"É a última caixa de ovos que entrou. Em 48 horas não haverá mais laticínios", avisou Armando, proprietário de um pequeno supermercado em Buenos Aires que ontem (26/03) apresentava um movimento de público muito maior que o habitual. Os clientes faziam estoque de produtos, especialmente carne, leite e ovos, diante do desabastecimento que começou a se sentir na capital argentina depois de 14 dias de greve do setor agropecuário, que com dezenas de bloqueios de estradas por todo o país impede a chegada de mercadorias.
Enquanto esperavam para pagar, os clientes só tinham um tema de conversa. O histórico panelaço contra a presidente Cristina Kirchner, protagonizado por milhares de argentinos na noite da última terça-feira (25/03) em todo o país. O maior protesto contra um governo desde a catástrofe econômica de 2001, que terminou com cinco presidentes diferentes em uma semana.
Um protesto que surpreendeu inclusive os próprios protagonistas. Cristina Kirchner acabava de se dirigir ao país pela televisão na terça-feira para criticar duramente a posição do campo argentino, que rejeita o enésimo aumento dos impostos de exportação praticado pelo governo. Uma política expressa ao máximo desde que o marido da atual presidente, Néstor Kirchner, chegou ao poder em 2003. Com o último aumento, que eleva o imposto para 45%, Cristina conseguiu unir dois setores historicamente inimigos: os cerca de 2.500 grandes produtores agropecuários -que se opõem porque consideram o aumento um abuso- e os mais de 75 mil pequenos produtores, que terão de pagar a mesma coisa que os mais ricos, independentemente de sua renda. O aumento representará uma receita extra de US$ 2 bilhões para os cofres do Estado.
O discurso da presidente não foi muito diferente do empregado por seu marido durante seu mandato em conflitos semelhantes. Houve desqualificações aos grevistas, referências ao passado e críticas à imprensa. Mas apareceu um novo tom: uma ironia beirando o escárnio que terminou incitando o ânimo dos cidadãos. Mal acabou o discurso, começaram-se a escutar ruídos de panelas de milhares de moradores de Buenos Aires que saíram a seus balcões para protestar contra a presidente. O coro foi acompanhado por todo o país: Rosario, Córdoba, Santa Fé e Tucumán, entre outras localidades. Os moradores saíram às ruas, bloquearam avenidas e alguns milhares se concentraram na Plaza de Mayo, em uma imagem calcada em 2001.
Cristina, ainda na Casa Rosada, não quis deixar o edifício de helicóptero como faz habitualmente. Dois presidentes já fugiram assim. Saiu de carro para a residência oficial de Olivos, rodeada por manifestantes. O mais grave estava por vir. Perto da meia-noite de terça-feira a polícia abandonou a Plaza de Mayo e deixou o campo livre para que os piqueteiros oficialistas, comandados por Luis d'Elía, desmanchassem a socos a concentração civil. O próprio D'Elía se atracou com um manifestante. E ontem advertiu que seus piqueteiros continuam "em estado de alerta".
(Por Jorge Marirrodriga, El País, tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves, UOL, 27/03/2008)