O ministro diz que há uma nova classe média no País, mestiça e morena, e defende a idéia de o Estado impor o capitalismoPelo corredor, circulam diversos soldados e oficiais. Atrás de uma grande porta de carvalho, do centro de uma ampla sala, emerge um senhor de cabelos brancos cortados à escovinha, forte sotaque americano, terno escuro e grossa corrente de um relógio de bolso presa ao colete. O ministro da Secretaria de Planejamento de Longo Prazo é o primeiro civil a despachar numa sala dentro do prédio do Comando do Exército, na Esplanada dos Ministérios. O excelente relacionamento com as Forças Armadas tem sido uma das maiores surpresas de Roberto Mangabeira Unger na sua primeira experiência de governo. Acadêmico de esquerda, o ministro passou boa parte de sua vida nos EUA, onde se tornou um respeitado professor de direito na Universidade de Harvard - mas nunca deixou de pensar o Brasil. Depois de diversas tentativas de ingressar na política brasileira (foi, por exemplo, guru de políticos como Leonel Brizola e Ciro Gomes), Mangabeira Unger chegou ao poder pelas mãos do vice-presidente José Alencar. Agora, ele tem pela frente alguns desafios. Precisa convencer os brasileiros de que por trás da figura exótica de fala enrolada não há um professor aloprado, mas alguém com conteúdo. E de que suas propostas não são um amontoado de quimeras inexeqüíveis, mas um modelo possível e que pode começar a ser realizado desde já. Os militares parecem ter aceitado as suas idéias. Falta convencer o restante da sociedade.
À ISTOÉ Mangabeira Unger explicou seu modelo para o Brasil.
ISTOÉ - Qual é a fórmula que o sr. Preconiza para o País? Roberto Mangabeira Unger - Eu fui convocado pelo presidente para a tarefa de ajudar a formular e debater um novo modelo de desenvolvimento para o País. Tradicionalmente, os setores avançados e internacionalizados da economia brasileira crescem e geram riqueza. E parte dessa riqueza é usada para financiar programas sociais. Agora, a Nação quer mais do que isso. Sou um inconformado com essa visão de Suécia tropical, de que esse é o único modelo possível a ser seguido. É preciso que se busque um modelo de desenvolvimento na ampliação dessas oportunidades de inclusão, não apenas de políticas compensatórias. Meu trabalho divide-se em duas vertentes. A primeira é a da visibilidade prática e política. A segunda é a da fecundidade transformadora. Escolhi essas iniciativas em cinco grandes campos: oportunidade econômica, oportunidade educativa, gestão política, Amazônia e Defesa.
ISTOÉ - E na economia, qual é a idéia? Mangabeira - Estamos trabalhando com os ministros da Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio a formulação de uma nova política industrial. Nós temos hoje uma política voltada para as grandes empresas, enquanto a realidade econômica é de um grande número de pequenas empresas e empreendimentos emergentes que não são assistidos. Então, precisamos criar o que chamo de política industrial de inclusão.
"A ministra Marina adota uma postura mais cautelosa, mas sua visão da Amazônia não é a de santuário"
ISTOÉ - O que é isso?
Mangabeira - Uma política industrial voltada para o mundo dos emergentes, que compreenda as mudanças que estão acontecendo na economia do País. Crédito, formação de quadros e incremento tecnológico. Isso é fundamental. Nós temos que ter uma Embrapa industrial.
ISTOÉ - Uma Embrapa industrial?
Mangabeira - Uma empresa nos moldes do que faz a Embrapa na agricultura para a difusão de tecnologia industrial. Uma rede que difunda junto aos empresários novas técnicas, modelos e aprimoramento de mãode- obra. Nós estamos ameaçados de ficar imprensados entre os países de trabalho barato e os países de produtividade alta, sem espaço nem em um nem no outro lado. Eu tenho argumentado que temos de optar pelo lado da valorização do trabalho e não pelo achatamento salarial. Nós não temos futuro como uma China com menos gente. Nós temos que resgatar da informalidade os 60% de trabalhadores brasileiros que trabalham nas sombras, isso é um desastre para o País. Não apenas um desastre econômico, mas político e moral.
ISTOÉ - O que o sr. Chama de estimular não seria uma intervenção do Estado na economia?
Mangabeira - Não é apenas pensar o Estado como interventor na economia, mas como indutor da economia que queremos. Usar o Estado para fazer o mercado. Para estimular e radicalizar a concorrência. Para impor o capitalismo desejado. Para construir o mercado que se quer. Para que mais gente tenha acesso ao mercado, e de mais maneiras.
ISTOÉ - Isso que o sr. Propõe não pode acabar por afugentar investidores internacionais? Não vai contra a fórmula que o mundo segue?
Mangabeira - A grande lição do desenvolvimento é que quem vai para a frente é quem rejeita o formulário. A região mais obediente do mundo sempre foi a América Latina. E ela está longe de ser a região que mais obteve ganhos. Na história, os obedientes são castigados e a rebeldia é premiada.
ISTOÉ - Há quem afirme que as suas idéias para a Amazônia podem pôr a floresta em risco.
Mangabeira - Há duas idéias inaceitáveis para a Amazônia que se difundem no País. Uma é a de que o único jeito de ocupar a Amazônia é abri-la sem restrições para o mercado, permitindo coisas como a pecuária extensiva. A outra é a de que a Amazônia deve ser mantida como um santuário, um parque. Mas a Amazônia não é apenas uma coleção de árvores; existe ali um grupo de pessoas. E essas pessoas não tiveram oportunidade econômica. Conduzir a atividade econômica de forma desgovernada vai transformar a questão ambiental numa questão social. Não fazer nada também. A política de desenvolvimento precisa incluir um modelo para a Amazônia.
