No dia de São José, 19 de março, a Agência France Press veiculava as trágicas notícias de que a escassez de água já afeta mais de um bilhão de seres humanos no planeta e um terço da humanidade (2,4 bilhões) vive sem acesso à água de qualidade e, em função disso, a cada dia, 25.000 pessoas morrem, sobretudo crianças.
Não se trata de falta, mas de distribuição desigual da água, seja entre os seus usos - 70% é destinada à agricultura, 20% para a indústria e apenas 10% para consumo humano, seja pela sua apropriação - enquanto, em média, um cidadão norte-americano consome 500 litros de água/dia, um africano da região saariana dispõe de apenas 10 a 20 litros de água/dia para uso doméstico.
Trata-se, portanto, da injusta e desumana concentração da água (assim como de resto da propriedade da terra e da riqueza) por uma minoria que detém o poder político e econômico no planeta. Para o capital, água é mercadoria. Para a maioria da população, água é um direito fundamental, pois fundamental à própria vida.
É nesse contexto que se pretende comemorar (?) o Dia Mundial da Água. É momento de se refletir sobre os conflitos decorrentes do seu uso no mundo e em nosso país, em particular, que detêm 12% da disponibilidade de água doce no planeta, que, no entanto, concentra em uma única região, a Amazônica, 78% da produção hídrica nacional.
É no seio dessa desigualdade regional, onde o semi-árido nordestino tem sido objeto de intervenções do poder público que tem alimentado a indústria da seca e a reprodução da dominação político-econômica por uma elite política insaciável, que se situa a transposição das águas do Rio São Francisco para o chamado Nordeste setentrional.
Um de seus aspectos mais dramáticos - e menos divulgados - é a questão da transferência das águas do Velho Chico para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, através do chamado "Canal da Integração" (ou "Eixão"). O discurso é a de que as águas virão para aplacar as necessidades do sertanejo (que, na verdade, vai ficar muito longe do caminho das águas), mas o real objetivo é "saciar a sede" de grandes empreendimentos industriais, que, além de extremamente poluidores, são devoradores de água e de energia: três (ou quatro) usinas termelétricas e uma siderúrgica, movidas a combustível fóssil (carvão mineral, principalmente).
É de todos conhecido que o combustível fóssil que mais contribui para o aquecimento global (em torno de 41%) é o carvão mineral, mas nem todos no Ceará somos conhecedores de todos os impactos sobre o ambiente e a saúde dessas usinas, dentre os quais se destacam a chuva ácida e as doenças pulmonares e cancerígenas. No entanto, o mais escandaloso é que tais empreendimentos utilizam, para o resfriamento de seus altos fornos, uma quantia absurdamente elevada de água.
Calcula-se que uma siderúrgica necessite de cerca de 2 mil metros cúbicos de água por hora e que o seu consumo total seja equivalente a de uma cidade de 100 mil habitantes. Pergunta-se, então: e quando se acrescem as termelétricas? Quanto de água do Velho Chico (que se afirma destinada à população) vai ser drenada para a fabricação do aço, para a acumulação do capital, para o aquecimento global? E para a população carente, vai sobrar água? É esse o "salto" para o desenvolvimento de que falava o governador em campanha? Com a palavra, o governo e o povo de nosso Estado.
(Por João Alfredo Telles Melo *, Adital, 25/03/2008)
[Publicado no jornal O Povo, de Fortaleza, no dia mundial das águas].
* Advogado, professor de Direito Ambiental e consultor do Greenpeace