O maior bioma terrestre do mundo é Amazônia, que ocupa quase metade do Brasil, mas "o total de desmatamento da Amazônia está em torno de 17%", ressalta a engenheira agrônoma Tatiana de Carvalho, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. O avanço da produção de soja é um dos pontos mais graves dentro dessa escala assustadora do aumento do desmatamento. "A soja, sabemos, não é um vetor direto do desmatamento. Ou seja, não se desmata e em seguida se planta soja, mas ela é um vetor que empurra outras ocupações para dentro da floresta. Então, o que é muito comum são áreas hoje de pecuária e que seriam ocupadas pela soja, fazendo com que a pecuária avance para dentro da floresta, o que chamamos de desmatamento indireto", analisa.
Tatiana de Carvalho é engenheira agrônoma e, atualmente, trabalha como assessora da Campanha de Engenharia Genética do Greenpeace.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o percentual de terras na Amazônia que já foi desmatado para ceder lugar ao plantio de soja? Qual é o principal impacto dessa plantação na região?
Tatiana de Carvalho - O total de desmatamento da Amazônia está em torno de 17%. Quando falamos em Amazônia, é bom deixar claro nos referimos ao bioma dela, não da Amazônia legal. Com relação à área ocupada por soja e outras culturas agrícolas, de ano para ano, essas porcentagens variam muito. O que constatamos é que, segundo os últimos dados do IBGE, temos em torno de um milhão e meio de hectares plantados com soja da última safra. Para esse ano, ainda não saíram os dados, mas a dimensão deve estar parecida. Não é uma área muito extensa ainda. Então, a nossa preocupação é com conter a expansão e prevenir os danos.
IHU On-Line - E qual é o maior dano que a soja causa à Amazônia?
Tatiana de Carvalho - O principal dano é o desmatamento. A soja, sabemos, não é um vetor direto do desmatamento. Ou seja, não se desmata e em seguida se planta soja, mas ela é um vetor que empurra outras ocupações para dentro da floresta. Então, o que é muito comum são áreas hoje de pecuária e que seriam ocupadas pela soja, fazendo com que a pecuária avance para dentro da floresta, o que chamamos de desmatamento indireto. Além dos impactos ambientais, existem ainda os impactos sociais. O que percebemos na região de Santarém, a qual monitoramos mais de perto, é que muitos pequenos produtores rurais e trabalhadores estão sendo expulsos das regiões mais próximas às cidades, com mais infra-estrutura, enviando-os para as próprias periferias das cidades ou para regiões mais distantes. Então, aumenta o desmatamento em regiões de fronteira, abrindo espaço para a soja. Essa questão do êxodo rural é muito grave também.
IHU On-Line - Até que ponto as atividades econômicas como a produção de soja interfere no desmatamento na região?
Tatiana de Carvalho - Quanto a isso não, mas depende de como ele é feito. É claro que todo tipo de agricultura causa um desgaste ao solo.
IHU On-Line - Com o programa Amazônia Legal, o secretário-executivo do ministério da agricultura, Silas Brasileiro, diz que o avanço da soja no Mato Grosso, por exemplo, ocorreu em áreas de pastagens degradadas. Ele argumentou que "o sistema lavoura-pecuária tem sido um incentivo para produzir mais na mesma área". A senhora concorda com essa posição? Na Amazônia, isso vem ocorrendo ou as áreas utilizadas para o plantio são 100% férteis?
Tatiana de Carvalho - Com relação a essa integração lavoura-pecuária, realmente acredito que a produção agropecuária do país deva ir nesse sentido: aproveitando ao máximo as áreas mais desmatadas. O Greenpeace se coloca na Campanha do Desmatamento Zero. Essa é nossa frente de trabalho, ou seja, não precisa se desmatar mais nada da floresta para se produzir. É nesse caminho que a precisamos seguir, otimizando essas terras. O que ocorre hoje é o seguinte: a pecuária vai na frente, coloca um, dois bois a cada dois hectares e, uma vez que a propriedade é estabelecida, o seu dono já vende a posse para um agricultor. Segue desse modo o ciclo do desmatamento.
IHU On-Line - Como você percebe o avanço de investimentos das multinacionais na plantação de soja na Amazônia?
Tatiana de Carvalho - Sem dúvida, as multinacionais têm um papel determinante nesse avanço. Sabe-se que as grandes empresas de soja (a Cargil, a Bunge e a ADM) respondem por 60% de toda a soja exportada no país. Na medida em que o governo federal percebe as agências oficiais de financiamento restringindo o crédito, colocando mais demandas, esses produtores acabam migrando e pedindo investimentos para as traders, que acabam atendendo essa "necessidade". O que ocorre agora é que, depois da pressão que o Greenpeace fez e dessa campanha contra a expansão de soja na Amazônia, as traders também vêm restringindo seu crédito, demandando a legalidade do seu fornecedor.
IHU On-Line - Qual é o impacto da soja às populações de baixa-renda que vivem na região? Os moradores da comunidade ficam refém desse tipo de trabalho?