ISTOÉ - Mas a ministra Marina Silva não parece ser uma grande entusiasta das suas idéias nessa área.
Mangabeira - Uma das coisas que eu descobri nas minhas diversas tentativas de engajamento político é que é mais fácil mudar o País do que mudar uma pessoa. É natural que a ministra Marina adote postura mais cautelosa, uma vez que sua tarefa é defender o meio ambiente, mas a visão dela não é uma visão de santuário. A verdade é que tudo envolve algum conflito e alguma controvérsia. Ninguém vem ao mundo sem briga. O meu papel aqui é buscar construir a convergência. Mas, ao mesmo tempo, empurrar os limites. Eu tenho as idéias, mas não tenho a caneta. Para isso, é necessária a convergência com o presidente e os ministros.
ISTOÉ - Já com os militares, sua relação tem sido muito boa. Tanto que seu gabinete fica em uma sala no prédio do Comando do Exército.
Mangabeira - Sou o primeiro civil agraciado com um espaço aqui dentro. Tudo para mim tem sido uma surpresa. Se eu tivesse que nomear quem tem sido os meus aliados mais entusiasmados, colocaria em primeiro lugar os cientistas, depois as Forças Armadas e a Igreja.
ISTOÉ - A Igreja?
Mangabeira - Sim. Eu me reuni com a direção da CNBB, a convite de seu presidente, dom Geraldo Lírio, para expor minhas idéias sobre o País, e todos foram muito receptivos. Agora, pretendo expor essas idéias a representantes de outras confissões.
ISTOÉ - Em que se afinam as suas idéias e as dos militares?
Mangabeira - Na certeza de que não existe estratégia nacional, seja econômica, seja social, sem estratégia de defesa. Pela primeira vez, com a ajuda do ministro Nelson Jobim, a discussão militar associa-se à discussão de País como um todo. Não basta as Forças Armadas apresentarem uma lista de equipamentos que precisam adquirir. Isso é acessório. A aquisição depende da idéia de política de defesa que desejamos. É isso o que estamos construindo.
ISTOÉ - Sendo de longo prazo, seu projeto não corre o risco de ser jogado no lixo pelo próximo governo?
Mangabeira - Esse é um risco real. Eu encaro a minha tarefa como uma contribuição para um projeto de Estado, e não um projeto governamental. Assim, além de buscar a convergência dentro do próprio governo, é preciso buscar uma convergência de opiniões dentro da sociedade. Para que isso ganhe uma dinâmica própria natural, que não pareça uma imposição de idéias ao próximo governo. É por isso que tenho, como no caso das idéias para a Amazônia, procurado viajar, apresentando minhas propostas ao meio acadêmico e à sociedade organizada.
ISTOÉ - Antes de entrar para o governo, o sr. Fez pesadas críticas à gestão Lula. O sr. Mudou de idéia?
Mangabeira - Naquele momento, eu fui levado por um excesso, por uma paixão. Queria reforçar o discurso de que precisamos tirar a política da sombra corruptora do dinheiro. Não distingui os elementos do sistema dos elementos pessoais. Hoje, sei que o governo foi vítima de um sistema perverso de construção de maiorias que precisa mudar. O que eu sei hoje é que não foi fácil para o presidente Lula fazer o convite a mim. E não foi fácil, para mim, aceitar.
"A eleição de Obama pode acelerar o momento de inflexão dos EUA. E pode ser boa para o Brasil"
ISTOÉ - Qual papel o sr. atribui ao presidente Lula?
Mangabeira - Há uma nova classe média surgindo no País. Morena, mestiça, que inaugura uma nova cultura, um novo modo de pensar. O Brasil é um país onde só uma minoria da sociedade está organizada. É fácil comunicar-se com a minoria organizada. Mas essa minoria não é referência das necessidades de todo o Brasil. E é difícil comunicar-se com essa maioria desorganizada. Nisso, a identificação do presidente Lula e a sua facilidade de comunicação com a sociedade são fundamentais.
ISTOÉ - O sr. foi professor do senador Barack Obama. Que previsão o sr. Faz para a disputa eleitoral americana?
Mangabeira - Na Divina comédia, o castigo no inferno para quem faz previsão é ser preso com uma corda no pescoço com a cabeça sempre voltada para trás. Conheço Obama, que foi meu aluno. Ele é uma pessoa de grandes qualidades morais. Sem querer fazer previsões, eu avalio que o perfil de Obama é o que mais se aproxima do momento pelo qual estão passando os EUA.
ISTOÉ - Que momento é esse?
Mangabeira - Há sinais de que os EUA estão se aproximando de um grande momento de inflexão histórica. A lógica de governo do Partido Republicano baseava- se numa conjugação dos interesses da plutocracia e da classe trabalhadora branca. Isso está sendo desmontado. A eleição de Obama pode acelerar esse processo. E pode ser muito boa para o Brasil.
ISTOÉ - Por quê?
Mangabeira - Porque o Brasil é o país do mundo mais parecido com os EUA. Em ambos, houve o povoamento europeu somado à escravidão africana. Em ambos, há grandes desigualdades sociais. Imensos territórios. E, agora, tanto aqui como lá, parece haver, com essa inflexão que mencionei nos EUA, um interesse de mudar o atual modelo de desenvolvimento para a organização de uma economia menos hostil, mais hospitaleira.
ISTOÉ - Se somos tão parecidos, o que falta ao Brasil para chegar ao patamar dos EUA?
Mangabeira - Vontade forte e idéia clara. Para quem tem isso, o mundo está cheio de oportunidades.
(
Revista Istoé, 24/03/2008)