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trabalho escravo
2008-03-27
Denúncia de vítima torturada com ferro quente levou fiscais até a Fazenda Bom Sucesso, onde houve 35 libertações. Para se defender, proprietário tentou se aproveitar da dispensa de carteira prevista na MP 410/2007

Perdeu quem apostou que a dispensa de assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) para trabalhos no meio rural de até dois meses, estabelecida pela Medida Provisória (MP) 410/2007, não seria utilizada por empregadores para tentar burlar a fiscalização oficial. Com o intuito de driblar a operação do grupo móvel do governo federal, 23 trabalhadores rurais foram induzidos a assinar contratos nos moldes da MP 410, um dia após o flagrante promovido na Fazenda Bom Sucesso, em Paragominas (PA), por quatro auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), nove inspetores da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e um procurador do Trabalho.

No dia 12 de fevereiro deste ano, a equipe de fiscalização encontrou 35 pessoas - entre eles três adolescentes - em condições análogas à escravidão na propriedade pertencente ao fazendeiro Gilberto Andrade. A denúncia que motivou à operação foi feita - depois de um périplo extenuante que incluiu longas caminhadas, caronas e noites ao relento - por um trabalhador que alega ter fugido da propriedade depois de ter sido torturado com queimaduras de ferro quente para marcar gado (com formato de ferradura de cavalo) nos braços, rosto e barriga. O denunciante aproveitou a presença de Gilberto Andrade na fazenda, no dia 25 de janeiro, para reclamar da falta de comida e do não recebimento dos salários. Em resposta às reclamações, o próprio proprietário da fazenda teria contado com a ajuda do gerente Fernando Silva Teles e do "gato" (contratante da empreitada) Antonio Alves do Carmo, conhecido por "Ceará", para torturar a vítima com ferro quente.

Parte do grupo encontrado na Fazenda Bom Sucesso, cujas atividades eram a criação de gado leiteiro e o plantio de capim, vivia em quatro alojamentos contíguos a currais e estábulos "em situação condenáveis de habitabilidade e sem a mínima condição de higiene e segurança", segundo descrição dos fiscais. Trabalhavam sem carteira assinada e não recebiam salários de modo regular. Anotações em cadernetas referentes a aquisições de equipamentos de proteção individual (EPIs) e de mantimentos também foram encontradas, mas até em virtude da ausência da remuneração mensal, não vinham sendo efetivamente cobradas dos trabalhadores.


Os aparelhos sanitários do banheiro estavam danificados e todos eram obrigados a realizar suas necessidades fisiológicas no mato, expostos ao ataque de animais peçonhentos. As refeições eram feitas sobre bancos improvisados ou no chão, sobre um piso sujo de esterco. O fogão a lenha esfumaçava todo o acanhado ambiente e provocava constante incomodo respiratório. Os fiscais constataram até a existência de vísceras do gado - bofe (pulmão) e úbere (glândulas mamárias) - expostas em vasilhame sem tampa, com aparência e odor de carne deteriorada, que "foram fornecidas pelo empregador e serviriam para o preparo das refeições dos empregados", segundo relatório dos fiscais.

A água consumida pelos empregados vinha de um poço artesiano, mas era armazenada em caixas d´água sem tampa, cheia de lodo e com presença de girinos (larvas de sapos). Duas espingardas calibre 22 também foram apreendidas no local. "A sutil retenção dos salários que, sob o argumento da prestação de conta futura, aprisiona na indefinição de data; a dificuldade de acesso; a distância e a falta de transporte para atendimento do deslocamento dos trabalhadores, são condutas que afrontam os regramentos básicos do direito e revelam o grau de liberdade que é dada aos trabalhadores", descreve o relatório da fiscalização.

Diante de tal quadro, o grupo móvel interditou os alojamentos e aplicou 14 autos de infração, além de registrar os 35 trabalhadores, emitir 16 carteiras de trabalho e efetivar 34 requerimentos de seguro-desemprego. Em casos como esse, efetiva-se o pagamento dos salários devidos e das multas rescisórias e as pessoas são transportadas de volta para o local de onde vieram.

