A publicação da Medida Provisória 422 pelo governo federal, em 26 de março, foi muito mal recebida por ambientalistas. As críticas mais duras vêm do Greenpeace, que taxou a medida como Programa de Aceleração da Grilagem – PAG. O texto abre a possibilidade de “regularização” sem licitação pública de terras invadidas por posseiros na Amazônia, com até 1,5 mil hectares. Eles poderão comprar as terras pagando ao governo, sem concorrência.
Para o diretor de Políticas Públicas da entidade, Sérgio Leitão, o ato governista enfraquece o combate ao desmatamento, perdoa quem tomou ilegalmente terras públicas e sinaliza que novas ocupações e derrubadas serão legalizadas no futuro. “O texto atende à bancada ruralista e revela os interesses reais do governo sobre a floresta tropical. O governo lançou o PAG – Programa de Aceleração da Grilagem”, diz.
O ativista também critica o limite de até 1,5 mil hectares para regularizações divorciadas de licitação pública. Antes da MP 422, esse índice era de até 500 hectares. Segundo ele, isso beneficia posseiros de maior porte, não mais apenas agricultores familiares. “Não se tratam mais de pequenos produtores. O discurso social do governo está prejudicado”, afirma Leitão.
De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, a MP 422 poderá “legalizar” até 90% dos posseiros da Amazônia. Parlamentares ruralistas dizem que a medida beneficiará até 98% daqueles que invadiram terras públicas na região. A lógica, segundo um assessor do Incra ouvido pelo O Eco, é a de “legalizar para melhor fiscalizar”. Isso coloca em xeque, novamente, a capacidade do estado brasileiro de fazer valer a lei na região.
Na justificativa para edição da MP, o ministro Guilherme Cassel (MDA) diz que “A medida tem relevância na medida em que o Código Florestal (Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965) determina (...) que a propriedade rural, situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal, tenha no mínimo 80% de reserva legal, de modo que a regularização no limite hoje previsto na Lei de Licitações, de até quinhentos hectares, alcançaria, em boa parte dos casos, apenas propriedades com a utilização de no máximo cem hectares, o que foge à realidade atual da Amazônia Legal.”
História revivida
Na avaliação do pesquisador Paulo Barreto, do Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (PA), o governo acerta ao tentar a regularização das tomadas ilegais de terras na Amazônia. No entanto, o diretor da entidade afirma que o problema dos posseiros foi criado pelo próprio governo, ao longo dos anos, e pode ser ampliado pela MP 422, a décima publicada em 2008.
“A MP é positiva porque cria um mecanismo de regularização, mas o governo repete o padrão histórico de aceitar por anos ocupações ilegais de terras e, no fim, abrir uma brecha para sua regularização”, diz. A situação se complica pela proximidade do período eleitoral, quando historicamente sobem as taxas de desmate na floresta tropical. “Para o governo, editar a medida provisória é bom, traz votos. Mas para a Amazônia, é muito ruim”, arremata.
Segundo Barreto, a MP pode reforçar a expectativa entre os candidatos a posseiros e grileiros de que nova “regularização” ocorra no futuro, ampliando a ocupação de terras públicas. “Para que isso não aconteça novamente, o governo deveria ser muito duro em fiscalização. Além da edição da medida provisória, o governo tem que combater novas ocupações”, alerta ele, que é mestre em Ciências Florestais pela Universidade de Yale (EUA).
Conforme seu relato, as posses ilegais de terras na Amazônia se ampliaram a partir de 1985, quando o governo lançou o Plano de Reforma Agrária da Nova República, o primeiro plano nacional de reforma agrária. Além de criar um ministério específico para a reforma agrária, que viria se tornar o atual MDA, o texto estimulou a tomada ilegal de terras em todo País, sempre com a expectativa de futura legalização. “Desde então, há pedidos para regularização de terras tomadas na região. Os posseiros têm parcela de culpa, mas agora o governo joga a culpa só nos posseiros e se exime de responsabilidade”, comenta o pesquisador.
Já em 2004, governo realizou uma chamada para recadastramento de terras na Amazônia, mas o tamanho do problema tornou a medida inviável. Isso levou à publicação de regra dispensando licitações para legalizar áreas com até 500 hectares. Após os alarmantes números sobre a retomada do desmatamento na Amazônia, divulgados pelo governo no início de 2008, um novo chamado para regularização de terras foi emitido, para recadastramento nos 36 municípios que mais desmatam a floresta tropical. “Mas seria novamente complicado regularizar terras com licitações públicas e vistorias. Esse é o contexto da publicação da nova medida provisória. É um reconhecimento do grave problema, sempre empurrado pela barriga do governo”, ressalta Barreto, do Imazon.
