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amazônia
2008-03-14
Leia a seguir o primeiro capitulo de "A Floresta Amazônica", da coleção "Folha Explica", que apresenta a necessidade racional de revisar, desde a raiz, as noções mais correntes sobre o ecossistema da floresta amazônica.

A Amazônia contém pelo menos um terço das florestas tropicais do mundo e dá ao Brasil o título da biodiversidade do planeta, com seus 5 milhões de quilômetros quadrados e 5 mil espécies de árvores. No entanto, a insistência num modelo predatório de ocupação e de exploração econômica vem destruindo a floresta ao ritmo de 20 mil quilômetros quadrados por ano.

O livro é de autoria de Marcelo Leite, colunista da Folha e membro do conselho editorial da série "Folha Explica".

Confira a introdução do "Folha Explica A Floresta Amazônica":

Da Hiléia à Rainforest

Menos de 200 anos se passaram entre a cunhagem do termo "hiléia" para designar a floresta amazônica, pelo naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), e o surgimento de uma parceria inusitada entre o músico britânico Sting e o cacique caiapó Raoni, no final dos anos 80, que contribuiu para transformar a hiléia num ícone da cultura popular do século 20, rebatizada como rainforest ("floresta chuvosa", um termo que nunca vingou em português). Entre uma e outra palavra, forjou-se a imagem por excelência da natureza intocada e ancestral, aquém da história, que ganhava corpo naquela imensidão de selva impenetrável e úmida, cortada pelos rios mais caudalosos da Terra.

Há bem pouco tempo, porém, pelo menos em termos geológicos --uma hora e meia atrás, se toda a história do planeta fosse comprimida em um século--, boa parte da paisagem amazônica era radicalmente diversa: muito mais seca, com um rio Amazonas e as portentosas chuvas minguados em pelo menos 40%, segundo estudo dos pesquisadores Mark Maslin e Stephen Burns na revista Science (vol. 290, p. 2285; 22/12/2000). A floresta, recortada em muitas ilhas separadas por manchas de cerrado e, talvez, até mesmo caatingas, segundo a interpretação do geógrafo brasileiro Aziz Nacib Ab'Sáber1.

Essa paisagem mais ressequida, irreconhecível pelo padrão de exuberância equatorial da Amazônia do presente, já era habitada por homens há pelo menos 8 mil anos. É o que revela o sítio arqueológico da caverna de Pedra Pintada, na margem esquerda do Amazonas, a poucos quilômetros do que é hoje Santarém, no estado do Pará. E não eram provavelmente bandos pequenos de caçadores e coletores, mas sociedades complexas o bastante para produzir peças de cerâmica, um tipo de atividade que exige certo grau de diferenciação social e de especialização, característico de grupos que já dominam a agricultura. O sítio Pedra Pintada foi estudado nos anos 90 pela arqueóloga norte-americana Anna Curtenius Roosevelt2, bisneta do presidente norte-americano Theodore Roosevelt (o grande paladino da criação de parques e florestas nacionais nos Estados Unidos, que, em 1913-4, depois de ter deixado a Presidência, se embrenhou na selva brasileira na companhia de Cândido Rondon, em busca do rio da Dúvida).

A caverna guardava nada menos que a mais antiga cerâmica já encontrada nas Américas --uma constatação no mínimo difícil de conciliar com a imagem tradicional do ambiente amazônico: floresta rica de solos pobres (78% são muito ácidos ou de baixa fertilidade) e reduzida capacidade de sustento para populações humanas, em razão de uma fauna de baixa densidade, embora muito diversificada. Pouca proteína, gente escassa. A melhor prova de que a Amazônia seria um paraíso verde para poucos (ou um inferno idem, dependendo do ponto de vista) estaria na composição de sua população indígena atual: muitos grupos pequenos e isolados, seminômades, com baixo desenvolvimento tecnológico e convivendo em relativa harmonia com o ecossistema em imensos territórios (basta mencionar, como se comprazem em fazer os inimigos da demarcação de terras indígenas, que os cerca de 12 mil ianomâmis brasileiros ocupam 97 mil quilômetros quadrados, uma área superior à da antiga metrópole, Portugal).