Por causa da quantidade de empregados e da falta de transporte adequado ao deslocamento dos mesmos, o gerente da Fazenda Bom Sucesso, Fernando Silva Teles, se comprometeu a alojar provisoriamente as pessoas na sede da propriedade até a conclusão dos pagamentos e a chegada de transporte adequado para os libertados.

No dia 13 de fevereiro deste ano, porém, nem o proprietário Gilberto e nem o seu preposto compareceram ao local e os pagamentos não foram feitos. No dia seguinte (14 de fevereiro), os integrantes do grupo móvel retornaram à fazenda. Ficaram sabendo por meio dos trabalhadores que, durante a madrugada (do dia 13 para 14), o "gato" (contratante da empreitada) conhecido por "Ceará" apareceu num carro não-identificado de madrugada. Ceará acordou os trabalhadores para que eles assinassem um contrato de prestação de serviço. A maioria dos trabalhadores, 23 dos 35 libertados, acabou firmando o documento.

"Colhemos depoimentos dos trabalhadores e eles nos disseram que não sabiam o que estavam assinando", relata o procurador Francisco Cruz, do Ofício de Marabá, que acompanhou a operação. Na ocasião dos pagamentos, conta ele, os empregadores não apresentaram nenhum contrato e cumpriram com a obrigação de quitar as dívidas trabalhistas de R$ 29,3 mil e providenciar o transporte de volta aos libertados. A operação foi concluída no dia 15.

No dia 27 de fevereiro de 2008, entretanto, em atendimento parcial de notificação para apresentação de documentos, na sede da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Pará (SRTE-PA), o empregador Gilberto Andrade apresentou 23 contratos temporários de curto prazo no meio rural nos termos da MP 410/2007, de 28 de dezembro de 2007. Nos documentos constam somente o nome do trabalhador e datas diferentes (entre o final de janeiro e início de fevereiro) do início da empreitada. A reportagem tentou, mas não conseguiu entrar em contato com o fazendeiro Gilberto Andrade até o fechamento desta reportagem, na tarde desta terça-feira (25).

"É um agravante. Trata-se de uma tentativa do empregador de burlar a fiscalização. Mas acredito que esse procedimento não será considerado porque claramente não se enquadra nos dispositivos da MP 410", avalia o procurador Francisco Cruz, que não acompanha mais o caso, agora sob responsabilidade de Rodrigo Cruz da Ponte Souza, da Procuradoria Regional do Trabalho da 8ª Região, em Belém. A investigação da denúncia de tortura do denunciante com queimaduras de ferro quente está sendo conduzida pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) do do Estado do Pará.

Repercussões e trâmite
A fraude trabalhista existe independentemente da MP 410/2007, avalia Manoel dos Santos, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Agricultura (Contag), principal entidade representativa dos camponeses que apóia a medida. "Não vou dizer que a MP vai diminuir esse tipo de crime. Quem é fraudulento continuará sendo: antes, agora e depois", emenda. Organizações engajadas no combate à escravidão e entidades como a Federação da Agricultura Familiar (FAF) e a Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), vinculadas à Central Única dos Trabalhadores de São Paulo (CUT-SP), se manifestaram contra a MP 410; a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) apoiou a proposta.

De acordo com Manoel, já foi negociada uma nova redação da MP que altera a redação original redigida pelo Poder Executivo. O relator da matéria, deputado federal Assis do Couto (PT-PR), confirma o acerto decorrente de conversas com representações dos trabalhadores e dos ministérios do Trabalho e Emprego (MTE) e da Previdência Social (MPS). "A alteração buscou sanar o que havia ainda de risco com relação aos que poderiam ser prejudicados perdendo a carteira assinada", descreve o relator. "Não vejo muitas dificuldades no trâmite da proposição. O texto foi acertado, mas ainda é preciso conversar com outros líderes, inclusive da própria base do governo". Foram apresentadas 45 propostas de emenda ao texto da MP 410.

