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amazônia
2008-03-19
Carlos da Silva Rosário sabe ler a Amazônia. Com passos precisos, Carlito, como é conhecido, desvia de cipós e espinheiros. Parece prever os obstáculos. Com seus 59 anos, metade deles vividos em trilhas de locais remotos do norte do país, tem a agilidade de um menino. Sua missão é chegar aonde quase ninguém pisa para reconhecer árvores. Em seu dia-a-dia, ele costuma tomar chuva e passar o dia sem comer. Ataques de vespas, um calor sufocante e o risco de topar com animais venenosos são, para ele, apenas pequenos incômodos.

Para os olhos desavisados que o acompanham pela mata, as flores e os cipós caídos na trilha são apenas imagens de uma bela paisagem. Para Carlito, essas são peças de um quebra-cabeça que vai definir o nome da árvore que ele precisa identificar. Com os olhos fixos na casca vermelha de um tronco, ele mexe na folhagem do chão, tira um facão da cintura e faz um talho na planta. Depois, cheira o pedaço de madeira. Nomes em latim começam a ser ditados. Pinophyta, Pinaceae e Cedrella. Quando questionado sobre uma possível tradução para o falatório científico, ele responde com um sorriso entre os lábios: “Encontramos um cedro, o rei da floresta”.

Carlito é um dos últimos identificadores de árvores do país. O nome oficial de sua profissão é parabotânico. Ele não gosta de ser confundido com um mateiro, pessoa contratada para abrir trilhas. “Minha tarefa não é guiar na floresta, e sim reconhecer as árvores”, diz. Sem os parabotânicos, as pesquisas na Amazônia ficam comprometidas. “É muito difícil estudar a vegetação da floresta sem um identificador”, afirma Regina Célia Lobatto, especialista em taxonomia do Museu Emílio Goeldi. “É claro que um botânico pode fazer o trabalho, mas leva três vezes mais tempo. E, se os pesquisadores demorarem muito em campo identificando árvores, os estudos de laboratório param.”

Um parabotânico experiente pode até participar de uma publicação científica. “Os identificadores são a junção do conhecimento das populações tradicionais com a metodologia acadêmica”, diz Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Eles conseguem, por meio de suas técnicas de identificação, separar as plantas por família e gênero. Alguns até classificam as espécies. Uma tarefa para poucos. “Em 1 hectare da Amazônia podem existir até 600 variedades de árvores”, afirma Barreto. “Enxergar através dessa megabiodiversidade é muito difícil. Alguns parabotânicos são enciclopédias vivas da Amazônia.”

Para entender a floresta, o parabotânico usa os cinco sentidos. Ele até mastiga pedaços de madeira

A identificação de uma árvore começa pelo olfato. “Cada espécie tem um cheiro. Você nunca vai esquecer do aroma da madeira do breu, muito usada para fabricar perfumes”, afirma Carlito, apontando para uma árvore a 100 metros da trilha pela qual caminhamos. “Para entender a floresta, eu uso os cinco sentidos.” Carlito chega a mastigar os pequenos pedaços de madeira que retira dos troncos com seu facão. “Algumas espécies se diferenciam pelo gosto amargo, ou doce, de sua seiva”, afirma. Depois de meia hora de caminhada, ele pára e aponta uma espécie de atirador de elástico na direção da copa de uma árvore de mais de 30 metros de altura. O pequeno objeto é a única maneira de Carlito conseguir alcançar as folhagens suspensas no topo dos troncos. Quando consegue derrubar algumas folhas, comemora com um grito de alegria. “Era mais fácil quando podíamos contratar escaladores. Hoje, é proibido. Se eu fosse mais jovem, subiria para pegar as folhas”, diz, com um olhar desanimado.

Muitos identificadores famosos começaram como escaladores de árvores. Eles subiam até 40 metros de altura se apoiando apenas em uma tira de couro presa aos pés. Natural da região do Salgado, na divisa do Pará com o Maranhão, o primeiro emprego de Carlito no Museu Paraense Emílio Goeldi também foi como escalador. “Fui contratado pelo professor João Murça Pires, um dos pais da botânica na Amazônia. Foi ele quem me incentivou a estudar”, diz. A importância de subir nas copas das árvores é conseguir coletar as folhas. Elas são a parte mais importante da identificação. “É a chave para decifrar uma árvore.”

As folhas que Carlito consegue derrubar com o elástico são etiquetadas e guardadas em um saco plástico. Elas vão ser levadas para o laboratório do Museu Goeldi. A descrição feita pelos identificadores é checada por botânicos. As dúvidas sobre espécie e subespécie são avaliadas por especialistas. Na maioria dos casos, esses botânicos entendem apenas de algumas famílias específicas. O conhecimento geral sobre a floresta é um talento dos identificadores.

As expedições científicas na Amazônia são caras. Duas semanas na mata podem custar até R$ 20 mil. “Com os identificadores, fica mais rápido fazer o levantamento da área. Isso economiza tempo e dinheiro”, afirma Edson Vidal, pesquisador de manejo florestal da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP).

