Enquanto trabalha no seu estúdio improvisado nesta modesta localidade siberiana, Viktor Seliverstov fica imerso em uma nuvem de pó de marfim. O seu entalhador elétrico percorre a superfície leitosa de dentes e presas, enquanto ele os transforma em chaveiros, cabos de faca e figuras entalhadas.
Mas esses não são ossos de baleia nem presas de morsas. O marfim nesta parte do mundo vem dos despojos de mamutes lanudos extintos, à medida que os corpos destes emergem da tundra, onde permaneceram congelados durante milhares de anos. Esta é uma atividade comercial russa tradicional, que praticamente acabou durante o período soviético, mas que agora voltou a florescer.
"Muita gente encontra marfim e não sabe o que fazer com ele", diz Seliverstov, referindo-se aos moradores da sua vila, onde se pode encontrar presas de mamute guardadas em armários e celeiros velhos. Recentemente Seliverstov pagou US$ 500 por cerca de 7,3 quilos de marfim de mamute a uma família que guardava o material em um celeiro havia anos, sem saber o seu valor.
O comércio, que recentemente aumentou devido ao aquecimento global que vem derretendo a tundra e expondo mais carcaças congeladas de mamute, não só é legal mas é também apoiado pelos conservacionistas. Eles observam de forma meio rancorosa que, embora a sobrevivência dos elefantes possa estar ameaçada, já é muito tarde para os mamutes. Segundo esses ecologistas, o marfim de mamute da Sibéria atende parte da demanda asiática por marfim de elefante, e, por isso, esse comércio deve ser encorajado.
O comércio de marfim da era glacial, uma atividade comum na Sibéria desde o século 17, foi estimulado ainda mais pela proibição internacional do comércio de marfim de elefante em 1989. As exportações russas de marfim de mamute - o único tipo de marfim legalmente importado pelos Estados Unidos - chegaram a 40 toneladas no ano passado, em relação a apenas duas toneladas exportadas em 1989, afirma Aleksei Tikhonov, diretor do Museu Zoológico de São Petersburgo e especialista em mamutes.
Embora os preços variem, os principais comerciantes em Moscou geralmente cobram de US$ 330 a US$ 440 por quilo de marfim de qualidade média. De acordo com os vendedores, quando o marfim chega aos mercados ocidentais, ele pode ser vendido por até US$ 1.760 o quilo. As fontes do marfim são muitas, embora os pastores de renas, trabalhadores da indústria de gás e petróleo e caçadores profissionais de marfim forneçam a maior parte do material. "Eles coletam presas de marfim como se estas fossem cogumelos após a chuva", diz Tikhonov.
Embora as presas de mamute possam não ser tão valiosas quanto as reservas de petróleo e gás natural da Rússia, elas são abundantes. As camadas siberianas de permafrost cobrem uma área de milhões de quilômetros quadrados, com uma profundidade que varia de alguns poucos metros a mais de 1,5 quilômetro, lembrando espinafre congelado.
Ocultos nas camadas superiores desta massa congelada da época Pleistocena, estão os restos de cerca de 150 milhões de mamutes. Alguns estão congelados inteiros, como se estivessem em um estado de animação suspensa. Outros estão fragmentados em pedaços de ossos, marfim, tecidos e lã.
O mamute lanudo é na verdade a última das três espécies elefantinas extintas que viveram na Sibéria. Eles surgiram há cerca de 400 mil anos e duraram até pelo menos 3.600 anos atrás - a idade de alguns restos de mamute encontrados em uma ilha ao largo da costa da região russa de Chukotka em 1993.
As presas emergem com o derretimento da primavera ou após chuvas fortes, ou ao longo das margens erodidas de rios. O aumento dos investimentos em gás e petróleo fez com que surgisse uma outra fonte de marfim, à medida que as equipes de trabalhadores perfuram poços e escavam a terra para a instalação de oleodutos. Conservado na permafrost, o estado do marfim de mamute é quase perfeito, embora ele traga uma pátina verde característica. Mas se for retirado da permafrost e exposto aos elementos, ele se desintegra em três anos, fragmentando-se em pedaços sem nenhum valor.
Segundo Tikhonov, o especialista russo em mamutes, existe um outro ponto favorável ao comércio de marfim de mamute. A atividade encoraja a coleta de presas que, caso contrário, iriam se perder. Na verdade, segundo ele, uma quantidade muito maior de marfim de mamute é destruída neste ciclo natural na Rússia do que é encontrada e vendida. Talvez centenas de toneladas se percam naturalmente a cada ano.
Gary Haynes, paleantropólogo da Universidade de Nevada em Reno, diz que fica nervoso ao ver presas de mamute destruídas. Nos seus anéis de crescimento e marcas possivelmente deixadas por caçadores humanos pré-históricos, elas trazem uma riqueza de dados sobre o clima e os povos antigos da Sibéria que poderiam esclarecer muita coisa. Por exemplo, o debate a respeito da causa da extinção dos mamutes. Acredita-se que eles sucumbiram a mudanças climáticas, ao excesso de caça pelos humanos, ou a ambos os fatores.
"Há um certo desconforto quando você é um cientista e vê algo que poderia ter valor científico sendo entalhado e destruído", disse Haynes em uma entrevista por telefone. "Mas isto faz parte. Eu também levo em consideração os argumentos dos comerciantes. Os mamutes já estão extintos e as pessoas precisam de dinheiro".
Além disso, o governo russo examina as presas para se certificar de que nenhuma delas tem sinais de doenças antigas, marcas humanas pré-históricas e outros elementos de valor científico, antes que sejam exportadas.
Cerca de 90% do marfim siberiano que é recuperado é exportado para a Ásia, onde ele é utilizado principalmente na confecção de carimbos pessoais que no Japão, na China e na Coréia do Sul são usados em lugar de assinaturas nas transações comerciais. Esses carimbos sustentam grande parte da indústria siberiana de marfim de mamute.
Embora as presas sejam abundantes na superfície, mamutes inteiros congelados são raros. Eles não são exportados. Em maio do ano passado, um pastor de Nenets descobriu um filhote de mamute congelado na Península de Yamal. O animal foi batizado de Lyuba, e é mantido em um freezer no museu de Tikhonov em São Petersburgo. Os cientistas estão analisando os seus tecidos em uma tentativa de fazer o seqüenciamento do genoma do mamute.
Tikhonov diz que a clonagem é improvável, embora a extração de genes possa ser usada para acrescentar características do mamute aos elefantes asiáticos. Seliverstov, o escultor de marfim, diz que não vê problemas em trabalhar com um recurso pré-histórico. "As pessoas apreciarão a minha arte por várias gerações", afirma o artista. "Desta forma, eu dou aos mamutes uma segunda vida".
(Por Andrew E. Kramer, The New York Times, tradução UOL, 25/03/2008)