As mudanças climáticas vêm ganhando cada vez mais destaque na pauta mundial, inclusive brasileira. Muito tem sido discutido sobre as causas dos fenômenos e as negociações internacionais que o tema envolve, mas pouco se fala acerca de seus efeitos sobre as populações. Encontro que começou na terça-feira (18/03), promovido pelo ISA, pretende debater alternativas e sugerir recomendações para atenuar as conseqüências do aquecimento global sobre a região.
Na capital amazonense, na terça-feira (18), cerca de 110 pessoas tomaram para si o desafio de enfrentar o debate sobre como governo e sociedade podem se preparar para lidar da forma menos traumática possível com os efeitos das mudanças climáticas globais. Eram representantes governamentais, da iniciativa privada, pesquisadores, membros de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais que participaram da abertura do seminário “Impacto das Mudanças Climáticas sobre Manaus e a Bacia do Rio Negro”. O evento, que vai até quinta-feira (dia 20), está sendo organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS) e com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Manaus (Semma).
“Hoje o tema das mudanças climáticas é da sociedade, não mais dos cientistas. Lidarmos melhor ou pior com ele dependerá do nosso esforço em conseguir envolver mais pessoas na discussão”, afirmou Arnaldo Carneiro, pesquisador e consultor do ISA. O coordenador da Iniciativa sobre Mudança Climática do ISA, Márcio Santilli concorda. “Manaus e a região da Bacia do Rio Negro devem se preparar para os efeitos das mudanças climáticas. Nossa atitude não pode ser apenas contemplativa, diante de acontecimentos tão graves. A população deve estar informada e organizada não apenas para reivindicar do governo as políticas públicas necessárias, mas para que ela própria contribua para evitar que os impactos sejam tão danosos”.
Planejar-se diante de um cenário de incertezas não é tarefa fácil, o que torna essencial o diálogo entre os diferentes setores reunidos no seminário. Os cientistas concordam que a temperatura da Amazônia deve aumentar entre 3ºC e 9ºC até 2100, mas nem todos os modelos climáticos projetam estiagem na região. É certo, também, que eventos extremos (como a seca de 2005) devem se tornar mais intensos, mas não há unanimidade em torno da maior freqüência deles. “Temos que correr o risco de trabalhar com achismos, não podemos é ficar de braços cruzados”, defendeu Carneiro. “Os modelos de projeção climática têm suas deficiências, mas são a única ferramenta que nós temos para essa avaliação”, sintetizou Antônio Manzi, gerente executivo do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), um grande projeto que pesquisa o funcionamento da floresta e sua relação com as mudanças do uso da terra e do clima.
Riscos para a Bacia do Rio NegroA rica sociodiversidade da Bacia do Rio Negro, espalhada pelos seus 72 milhões de hectares, pode estar em perigo. Caso as previsões mais severas de aumento da temperatura e da seca se confirmem, deve ficar difícil encontrar peixe nos rios de águas pretas e, principalmente, piaçaba nas suas margens, já que essa palmeira endêmica da região - muito utilizada no extrativismo - corre risco de extinção. “A Bacia do Rio Negro tem índices pequenos de desmatamento. A Amazônia como um todo, em geral, é muito mais vítima do que agente causador das mudanças climáticas globais”, disse Manzi.
O pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Charles Clement, estudou os efeitos das mudanças climáticas sobre palmeiras de uso econômico, como a piaçaba. Ele alertou que, para minimizar os impactos nocivos previstos, o homem precisará ocupar um lugar mais ativo na gestão ambiental: “A população do Rio Negro deverá manejar as palmeiras mais intensamente, inclusive plantando espécies. Se morre a pupunha do Alto Rio Negro, por exemplo, provavelmente sobrevive a de Santarém (local mais seco e com maior estiagem). Então, pode-se pegar essa pupunha mais resistente e plantar no Alto Rio Negro”.
Outro pesquisador do Inpa, Jansen Zuanon, alertou que eventos climáticos extremos constantes podem diminuir o estoque pesqueiro da Bacia do Rio Negro, já naturalmente baixo. “Se temos secas seguidas, a espécie não tem tempo de equilibrar seu ciclo de reprodução. Soma-se a isso a própria ação humana, já que a reação imediata do pescador diante da estiagem é de euforia, pois a captura do pescado se torna mais fácil”, explicou.
A fauna de peixes de água doce da Amazônia é a maior do planeta, com pelo menos 3 mil espécies já identificadas. O consumo médio diário de pescado na região é estimado em 600 gramas por pessoa. São comercializados, por ano, cerca de 173 mil toneladas de pescado – mas menos de 4% delas vêm da Bacia do Rio Negro, onde o destaque é a pesca ornamental, voltada à exportação. “Se começa a faltar peixe na região como um todo, os moradores do Alto Rio Negro, por exemplo, serão os mais afetados. Porque lá, naturalmente, o pescado já é escasso. E o que resistir deverá ser trazido para Manaus, onde o poder aquisitivo dos consumidores é maior”, ponderou Zuanon.
