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crise da água água potável
2008-04-04

Os favelados em Dar es Salaam pagam o equivalente a US$ 8 por 1.000 litros de água, comprados ao longo de um período de tempo e por lata. Na mesma cidade na Tanzânia, lares mais ricos ligados à rede de abastecimento municipal recebem a mesma quantidade por apenas 34 centavos de dólar. No Reino Unido, o mesmo volume de água custa US$ 1,62 enquanto nos Estados Unidos custa 68 centavos.

Os números de outros países confirmam a evidência: geralmente são os mais pobres que pagam mais por aquele que é o mais essencial de todos os recursos naturais. A água é escassa para uma grande parcela da população mundial: cerca de 1 bilhão de pessoas carecem de acesso à água limpa e 2,6 bilhões não dispõem de saneamento básico. Cerca de 5 mil crianças morrem diariamente por doenças ligadas à água, segundo a WaterAid, uma entidade beneficente com sede em Londres.

Se o número de pessoas que carecem de água potável segura fosse reduzido pela metade, ao custo de cerca de US$ 10 bilhões, o mundo se beneficiaria com US$ 38 bilhões de crescimento econômico anual, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). As disputas em torno dos direitos de água podem, segundo o Pnud, levar a conflitos -como em Darfur.

Mas, como cada chuva nos recorda, a água é o recurso natural mais renovável. O problema é sua distribuição -não apenas os padrões climáticos que deixam alguns lugares secos enquanto outros enfrentam enchentes, mas também na forma como as sociedades administram seus recursos de água. A questão é como estabelecer um preço justo pela água. Em alguns dos mesmos países onde os pobres carecem de acesso à água limpa, outros desperdiçam o recurso porque seu abastecimento é subsidiado pelo governo ou o preço é tão baixo que eles não têm incentivo para economizá-la.

Este não é um problema confinado ao mundo em desenvolvimento. Estima-se que os agricultores na Espanha pagam um preço pela água que equivale a apenas cerca de 2% de seu custo real. Produtores de arroz e trigo no vale central da Califórnia usam um quinto da água do Estado, mas os preços baixos que pagam representam um subsídio anual estimado em US$ 416 milhões em 2006.

"A água absolutamente não possui um preço justo nem realista. Portanto as pessoas usam a água como se fosse um recurso gratuito para sempre. Este é o motivo para estarmos ficando sem água", disse Peter Brabeck-Letmathe, executivo-chefe da Nestlé, o grupo alimentício. Ele alerta para uma crise iminente na qual as empresas lutarão para encontrar a água que precisam e serão forçadas a pagar muito mais caro por ela, se mais não for feito para conservar o recurso e distribuí-lo mais racionalmente.

A única resposta, argumenta Brabeck-Letmathe, é empregar as forças de mercado. A água deve ter um preço justo e realista, visando assegurar que não será desperdiçada. "Esta é a forma de seguir em frente", ele disse. Sua empresa está envolvida na questão como parte dos esforços para se apresentar como uma boa cidadã, diante de um boicote de 30 anos a seus produtos por consumidores que desaprovam o histórico da Nestlé de promover leite em pó para bebês nos países em desenvolvimento. A mistura da fórmula para bebês com água contaminada levou a várias mortes que poderiam ter sido evitadas caso as mães tivessem amamentado as crianças, alegam os ativistas. A empresa diz que agora cumpre um código internacional para comercialização desses produtos.

Um dos efeitos mais danosos do fracasso em estabelecer um preço justo pela água é o comércio global de "água virtual" -isto é, água usada na produção de alimentos ou bens manufaturados. Alguns países carentes de água ainda assim a enviam para o exterior na forma de exportações agrícolas e industriais.

A Austrália exporta mais "água virtual" do que qualquer outro país, por meio de exportação de trigo e outros produtos agrícolas. Seus agricultores sofreram uma seca de sete anos, que apenas agora dá sinais de alívio. Como resultado, eles são os usuários agrícolas de água mais eficientes no mundo. Mas os especialistas se perguntam se faz sentido para um país tão árido promover o cultivo de produtos agrícolas para exportação que exigem tamanha irrigação.

O comércio de "água virtual" passa em grande parte despercebido pelos consumidores de bens processados. Mas o preço de muitos bens vendidos ao redor do mundo mostra que a água que entrou em sua produção era muito barata. Uma calça jeans que custa poucos dólares usa até 11 mil litros de água, segundo a Waterwise, uma organização britânica sem fins lucrativos. Um hambúrguer que custa menos de um dólar exige mais de 2.400 litros de água para ser produzido.

O uso agrícola da água freqüentemente é altamente subsidiado, seja direta ou indiretamente, o que torna a água para os produtores rurais "altamente subvalorizada", disse Andrew Hudson, líder do programa de gestão de água do Pnud. Isto contribui para problemas sérios: a organização da ONU estima que em partes da Índia, os lençóis freáticos estão encolhendo em mais de um metro por ano, colocando em risco a produção agrícola futura.

Outras empresas também podem ter seu abastecimento de água subsidiado ou podem contar com direitos de extração que lhes dão acesso barato ou gratuito a fontes de água. O Pnud conclui: "Quando se trata de gestão de água, o mundo é indulgente em uma atividade semelhante a uma gastança imprudente e insustentável financiada por crédito. Países estão usando muito mais água do que dispõem, como definido pela taxa de renovação". Esta imprudência está acumulando problemas para o futuro, quando a população mundial deverá crescer dos atuais 6,7 bilhões para 9 bilhões em 2050.