Civilizações Varzeanas

Segundo uma corrente que vem ganhando força na arqueologia, esse padrão de povoamento é apenas uma face da história, aquela que pode ser vista do lado de cá do Descobrimento. Ela tem o defeito de escamotear precisamente o que existia ou pode ter existido antes da chegada do colonizador. Na ótica de Anna Roosevelt, já houve uma Amazônia povoada por sociedades complexas e estratificadas, que reuniam dezenas de milhares de pessoas na agricultura de mandioca e talvez milho nas terras inundáveis, fertilizadas com os sedimentos transportados de longas distâncias pelos chamados rios de água branca (na verdade, barrenta), até mesmo dos Andes. Nessas várzeas, que cobrem de 2% a 3% da bacia amazônica (ou até 120 mil quilômetros quadrados, no caso do Brasil, o equivalente a quase um Portugal e meio), e nas suas adjacências, teriam florescido grandes cacicados, como os que legaram as elaboradas cerâmicas marajoara (da ilha de Marajó) e Santarém (nas margens do rio Tapajós). Esses povos guerreiros de cabelos compridos foram descritos nos relatos dos primeiros cronistas europeus, como o religioso Gaspar de Carvajal, que acompanhou a viagem do explorador espanhol Francisco de Orellana à foz do grande rio, dando origem à lenda das amazonas. Segundo Roosevelt, não seriam tão lendários assim --apenas não teriam conseguido sobreviver ao contato com a máquina de guerra européia e a pletora de doenças infecciosas que levava consigo.

Dito de outro modo, o padrão atual de ocupação indígena da Amazônia seria fruto do movimento da história, e não a resultante milenar de um processo biológico de ajustamento à baixa capacidade de sustentação do ambiente. "Cometemos uma injustiça contra essas populações quando as vemos, simplesmente, como selvagens afortunados, adaptados à floresta tropical, ao invés de um povo ecologicamente, economicamente e politicamente marginal que vem perdendo controle sobre seus hábitats e modos de vida", resumiu Anna Roosevelt em "Determinismo Ecológico na Interpretação do Desenvolvimento Social Indígena da Amazônia"3.

Seu alvo preferencial é Betty Meggers, tão norte-americana, arqueóloga e especializada em Amazônia quanto ela, mas de uma geração anterior. Em parceria com o marido, Clifford Evans, e contando com o beneplácito de governos militares brasileiros, Meggers reinou sobre a arqueologia amazônica nos anos 60 e 70. Ainda que incomodada com o calor, a umidade e os insetos, uma referência constante em seus escritos, Meggers comandou os primeiros trabalhos arqueológicos extensos e sistemáticos na região, reunidos em 1971 numa obra clássica, "Amazonia: Man and Culture in a Counterfeit Paradise" (Amazônia: Homem e Cultura em um Falso Paraíso)4.

O título já trai o viés da arqueóloga com relação à floresta amazônica, que da ótica do determinismo ambiental seria incapaz de dar origem a culturas mais complexas. Mesmo as óbvias exceções, como as cerâmicas marajoara e Santarém, teriam resultado de incursões esporádicas de civilizações estranhas ao ambiente amazônico, oriundas do Caribe ou mesmo dos Andes. Uma vez ali instaladas, teriam entrado num processo irresistível de decadência, provocada pelo meio e suas transformações.

Qualquer semelhança com as teorias periodicamente ressuscitadas para "explicar" o subdesenvolvimento brasileiro, com base na sua localização geográfica ou na insalubridade do meio, é mais que simples coincidência. A Amazônia não é necessariamente sinônimo de atraso social e cultural (embora qualquer viagem por seu interior ofereça copiosos e penosos exemplos exatamente disso); é o que pode constatar todo aquele que se despir de preconceitos e contemplar um vaso marajoara em qualquer museu etnográfico do Brasil.

