de literatura, o manejo do dengue em criança, mas só fomos ter experiência prática agora. Por outro lado, isso vai um pouco além da preparação do profissional. A forma de vinculação dele com o conhecimento do que é uma rede, o despreparo da atenção básica. Está faltando uma qualidade no nosso filtro. O filtro é a atenção básica.

FOLHA - Por que a febre amarela urbana não chegou ainda?
FONSECA - A urbanização da febre amarela é outro capítulo. É doença de primatas, silvícola. O homem entra acidentalmente quando penetra nesses ambientes. Para ter a urbanização, precisa, primeiramente, uma quantidade de pessoas contaminadas vindas dessas áreas e uma população maior de Aedes do que tem hoje. O que a gente costuma dizer é que se nada for feito daqui a alguns anos será inevitável a urbanização.

FOLHA - Inevitável em quantos anos?
FONSECA - Se você não monitorar a população de Aedes, se você não fizer investimento no controle das migrações... A diferença da febre amarela é que existe uma vacina eficaz, que protege por dez anos. Se a gente não tiver controle rígido dessas migrações, é inevitável. Rio e São Paulo são os dois grandes riscos, pois têm uma população explosiva em termos de densidade demográfica e baixa cobertura vacinal para febre amarela.

(Sergio Torres, Folha de São Paulo, 07/04/2008)


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