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mercúrio contaminação com agrotóxicos substâncias químicas tóxicas
2008-03-31

Outono de 1978. Alguns pescadores do pacato balneário Hermenegildo, localizado no município de Santa Vitória do Palmar, preparam-se para trabalhar. À medida que se aproximam do mar, sentem um odor insuportável, que irrita as narinas e provoca tosse forte em todos. Quando olham ao redor, percebem que estão cercados de mariscos mortos. Não há dúvida: algo fora do comum tinha acontecido.

Em poucos dias, o local é tomado por uma multidão de repórteres, ambientalistas, cientistas, autoridades de todas as esferas governamentais e, claro, muitos curiosos. Depois de muita controvérsia, a posição oficial: a praia gaúcha havia registrado um fenômeno chamado maré vermelha, que ocorre quando um determinado tipo de alga se prolifera em quantidades acima do normal.

Caso encerrado? Longe disso. A versão do governo foi contestada por entidades defensoras do meio ambiente e por especialistas. Exames de urina feitos com operários que trabalhavam nas proximidades indicaram a presença de mercúrio, metal perigoso quando em contato com a pele ou mucosas. Outra análise alternativa, desta vez com amostras de água e sangue de animais mortos, acusou isotiocianato de metila, uma substância que não é encontrada em algas, e sim em alguns agrotóxicos, hoje em desuso.

"O acontecimento para nós foi claro. O Ministério da Saúde tentou alterar o resultado verdadeiro de qualquer jeito. Tomou a posição do governo e fechou o caso para todo o resto", critica o agrônomo aposentado Milton Guerra. Um dos fundadores do Centro de Estudos Toxicológicos do Rio Grande do Sul (CET-RS), ligado à Universidade Federal de Pelotas, ele ressalta que o instituto enviou uma equipe ao local para colher amostras. "Disseram que é um fenômeno natural. Mas ele não acontece em mar aberto, e sim em baías, onde as bactérias proliferam com mais facilidade", explica.

Um dos integrantes da equipe do CET-RS que viajou até o Hermenegildo, o bioquímico Gastão Gisler, era o responsável pelas análises. E não titubeia ao confirmar o resultado: "Foi encontrado isotiocianato de metila. Insolúvel em água, ele produz seu efeito na superfície. Ou seja, não casou problemas na profundidade, só na rebentação, quando se espalhou na forma de aerossol. Por isso os peixes, que estavam na profundidade, ficaram a salvo". Quanto aos riscos para seres humanos, Gisler faz uma observação. "Se a substância for engolida, não causa mal. Mas quando respirada, é como se fosse vidro moído. Os animais que a respiravam morriam de derrame pulmonar."

A tese divulgada pelo CET-RS em meados de abril de 1978 foi aceita por ambientalistas e até hoje é considerada a mais verossímil por quem acredita que o que ocorreu no Hermenegildo não foi obra da natureza. Mas até que se chegasse a ela, muitas especulações ocorreram. Inclusive por parte do próprio governo, que depois daria o caso por encerrado alegando a ocorrência de maré vermelha.

Caso provocou comoção no balneário
Em 31 de março de 1978, um temporal abalou a faixa litorânea próxima à fronteira com o Uruguai. A morte maciça de animais, especialmente de moluscos, só foi constatada no dia seguinte, com a calmaria. O vento sul intensificou o cheiro ruim e a mortandade chocou a população de Santa Vitória do Palmar, município onde se localiza a praia do Hermenegildo.

Situada a cerca de 500 quilômetros de Porto Alegre, a cidade acabou atraindo a atenção da mídia nacional por conta de um fenômeno que especialistas e autoridades não conseguiam desvendar. "Éramos 20, 30 repórteres, cinegrafistas, fotógrafos. Passamos praticamente um mês lá, e ficou evidente a dificuldade do governo em dar um parecer definitivo", lembra o jornalista Sérgio Becker, então correspondente de O Estado de S. Paulo e do Jornal da Tarde.