Outra questão crucial levantada durante as discussões do seminário foi a necessidade de mais pesquisas de campo sobre a Bacia do Rio Negro. “Faltam dados de base. Temos uma bacia hidrográfica singular e um programa de estudos fluviais paupérrimo. Por isso, continuamos a importar conceitos que não funcionam aqui”, lamentou o pesquisador da Universidade Nacional de La Plata, na Argentina, Edgardo Latrubesse. De acordo com ele, os modelos teóricos atualmente disponíveis para previsão dos impactos das mudanças climáticas em bacias hidrográficas não servem para rios grandes, como os amazônicos.
Olhar para áreas urbanasManaus, com seus quase 1,8 milhão de habitantes, concentra 60% da população do Amazonas. O ISA e a prefeitura uniram esforços na elaboração de mapas temáticos que dissecam os 377 km2 de área urbana da capital amazonense: eles indicam pontos de atenção nesse território, nos quais - caso nada seja feito para impedir - os impactos das mudanças climáticas globais podem ser desastrosos. “Discute-se muito as conseqüências das mudanças climáticas para a floresta, mas tem-se dado pouca atenção para a área urbana, onde vive a maior parte da população da Amazônia”, observou a secretária municipal de Meio Ambiente, Luciana Valente. Ela contou algumas ações que a prefeitura de Manaus estuda para diminuir os efeitos dessas mudanças negativas. “Nossa 2ª Conferência Municipal de Meio Ambiente, realizada em fevereiro, teve as mudanças climáticas como eixo”, disse. “Das ações aprovadas como prioridade, temos a identificação de remanescentes florestais a serem protegidos no perímetro urbano; a elaboração de um plano de arborização da cidade, que vem sendo discutido desde 2006; o envio para a Câmara Municipal, ainda neste ano, de um projeto de lei instituindo o Programa Municipal de Inspeção Veicular; e atividades de educação ambiental”, detalhou a secretária.
Remuneração dos serviços ambientaisO programa Bolsa Floresta, lançado no ano passado pelo governo do Amazonas, foi lembrado no seminário pelo consultor do Centro Estadual de Mudanças Climáticas, ligado à SDS, Carlos Rittl. “Temos duas mil famílias cadastradas, que já começaram a receber os R$ 50 mensais como incentivo à conservação. Até o fim do ano, elas devem chegar a 8 mil, cobrindo a maioria dos moradores de unidades de conservação do estado. A partir daí, a intenção é expandir o programa para além das áreas protegidas. A meta do governador é que até 2010 o Bolsa Floresta atenda 60 mil famílias”, contou Rittl. Além da modalidade familiar, o programa tem duas outras linhas, ainda não implementadas: um pagamento às associações de moradores (10% do valor total recebido pelas famílias da localidade) e um recurso de R$ 4 mil para investimentos comunitários.
Manter a floresta em pé, nas atuais regras do Protocolo de Kyoto, não gera Reduções Certificadas de Emissão (RCEs, popularmente conhecidas como créditos de carbono). No entanto, os debates internacionais em torno da remuneração dos chamados "serviços ambientais prestados pelas comunidades tradicionais e indígenas" estão cada vez mais intensos. Como parte da Lei Estadual de Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, além do programa Bolsa Floresta, o governo do Amazonas apoiou a criação da Fundação Amazônia Sustentável, de caráter público (sobre a qual ele detém 25% do controle). “Essa fundação administra um fundo no qual o governo depositou R$ 20 milhões e o Banco Bradesco outros R$ 20 milhões, comprometendo-se a doar mais R$ 50 milhões divididos em cinco parcelas iguais, durante cinco anos”, disse Rittl. Ele acrescentou que a expectativa é que esse fundo alcance R$ 300 milhões, para que seus rendimentos bancários possam financiar outras iniciativas semelhantes ao Bolsa Floresta.
O pacto em prática“O ISA participou no ano passado, com outras ONGs, da elaboração da proposta do Pacto Nacional pela Valorização da Floresta e pelo Fim do Desmatamento na Amazônia, que passava pela remuneração dos serviços ambientais. Temos que ir além das ações de fiscalização e controle”, lembrou Santilli. Ele acrescentou que dar valor econômico à natureza conservada é um desafio importante, mas não suficiente. “Precisamos que essas iniciativas sejam somadas a outras políticas públicas”.
A secretária municipal de Meio Ambiente adiantou que a prefeitura de Manaus também pretende fazer uso do chamado mercado de carbono para financiar políticas ambientais. “Estamos estudando um projeto no aterro sanitário da cidade, que faça a coleta do metano liberado pelo lixo em decomposição”, contou Luciana Valente.
O metano é um gás de efeito estufa com potencial de aquecimento 21 vezes superior ao do gás carbônico. O primeiro projeto registrado no Conselho Executivo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), dentro regras do Protocolo de Kyoto, é brasileiro: o Novagerar, que trabalha justamente com a canalização e incineração do metano gerado pelo aterro sanitário de Nova Iguaçu (RJ).
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ISA, Instituto Socioambiental, 20/03/2008)