Tatiana de Carvalho - Ficam reféns de diferentes formas. Num primeiro momento, quando vimos a soja entra em áreas de comunidade, eles tentam comprar terra. Então, aqueles que vendem fazem isso por valores baixíssimos. São pessoas que, em geral, migram para periferia e ficam sem ocupação, porque não são qualificadas com um certo nível de educação. A pessoa, quando consegue trabalho, vai trabalhar num subemprego, quando antes a maior parte da subsistência dela provinha da sua própria produção. Na cidade, essas famílias elas não tem mais farinha, arroz, feijão, frutas, fazendo com que a qualidade de vida diminua muito.
A outra questão é em relação às famílias que resolvem permanecer se vêem numa situação onde estão rodeadas por soja. Então, é muito difícil um pequeno produtor sobreviver nessa condição. Primeiramente, pelos agrotóxicos, porque os grandes fazendeiros, em geral, não moram naquela fazenda e, por isso, aplicam agrotóxicos de forma indiscriminada e que acaba afetando as famílias que moram em torno das grandes fazendas, gerando problemas de saúde gravíssimos nas pessoas e nos animais que elas criam. É muito difícil para as famílias que permanecem continuarem vivendo na zona rural.
IHU On-Line - O relatório "Situação Global de Comercialização de lavouras geneticamente modificadas: 2007", elaborado pelo ISAAA (Serviço Internacional para Aquisição das Aplicações em Agrobiotecnologia), apresentou o Brasil como o país que mais cresceu na área de transgênicos, cogitando até a possibilidade de o país se transformar líder mundial nessa área. Essa notícia pode ser considerada positiva para o país?
Tatiana de Carvalho - Da forma como o governo vem atuando, ou seja, liberando os transgênicos sem nenhum garantia de que são seguros tanto ao meio ambiente quanto à população, eu acredito que o Brasil não tem nada ganhar. Sabemos que a grande diferença das lavouras transgênicas para as lavouras normais não é a questão da produtividade. Ela está ligada a genes, como no caso do milho, que repele insetos. O Brasil pode ser líder mundial na produção de alimentos, ocupar esse papel, sem ser líder mundial na produção de transgênicos. Penso que o que acontece é que cada vez mais nós colocamos o produtor rural, que no Brasil não tem uma condição muito favorável, como cada vez mais refém dessas grandes empresas e de pacotes tecnológicos. Isso porque ele agora também é obrigado a comprar sementes e também aquele pacote de insumos que encarece os custos de produção. Essa independência que o agricultor está perdendo será uma grande perda, afetando bastante a produção agrícola do país. Antigamente, principalmente no Rio Grande do Sul, o produtor de soja produzia a sua própria semente. Atualmente, ele precisa comprar. Se ele não comprar, ao comercializar, ele também tem que pagar os royalties, ou seja, o lucro dele está indo para essas grandes empresas.
IHU On-Line - A Europa aceita 0,5% de transgênicos em seus produtos. Alguns especialistas afirmam que o Brasil deve seguir o mesmo rumo para não caminhar na contramão do mercado internacional. Livre de transgênicos, o Brasil terá competitividade no mercado internacional, apresentando um diferencial em seus produtos ou nos próximos anos teremos que, inevitavelmente, aderir a essa posição?
Tatiana de Carvalho - Essa questão do 0,5% não é tão verdadeira assim, pois, na verdade, a Europa exige que os produtos sejam livres. O 0,5% é a porcentagem de aceitação da contaminação. O Brasil precisa, sem dúvida, garantir esse mercado. Os grandes produtores de soja do mundo são Brasil, Argentina e Estados Unidos. A Argentina e os Estados Unidos já estão mais do que contaminados pelos transgênicos. Já não existe mais volta nesse processo. Se o Brasil caminhar nesse mesmo sentido, perderá o seu nicho de mercado. Todo mundo compra soja convencional. Ninguém vai falar que quer soja transgênica. Se você oferecer o produto tradicional à China, que não tem essa exigência ainda de comprar produtos não transgênicos, ela aceita na hora. O mercado internacional de grãos está vendo a oferta ser diminuída. Então, os países que puderem oferecer produção suficiente para exportação terão mercado. Se o Brasil conseguir garantir que sua produção seja livre de transgênicos, terá acesso a qualquer tipo de mercado, sem nenhuma restrição.
IHU On-Line - O Greenpeace alega que o modelo da soja e do gado, utilizado atualmente na Amazônia, é insustentável para a manutenção da floresta. Outro modelo de agricultura ou pecuária pode ser utilizado na região, de maneira sustentável?
Tatiana de Carvalho - O que observamos é que o potencial da Amazônia não é a produção agropecuária. A Amazônia tem outros potenciais. No entanto, nas áreas que já estão desmatadas devem ser discutidas as áreas de ocupação. Elas podem ser ocupadas pela agropecuária, mas a máxima produtividade da terra é um caminho. Mas, sem dúvida, se quisermos uma solução ideal para essas áreas já degradada, precisamos entrar já na questão da agroecologia, realmente integrada ao meio ambiente. Mesmo nessas áreas já degradadas e nas quais não existe mais desmatamento, a contaminação por agrotóxicos é muito grande.
(IHU - Unisinos *, Adital, 19/03/2008)
* Instituto Humanitas Unisinos