O deputado discorda que a aprovação da MP possa dar abertura a fraudes. "A medida visa formalizar a relação trabalhista daqueles que estão excluídos. Isso não vai dificultar a fiscalização. Pelo contrário, vai facilitar o controle do Estado. Pelo menos haverá um novo tipo de formalização, com exigência da GFIP [Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência] e do recolhimento obrigatório dos 8% do FGTS [Fundo de Garantia por Tempo de Serviço] e do INSS [Instituto Nacional de Seguro Social]".

Para Assis do Couto, a MP 410 ainda não resultou em formalizações em massa porque o instrumento ainda não foi devidamente aprovado pelo Congresso e normatizado. "Faltam modelos-padrão do contrato de trabalho e da GFIP. Há também um processo de conscientização dos trabalhadores que leva um certo tempo", analisa o parlamentar.

"Hoje, na vida real, não há condições de forçar a assinatura de carteira no campo para empreitadas curtas", acrescenta o relator, que defende "mais pragmatismo e menos ideologia". Ele faz um paralelo com os funcionários estatutários que trabalham na Câmara dos Deputados, que não tem carteira assinada e recebem os direitos trabalhistas. "Não podemos deixar de fazer essa inclusão em função das possíveis ilegalidades. É preciso correr atrás dos fraudadores", emenda Manoel, da Contag.

A partir da mudança que está sendo proposta na redação da MP, a dispensa de carteira só será aceita mediante convenção coletiva firmada entre os contratantes e o sindicato dos trabalhadores de determinada localidade. A relação desigual entre o vendedor de mão-de-obra com o tomador do serviço ficaria mais equilibrada com a participação dos sindicatos, reflete Manoel.

A exigência de intermediação sindical para contratos temporários no campo se aproxima de uma outra proposta que vinha sendo discutida no âmbito do MTE. Essa proposta dizia respeito apenas a empreitadas de até 29 dias e abria a possibilidade de contratação coletiva de trabalhadores firmada junto ao sindicato local. Nesse caso, porém, todos os contratos coletivos seriam submetidos ao sindicato, enquanto que a nova redação da MP exige apenas a assinatura de uma convenção coletiva anual autorizativa para contratos individuais sem assinatura de carteira. O aval da entidade sindical para cada contratação específica, colocam fontes da área, seria importante para legitimar o controle social. "O número de pequenos proprietários que fazem esse tipo de contratação para serviços diários e semanais é enorme. Não dá para o sindicato verificar cada contrato", contesta o dirigente da Contag.

Manoel aponta ainda a possibilidade de recebimento dos direitos trabalhistas (como férias e 13º salário proporcionais) desde o primeiro dia de trabalho como uma das principais vantagens da medida. Manoel compara: "A contratação em regime de CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas] só prevê pagamento desses direitos a partir do 15º dia de trabalho".

A prorrogação da aposentadoria rural, outra medida de grande repercussão contida no texto original da MP 410/2007, acabou sendo incorporada na MP 385/2007, aprovada na semana passada na Câmara Federal. Pelas regras aprovadas, as regras atuais da Previdência Rural serão mantidas até 2010, ou seja, basta comprovar o exercício e atingir a idade estabelecida para ter direito a um benefício de um salário mínimo. De 2010 a 2015, o recebimento da Previdência rural será condicionado à contribuição de pelo menos um terço do benefício; e de 2015 a 2020, essa exigência será maior: cada contribuinte terá de recolher metade do que receberá como aposentado.

Parlamentares dos Democratas (DEM) estão entrando, contudo, com um recurso na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados contra a MP 385, que foi "ressuscitada" após a recusa dos senadores de uma outra medida provisória: a MP 397/07, editada justamente para revogar a primeira. Como a MP 385 terá ainda que ser aprovada no Senado (e corre o risco de ter o conteúdo novamente vetado), o relator Assis do Couto estuda a possibilidade de manter, por segurança, a prorrogação da aposentadoria rural também na MP 410. "Concordo que existe um imbróglio e o cenário é nebuloso. Mas isso não se deve ao mérito da Previdência rural, mas à complexidade do método legislativo".

(Por Maurício Hashizume, Repórter Brasil, 27/03/2008)

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