"Oferta: R$ 1 mi por sua vida". Em pleno século 21 fica quase impossível imaginar essa situação. Mas na Amazônia, onde a impunidade e a luta por questões fundiárias se intensificam a cada dia, ameaças contra a vida daqueles que defendem a região são constantes. Sem controle e sem justiça a Amazônia acaba virando uma "terra de ninguém" e essa situação vem piorando nos últimos anos. "Só no estado do Pará, 800 pessoas foram assassinadas por causa da luta por terras e questões ambientais nas últimas décadas", revela José Batista Gonçalves Afonso, assessor jurídico da CPT (Comissão Pastoral da Terra) de Marabá.
De acordo com a CPT, cerca de 20 pessoas estão na lista de marcados para morrer e tem que viver sob proteção policial. "A Amazônia é uma região extremamente grande e complexa. Acompanhamos a questão rural e vemos que a agressão às populações da região está num momento bastante crítico", revela Afonso. Segundo ele, a alta do preço da soja, do aço e da carne no mercado internacional, além da vinda do biocombustível, tem provocado a expansão da monocultura e da mineração na região amazônica, trazendo problemas não só para a questão ambiental, mas também para a sociedade. "Os grandes produtores expandem suas terras e desapropriam as populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, entre outras".
Os estados que mais sofrem com os conflitos agrários são: Pará, Mato Grosso e Rondônia. "Ao invés de o governo tentar coibir a ação de grandes latifundiários, ele apóia o modelo vigente. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) vai viabilizar obras na região que promovam ainda mais a produção de grãos, minérios e carne", comenta. Para ele, aqueles que se contrapõem, sofrem um processo de criminalização. "Quando a sociedade luta pelo direito agrário, ela é vista como criminosa e aqueles que defendem os direitos dessas populações sofrem da violência privada, das ações de pistoleiros", argumenta.
Contrariando os interesses
Dom Erwin Krautler, bispo de Altamira (PA), é apenas um entre as lideranças que têm que viver sob proteção policial 24h/dia para não se tornar mártires da Amazônia. O religioso vem sendo ameaçado de morte há vários anos, por causa de sua atuação determinada em favor dos povos indígenas e dos trabalhadores rurais daquele estado. "A minha luta não pode parar. Muita gente morreu pela Amazônia e aquilo que eles defenderam, nós continuamos defendendo, não tem trégua", explica ele.
Ao atuar na luta pelos direitos das comunidades camponesas e pela preservação ambiental na região amazônica, Dom Erwin denunciou a exploração sexual de adolescentes por políticos; a emasculação e assassinato de meninos no estado e a atuação de latifundiários, grileiros, madeireiros e fazendeiros com práticas de trabalho escravo e de destruição ambiental. "A minha luta é pela sobrevivência. Estou vivendo numa área que o Estado abandonou. Se assumimos a defesa pelo meio ambiente e pelos povos indígenas, contrariamos interesses de ruralistas", afirma o bispo.
Manifesto
Para defender a vida de Dom Erwin, organizações da sociedade civil escreveram um manifesto no dia 18 em apoio ao bispo. No documento está escrito "Sabe-se, no entanto, que está em curso um plano detalhado para o seu assassinato, cujas características revelam ser obra de pessoas de grande poder econômico, provavelmente um 'consórcio', como o que vitimou covardemente a irmã Dorothy Stang três anos atrás. A prova desse poder econômico começa pelo valor oferecido aos eventuais assassinos: um milhão de reais!"
Não basta proteção policial
Outro que está com sua vida em risco é o frei Henri Burin de Roziers. Ele faz parte da Comissão Pastoral da Terra e está sob a segurança da polícia militar paraense. "Eu sofro ameaças por telefone. Além de mim, há 116 pessoas na mesma situação".
Para ele, é preciso mais do que proteção policial. "Questiono essa ação do governo. Para acabar com a violência, é preciso ir às causas dela. Os fazendeiros ameaçam e nunca são punidos. O problema é a impunidade", diz. Questionado sobre a continuidade da luta perante as ameaças, o frei revela: "Elas motivam ainda mais o nosso trabalho. Elas mostram que não podemos abrir mão dele".