A presença de um parabotânico em uma pesquisa também ajuda na publicação internacional. Revistas científicas, como Nature e Science, exigem a garantia da identificação correta das árvores. “Ter um parabotânico renomado ajuda a dar mais credibilidade ao trabalho. Isso abre portas para uma pesquisa”, afirma Vidal.

‘‘ Eu sonho formar novos identificadores. De preferência, filhos de ribeirinhos que já possuem o conhecimento tradicional da Amazônia’’
CARLOS DA SILVA ROSÁRIO, parabotânico

Carlito possui uma parceria de mais de três décadas com o engenheiro florestal Antônio Sérgio Lima da Silva, conhecido como Serginho. Enquanto trabalham na floresta, Carlito e Serginho conversam pouco. O silêncio só é interrompido pela enxurrada de nomes em latim, quando deparam com alguma árvore especial. É o engenheiro florestal quem passa para o papel o conhecimento do parabotânico. A dupla participou de grandes projetos da Amazônia, como a construção da hidrelétrica de Tucuruí, a implantação da mineradora Vale do Rio Doce na Floresta Nacional de Carajás e a análise para a exploração comercial da flora amazônica da empresa de cosméticos Natura. “Foram muitas aventuras. Uma vez naufragamos no Rio Xingu com pesquisadores gringos. Ficamos 15 dias em uma ilha comendo manga com farinha molhada”, diz Serginho.

Apesar da importância científica, a profissão de identificador pode acabar. O número desses profissionais é cada vez menor nas instituições de pesquisa da Amazônia. “Acredito que não deva existir mais de dez parabotânicos em toda a região”, diz Barreto, do Imazon. Um dos principais obstáculos para a formação de novos identificadores é a ausência de treinamento. A grande maioria dos parabotânicos que atuam na floresta foi formada há mais de 30 anos. Eles aprenderam a classificar as árvores com os grandes pesquisadores que passaram pela Amazônia, como João Murça Pires, Graziela Barroso e Christopher Uhl, precursores da geração de botânicos e engenheiros florestais de hoje. “Alguns técnicos estão tentando aprender a identificar, mas falta uma orientação científica”, diz Carlito. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) promove cursos de até uma semana para formar parabotânicos. “A idéia é boa, mas é muito pouco tempo para aprender tudo sobre a floresta”, afirma Vidal, da Esalq.

Carlito pretende se aposentar no próximo ano. Não há ainda um nome para substituí-lo no Museu Goeldi. A solução seria a criação de uma escola de parabotânica. Sentado em um tronco de árvore, Carlito fala sobre o sonho de fazer um curso para identificadores. “Quero ensinar minha profissão para os jovens”, diz. “De preferência, filhos de ribeirinhos ou gente do interior da floresta. Essas pessoas possuem mais facilidade para trabalhar na mata, pois já têm um conhecimento tradicional da região.”

O curso idealizado por Carlito foi desenhado em parceria com o engenheiro florestal Serginho. “Em um ano teríamos pessoas aptas para acompanhar qualquer equipe de pesquisa”, afirma. Depois fica em silêncio, levanta do tronco e volta a caminhar na floresta. Após passar por um córrego, ele aponta para o local onde estava sentado. “Preciso aproveitar enquanto ainda tenho saúde para ensinar na prática tudo o que sei sobre estas matas. Se demorar muito, vou acabar como aquela castanheira. Tombado na floresta.” O projeto da escola de parabotânicos está pronto há mais de dez anos. Carlito e Serginho ainda não encontraram um patrocinador para a idéia. “Se eles conseguirem fazer essa escola, vão salvar mais uma espécie em extinção da Amazônia, a dos identificadores de árvores”, diz Edson Vidal, da Esalq.

As árvores que ninguém mais vê
Algumas espécies são tão raras que causam comoção entre os identificadores. A superexploração econômica levou ao desaparecimento dessas árvores em grande parte da Amazônia

Pau-rosa
Aniba rosaeodora

Da essência extraída de seu tronco são produzidos perfumes famosos, como o Chanel no 5. A intensa demanda por esse óleo levou à extinção da espécie na Guiana e em parte da Amazônia brasileira. Alguns projetos nacionais tentam fazer a exploração sustentável da árvore no município de Silves, no Amazonas

Mogno
Swietenia macrophylla

É a árvore tropical mais valiosa e ameaçada do planeta. Uma tora pode valer US$ 5 mil. Essa madeira de cor castanho-avermelhada é cobiçada pela indústria de móveis por sua durabilidade e resistência aos cupins. O mogno já é considerado quase extinto em muitas regiões do Brasil

Cedro
Cedrella odorata

Quando serrado, pode ter uma coloração semelhante à do mogno. Por ter uma madeira maleável, ele é matéria-prima de objetos diversos, de instrumentos musicais a peças para construção naval. Décadas de exploração descontrolada tornaram essa árvore rara

Ipê-roxo
Tabebuia impertiginosa

As propriedades medicinais da casca do ipê são objeto de pesquisas em todo o mundo. Alguns cientistas acreditam que ela possa tratar o câncer. O ipê é amplamente usado para fabricar remédios caseiros. Apesar da importância medicinal, a indústria madeireira dizimou os ipês de boa parte da Amazônia.
 
(Revista Época, via ong Rema Atlântico, 17/03/2008)

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