O historiador vitoriense Homero Vasques Rodrigues, que possui uma casa no Hermenegildo, também recorda da comoção causada pela tragédia ambiental. "Havia muita gente aqui. A polícia fez uma espécie de cerco à praia para impedir que quem não fosse do governo não se aproximasse", afirma.

Rodrigues é um dos que defendem que a teoria da maré vermelha não passa de uma farsa. Tanto que jamais aborda o assunto como um fenômeno natural, mas sim como um crime ambiental. Seu conterrâneo, o geógrafo, historiador e jornalista Péricles Azambuja dá tratamento semelhante ao fato. Em seus livros, ele refere-se ao "ecoflagelo do Hermenegildo". "Maré vermelha? Como? A natureza, pela primeira vez, falha em sua ação restauradora? Torna-se inerte diante do que ela mesma provocou? Não é de se acreditar", questiona Azambuja na obra História das Terras e Mares do Chuí.

Milhares de mariscos morreram. Várias tatuíras. Cães, gatos, pássaros, galinhas e até um cavalo. Segundo algumas versões, que acabaram desmentidas posteriormente, focas e leões marinhos. Poucos peixes foram atingidos. Não houve nenhuma morte humana, apesar de moradores da região terem sido internados em um hospital após sentir o cheiro, ora comparado a enxofre, ora a amoníaco.

"O principal sintoma era a irritação das vias respiratórias. Mas, na medida em que o sujeito se afastava da costa, os sintomas diminuíam, ficavam fracos. Muitos animais foram atingidos, até mesmo alguns de grande porte acabaram afetados de forma mortal. Mas ninguém morreu", diz o médico Luiz Carlos Scherer, que chefiava a unidade sanitária local.

Primeiras impressões já mostravam divergências
No início, o incidente não foi levado a sério, nem mesmo pelos moradores de Santa Vitória. Nos primeiros dias, apenas os poucos habitantes do Hermenegildo foram testemunhas do que ocorreu a partir do sábado. "Nós fomos à praia apenas na segunda-feira, pois no começo não se acreditou muito no que os pescadores estavam falando - que a orla estava coalhada de mariscos, com peixes morrendo etc. Foi aí que constatamos a verdadeira e brutal dimensão da tragédia", argumenta Rodrigues.
Logo depois dos moradores, chegou ao local o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), José Lutzenberger. O lendário ecologista, morto em 2002, mostrou-se revoltado com o que acontecera no pacato balneário: "Que civilização é essa que até os lugares mais remotos são hoje contaminados a ponto de tornar-se a atmosfera irrespirável?"

Lutz, como era conhecido, passou alguns dias no Hermenegildo avaliando a situação e observando os animais mortos. Um dos pioneiros na defesa da ecologia no Estado, ele não poupava críticas ao governo, que até então ainda não havia verificado o incidente in loco. E discordava da tese da maré vermelha, que já começava a ser especulada. Em algumas ocasiões chegou a admitir que o estranho fenômeno natural pudesse ter ocorrido, mas apenas para servir de propulsor à ação de algum produto tóxico - para ele, o verdadeiro causador da catástrofe.

Preocupado com a ocorrência, que vinha tomando grandes proporções, o então secretário estadual da Saúde, Jair Soares, convocou especialistas para analisar amostras da água e dos animais afetados. Como os exames, realizados por técnicos e laboratórios diferentes, não chegavam a um resultado comum, recorreu ao governo federal. O ministro da Saúde, Almeida Machado, e o secretário especial do Meio Ambiente, Paulo Nogueira Neto, acabaram, então, indo até o Hermenegildo, onde ficaram por quase uma semana.

Depois de alguns dias, o vento mudou de direção e, com isso, o mau cheiro começou a se dissipar. No entanto, como ainda não havia nenhuma garantia de segurança, o "ecoflagelo" continuava a assustar a população, cada vez mais apreensiva pela falta de uma resposta convincente.
 
(JC-RS, 31/03/2008)


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