A luta fora do Brasil
A violência contra defensores da Amazônia não se restringe ao país. No dia 26 de fevereiro deste ano, Don Julio García Agapito, representante governamental da Província de Tahuamanu, em Madre de Diós, região da Amazônia peruana foi assassinado por ter apreendido um caminhão carregado com mogno ilegal na sua comunidade
Segundo Angélica Almeyda, pesquisadora do tema, a região é bem conhecida por ser um dos lugares com maior biodiversidade do planeta. Entre os madeireiros, Madre de Dios é conhecida como a última fronteira onde ainda existe mogno em escala comercial. "Este processo tende a se intensificar em um contexto de abertura da fronteira entre Brasil e Peru, com a estrada ligando o Brasil ao Pacifico por meio do Acre".
A vida pela Amazônia
Muitos foram aqueles que defenderam a Amazônia até a morte. Direito da terra, meio ambiente, denúncias de exploração foram algumas de suas lutas. Veja abaixo a história de alguns deles:
Dorothy Stang
Bem de manhãzinha, às 7h30 do dia 12 de fevereiro de 2005, em uma estrada de terra de difícil acesso, a 53 quilômetros da sede do município de Anapu (PA), perguntam à religiosa: "você está armada?". Ela então afirmou: "eis a minha arma!". E mostrou a Bíblia Sagrada. Leu ainda alguns trechos do livro àquele que logo em seguida lhe balearia.
Foram sete tiros que mataram, aos 73 anos de idade, a irmã Dorothy Stang. Foi assim que a vida de uma das maiores defensoras da Amazônia terminou. Irmã Dorothy estava presente na região desde a década de 1970 junto aos trabalhadores rurais da Região do Xingu. Sua atividade pastoral e missionária buscava a geração de emprego e renda com projetos de reflorestamento em áreas degradadas junto aos trabalhadores rurais da área da rodovia Transamazônica. Seu trabalho focava-se também na minimização dos conflitos fundiários na região.
Defensora de uma reforma agrária justa e conseqüente, Irmã Dorothy mantinha intensa agenda de diálogo com lideranças camponesas, políticas e religiosas, na busca de soluções duradouras para os conflitos relacionados à posse e à exploração da terra na região Amazônica. Irmã Dorothy recebeu diversas ameaças de morte, sem deixar intimidar-se. Pouco antes de ser assassinada declarou: "não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar".
Dema
Ademir Alfeu Federicci, o Dema, foi assassinado em sua casa, em Altamira (PA), no dia 25 de agosto de 2001. O ex-coordenador do MDTX , movimento que congrega mais de 100 organizações rurais e urbanas, como sindicatos, associações de bairro e ONGs, chegou em Medicilândia (PA), município da região Transamazônica, em 1975.
Fez parte de sua trajetória a coordenação da Pastoral da Juventude, a criação do Movimento pela Sobrevivência na Transamazônica (MPST), a liderança de três caravanas a Brasília para reivindicar a recuperação da rodovia Transamazônica e a ampliação dos serviços de saúde e educação na região. Também participou dos "Gritos da Terra Brasil", manifestações que incluíam reivindicações pelo estabelecimento de crédito bancário para pequenos produtores.
À frente do MDTX, a liderança voltou-se, entre outras atividades, a denunciar desvios de recursos da extinta Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), a retirada ilegal de madeira em áreas indígenas e a grilagem de terras. Um pouco antes de sua morte, liderava um movimento de resistência à construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte, obra prevista no Avança Brasil de FHC que hoje integra o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), do governo Lula. Apesar de sindicalistas e organizações apontarem que o assassinato tinha sido encomendado, o inquérito policial para apurar as causas de sua morte foi concluído com falhas graves em menos de uma semana e classificou o caso como latrocínio.
Brasília
Com doze tiros na cabeça, o líder sindical Bartolomeu Morais da Silva, mais conhecido como Brasília, foi seqüestrado, torturado e assassinado. Seu corpo foi encontrado às margens da rodovia Santarém-Cuiabá nas proximidades do distrito de Castelo dos Sonhos, local onde o sindicalista residia e atuava como delegado sindical representando o sindicato dos Trabalhadores Rurais de Altamira e também primeiro suplente de vereador pelo PT no município.
Desde 1997 que o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Altamira vinha pressionando o INCRA e o governo do estado no sentido de resolver os graves conflitos fundiários na região de Castelo dos Sonhos, Distrito de Altamira, próximo à divisa com Estado de Mato Grosso, na rodovia Cuiabá Santarém.