Como o preço da água pode ser estabelecido de forma justa? Muitas organizações não-governamentais querem que a água seja reconhecida como um direito humano básico e suspeitam de esquemas que aumentem seu preço. Henry Northover, chefe de política da WaterAid, acrescenta que em alguns países em desenvolvimento, más estruturas de gestão impedem as tentativas de determinar o preço para a água: "O sucesso do uso do preço como forma de regular a oferta ocorre em função da robustez das instituições e eficácia dos regimes de política".

Hudson acredita que pode ter seu preço melhor estabelecido se certas condições forem atendidas primeiro: "É preciso dispor de mecanismos que garantam a necessidade humana básica de 20 litros de água por dia (para beber, cozinhar e lavar). Para isso, os governos precisam aplicar subsídios de forma apropriada e construir acesso local à água". A maioria dos governos regula o preço da água mas, por causa dos "subsídios perversos", isto freqüentemente não resulta em preços sensatos para a água. Mas Brabeck-Letmathe tem uma idéia alternativa: comércio de água.

Ele compara o conceito ao comércio de carbono, que estabeleceu um preço ao dióxido de carbono emitido na Europa. Segundo um chamado mecanismo de "cap-and-trade" (limitar e comerciar), um limite é imposto sobre quanto carbono as empresas podem emitir e permite que elas negociem suas cotas umas com as outras. Um sistema semelhante com água significaria que empresas e produtores rurais teriam o direito ao uso de uma certa quantidade de água. Se quisessem usar mais do que sua cota, eles teriam que comprar os direitos de outras empresas ou produtores rurais no sistema de comércio.

Esta idéia não é nova, ele disse -moradores do deserto em Omã negociam uns com os outros o direito de acesso aos reservatórios de água há milhares de anos. Mais recentemente, na Suíça, lar da Nestlé, um sistema foi implantado em certas áreas onde os agricultores têm direito a uma certa quantidade de água dos canais de irrigação e, dependendo do produto que cultivam, podem decidir usar menos água em troca do pagamento por um vizinho que deseja usar mais.

Fred Krupp, presidente do Fundo de Defesa Ambiental, uma entidade beneficente americana, é um defensor entusiástico da idéia. Ele disse em um encontro em Davos, em janeiro: "Projetado e aplicado de forma apropriada, um instrumento baseado no mercado como o cap-and-trade pode ser uma solução para nossa crise de água, da mesma forma que para o aquecimento global".

Mas Jamie Skinner, principal pesquisador do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, disse que há obstáculos legais e políticos ao comércio de água. Ele apontou para a Espanha, onde os agricultores não possuem a água e portanto não poderiam negociá-la sem separar os direitos de água dos direitos de terra, o que é complicado. Ele acrescentou que para o comércio de água funcionar, "algum grau de privatização do recurso é necessário, o que provou ser politicamente difícil ou detestável em muitos contextos".

Krupp reconheceu que haveria problemas legais e de gestão, assim como interesses investidos a serem superados -particularmente o lobby agrícola, já que a agricultura recebe o melhor tratamento em quase todo o mundo quando se trata de direitos de água, assim como paga menos por sua água do que qualquer outro setor. Ele disse: "Não há dúvida de que temos muito o que fazer para assegurar que o comércio de água ocorra de uma forma que seja custo-eficaz e impeça uma vantagem indevida. Nós também precisamos assegurar que as transferências de água não prejudiquem as comunidades rurais, as populações de baixa renda ou o meio ambiente. Um sistema eficaz de cap-and-trade para água exigiria muita medição e fiscalização".

Mas ele insistiu: "Estas questões são administráveis e nós e outros já estamos trabalhando nelas". Existem outras diferenças que atrapalhariam a implantação de um sistema de cap-and-trade para a água, como foi feito com o carbono. O comércio de carbono é virtual: as empresas trocam permissões para emitir o gás do efeito estufa em vez de transferir tonelagem de fato dele. Mas a água é pesada e difícil de transportar por longas distâncias. "Ela não é fungível, não pode ser entregue", disse Edward Kerschner, estrategista chefe de investimento do Citi Global Wealth Management.

As únicas remessas mundiais significativas são de água engarrafada, que é um produto caro freqüentemente considerado como ambientalmente inseguro. Logo, qualquer comércio de água só poderia ocorrer dentro de pequenas regiões, como as áreas que compartilham o recurso. Os exemplos da Suíça e alguns poucos outros mostram que sistemas locais de comércio de água podem ser desenvolvidos, desde que haja governança para assegurar que o comércio seja conduzido de forma justa e haja vontade política para seguir em frente.

Independente do comércio de água vingar ou não, Brabeck-Letmathe acredita que uma coisa é certa: as empresas devem se preparar para uma água mais cara, cujo uso também será mais regulado. Ele disse: "Nós teremos que pagar mais por nossa água -e é correto que assim seja". Muitas empresas prefeririam um sistema de comércio de água em vez de terem suas contas aumentadas arbitrariamente por empresas de água ou burocratas, ele argumentou.

Como Krupp concluiu: "Que relevância tudo isso tem para a comunidade empresarial? Um futuro seguro para a água, incluindo sistemas fluviais mais saudáveis, contribui para um clima de negócios mais saudável. Os mercados e a preservação são as alternativas mais custo-eficazes para obter este futuro seguro para a água". Para os pobres que pagam valores desproporcionalmente altos por sua água, um preço mais justo não poderia vir mais cedo.

(Por Fiona Harvey, Financial Times, tradução de George El Khouri Andolfato, UOL, 03/04/2008)


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