Terra a quem tem posse
Em entrevista publicada na página do Incra, o diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária Roberto Kiel procura explicar alguns reflexos da MP 422. Segundo ele, a medida era reivindicada por posseiros na Amazônia, que agora poderão comprar terras públicas que já ocupavam, sem concorrer com outros interessados. Antes da comercialização, o Incra deverá analisar se as “propriedades” são produtivas, se obedecem às leis trabalhistas e ambientais e se foram tomadas de “forma pacífica”. Documentos básicos (CPF e RG) também serão checados, diz o órgão federal.
Se tudo correr bem e os lotes forem comprados pelos posseiros, esses ganharão uma Certidão de Cadastro de Imóvel Rural e terão suas propriedades incluídas no Sistema Nacional de Cadastro Rural do governo. Assim, poderão se beneficiar de créditos públicos como os oriundos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf. O Eco vem mostrando que essa e outras fontes de recursos públicos são usadas para desmatar a Amazônia, capitalizando as derrubadas.
Para a compra de terras pelos posseiros, Kiel afirmou em sua entrevista que há um ano de carência e outros cinco para quitar os pagamentos. Só depois de dez anos os imóveis poderão ser vendidos a outras pessoas. “O prazo de pagamento é um absurdo extremamente generoso com posseiros que desmataram, venderam a madeira, plantaram e se capitalizaram”, avalia Paulo Barreto, do Imazon.
Cheio de dúvidas, o pesquisador enviou ao Tribunal de Contas da União – TCU questionamentos sobre como a regularização de terras públicas tomadas ilegalmente na Amazônia funcionará na prática. Também com a pulga atrás da orelha, O Eco remeteu uma série de questões ao Incra, por e-mail, a pedido de sua assessoria de imprensa. No entanto, nenhuma das perguntas foi respondida pelo órgão público até o fechamento desta matéria. Confira os questionamentos mais abaixo. O Ministério do Meio Ambiente também não quis comentar o caso.
Mera coincidência
Outra polêmica provocada pela MP422 se deve ao fato de que seu conteúdo é praticamente uma cópia do Projeto de Lei 2278/2007, do deputado federal Asdrubal Bentes (PMDB-PA). A indiscreta semelhança foi duramente criticada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP).
Em notícia veiculada pela Agência Câmara no dia 27 de março, o parlamentar questionou “Como é que levam para o presidente da República uma proposta de MP que é uma cópia de um projeto? Evidentemente ninguém assinaria se soubesse dessa circunstância”. O texto, no entanto, foi assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo ministro Guilerme Cassel (MDA). A MP está tramitando no Congresso, onde tem até 120 dias para ser votada e transformada em lei, ou não.
Questões que o Incra não respondeu
1. Qual a diferença, na prática, entre posseiros e grileiros de terras públicas?
2. O que acontecerá com os posseiros que não tiverem dinheiro para comprar as terras públicas que tomaram ou documentos básicos, como CPF e RG?
3. Por quanto o Incra estima que sejam negociados os hectares passíveis de regularização na Amazônia? Em quanto se estima o montante total que possa ser obtido com a regularização das posses?
4. Que destino terá o dinheiro obtido com a regularização dessas terras?
5. Como foi definido o um ano de carência e os cinco para pagamento?
6. Como se saberá o tempo em que o posseiro está sobre a terra, ou se é o mesmo posseiro desde o início da ocupação? Como se saberá que o posseiro estava no local antes de 2004?
7. O Incra tem ou terá fiscais em quantidade suficiente para que a regularização de terras por meio de licitações seja encaminhada corretamente, dentro da lei?
8. Há sintonia com a área ambiental do governo para se verificar o atendimento de toda a legislação ambiental pelos posseiros?
9. O Incra afirmou que até 90% das terras tomadas por posseiros na Amazônia poderão ser regularizadas. O Imazon estima que 40 milhões de hectares estejam nas mãos de posseiros na região. Supondo que a entidade esteja correta, seriam 36 milhões de hectares passíveis de regularização. Como se chegou a essa situação na Amazônia?
10. O limite de 15 módulos fiscais imuniza as áreas à desapropriação para reforma agrária. Mas a MP 422 não está promovendo uma espécie de reforma agrária na Amazônia, dando margem ao assentamento definitivo de posseiros?
11. Por que a MP 422 é idêntica ao PL 2278/2007, do deputado Asdrubal Bentes (PMDB/PA)?
12. Editar uma medida como a MP 422, em um ano eleitoral, quando historicamente crescem as taxas de desmatamento na Amazônia, não pode ser mal interpretado na região, como uma espécie de sinalização para que se avance em novas áreas de floresta?
(Por Aldem Bourscheit, O Eco, 02/04/2008)