Miguel de Freitas da Silva
O presidente da Associação de Trabalhadores Rurais de Ipaú, Miguel Freitas da Silva, de 44 anos, pai de oito filhos, foi assassinado a tiros por dois pistoleiros no dia 1 de setembro de 2001. Ele estava sentado em frente à sua casa, em Tucuruí (PA), quando chegaram os dois homens em uma motocicleta. Um deles perguntou: "quem é o Miguel?". O sindicalista respondeu: "sou eu". Os dois sacaram suas armas e dispararam vários tiros. Dois tiros atingiram Freitas da Silva no peito e tórax. Ele morreu ao chegar no hospital da cidade. Além de sindicalista, Miguel também lutava pela desapropriação de áreas improdutivas da região.
Vicente Cañas
Vicente Cañas é um dos mais cultuados heróis mato-grossenses da luta pelos direitos indígenas. Sua morte, ocorrida presumivelmente em 6 de abril de 1987, é o exemplo típico da união das forças ruralistas com autoridades constituídas
para ampliar as áreas agricultáveis de Mato Grosso, à custa de prejuízo e morte dos povos tradicionais.
Foi assassinado no barraco em que vivia solitário, na margem esquerda do rio Iquê, afluente do Juruena, em terras indígenas dos enawenê-nawê, cravadas entre os municípios de Juína, Comodoro e Campo Novo do Parecis, no médio-norte de Mato Grosso. O inquérito policial que deveria investigar o crime durou intermináveis seis anos e foi marcado por ocorrências inusitadas, como o desaparecimento de provas. O crânio da vítima, lesado por porretadas, foi encontrado casualmente na praça da rodoviária, em Belo Horizonte (MG), em fevereiro de 1989, quando deveria estar sob cuidados do Instituto Médico Legal (IML).
Chico Mendes
Francisco Alves Mendes Filho, mais conhecido como Chico Mendes, foi um seringueiro, sindicalista e ativista ambiental brasileiro. Sua intensa luta pela preservação da Amazônia o tornou conhecido internacionalmente e foi a causa de seu assassinato, em 22 de dezembro de 1988.
Iniciou a vida de líder sindical em 1975, como secretário geral do recém-fundado Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. A partir de 1976 participa ativamente das lutas dos seringueiros para impedir o desmatamento através dos "empates" - manifestações pacíficas em que os seringueiros protegem as árvores com seus próprios corpos. Organiza também várias ações em defesa da posse da terra pelos habitantes nativos.
Sob sua liderança a luta dos seringueiros pela preservação do seu modo de vida adquiriu grande repercussão nacional e internacional. A proposta da "União dos Povos da Floresta" em defesa da Floresta Amazônica busca unir os interesses dos indígenas, seringueiros, castanheiros, pequenos pescadores, quebradeiras de coco babaçu e populações ribeirinhas, através da criação de reservas extrativistas.
Em 1987, Chico Mendes recebeu a visita de alguns membros da ONU, em Xapuri, que puderam ver de perto a devastação da floresta e a expulsão dos seringueiros causada por projetos financiados por bancos internacionais. Dois meses depois leva estas denúncias ao Senado norte-americano e à reunião de um banco financiador, o BID. Por sua luta, Mendes recebe vários prêmios internacionais, destacando-se o Global 500, oferecido pela ONU, por sua luta em defesa do meio ambiente.
Ao longo de 1988 participa da implantação das primeiras Reservas Extrativistas criadas no Acre. Após a desapropriação do Seringal Cachoeira, em Xapuri, propriedade de Darly Alves da Silva, agravam-se as ameaças de morte contra Chico Mendes e ele declarou às autoridades policiais e governamentais que corria risco de vida e que necessita de garantias.
Em 22 de dezembro de 1988, exatamente uma semana após completar 44 anos, Chico Mendes foi assassinado na porta de sua casa. Casado com Ilzamar Mendes, deixou dois filhos, Sandino e Elenira, na época com dois e quatro anos de idade, respectivamente.
A justiça brasileira condenou os fazendeiros Darly Alves da Silva e Darcy Alves da Silva, responsáveis por sua morte, a 19 anos de prisão, em dezembro de 1990. Darly fugiu em fevereiro de 1993 e escondeu-se num assentamento do Incra, no interior do Pará, chegando mesmo a obter financiamento público do Banco da Amazônia, sob falsa identidade. Só foi recapturado em junho de 1996. A falsidade ideológica rendeu-lhe uma segunda condenação: mais dois anos e oito meses de prisão.
Em dezembro de 2007, na mesma semana em que o assassinato de Chico Mendes completava 19 anos, uma decisão da juíza Maha Kouzi Manasfi e Manasfi beneficiou o fazendeiro Darly Alves da Silva com a prisão domiciliar até março de 2008.
(Por Thais Iervolinom, Amazonia. org.br, 31/03/2008)