Eixos De Destruição

Mais que difícil, é impossível conciliar essas duas Amazônias, a que entrou no produtivo e destruidor século 20 com cerca de 4 milhões de seus 5 milhões de quilômetros quadrados cobertos por florestas densas (dos quais 550 mil, ou mais de seis Portugais, seriam destruídos ao longo desses cem anos mais devastadores que a região conheceu sob a ação do homem) e a que precedeu o Descobrimento, provavelmente mais povoada e mais seca à medida que se recua no tempo, com flutuações de população, de cobertura florestal e de pluviosidade cuja amplitude só se pode conhecer hoje pelos métodos indiretos e por natureza fragmentários da arqueologia e da paleoecologia (estudo do ambiente no passado). Só o tempo permite reconciliá-las sem contradição, vale dizer, por meio da história --história natural e história humana.

Não existe uma Amazônia, arquétipo imemorial de floresta majestosa e imutável, mas territórios e paisagens mutáveis, sob influência da ação e do conhecimento humanos. E, assim como foi outra num passado não tão remoto assim, a floresta amazônica, com toda a sua imensidão, não vai estar aí para sempre. Foi preciso alcançar a fantástica taxa de desmatamento de quase 20 mil quilômetros quadrados ao ano, na última década do século 20, para que uma pequena parcela de brasileiros se desse conta de que o maior patrimônio natural do país está sendo literalmente torrado, pois nem ao menos uma acumulação primitiva de capital ele tem sido capaz de sustentar.

A maioria, particularmente aqueles mais próximos do poder, parece pouco disposta a aprender com o passado. Planos desenvolvimentistas lucubrados nas pranchetas e nas planilhas de computadores em Brasília, como o Avança Brasil, do governo Fernando Henrique Cardoso5, parecem destinados a reeditar o fracasso tão bem caracterizado por Aziz Ab'Sáber no livro A Amazônia - do Discurso à Práxis: "O que se cometeu de pseudoplanejamento, feito à distância, na fase que fundamentou a abertura da rodovia Transamazônica, não tem paralelo em qualquer parte do mundo, em termos de ausência de noção de escala, responsabilidade civil por propostas predatórias e falta de conhecimentos efetivos da realidade física, ecológica e social da Amazônia brasileira".

A abertura e a pavimentação de estradas ainda figuram como paradigma do desenvolvimento, embora se saiba, por extensa experiência, que seu principal efeito é induzir ao desmatamento. Dois estudos que vieram a público no ano 2000 partiram das taxas históricas de desmatamento registradas na Amazônia brasileira nas décadas de 70 e 80 para tentar estimar o quanto de devastação poderia ser causado pela construção e recuperação de 6.245 quilômetros de estradas, previstas no plano Avança Brasil como parte de investimentos em infra-estrutura da ordem de US$ 40 bilhões, ao longo de sete anos. As conclusões são alarmantes.

O primeiro desses estudos foi realizado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, mais conhecido pela sigla Ipam6.

Trata-se de uma organização não-governamental sui generis, que reúne sob o mesmo teto investigação científica de primeira qualidade com trabalhos de base, como a autogestão da pesca de várzea na ilha do Ituqui, perto de Santarém, e regulamentos para disciplinar queimadas na colônia agrícola Del Rey, perto de Paragominas (ambos no Pará). O Ipam é uma espécie de primo amazônico de outra ONG de pesquisa, a norte-americana Centro de Pesquisa Woods Hole (WHRC, na abreviação em inglês), que fica na localidade de mesmo nome no litoral de Massachusetts e recebe periodicamente pesquisadores brasileiros do Ipam, para estágios intensivos de treinamento acadêmico sob a supervisão do ecólogo Daniel Nepstad.

O pessoal do Ipam se juntou ao do Instituto Socioambiental (ISA), de São Paulo, para produzir o seguinte vaticínio, no livreto Avança Brasil: os Custos Ambientais Para a Amazônia, de abril de 2000: apenas quatro das estradas incluídas no Avança Brasil - Cuiabá- Santarém (BR-163), no trecho Santarém-Itaituba; Humaitá-Manaus (BR-319); Transamazônica (BR-230), no trecho Marabá-Rurópolis; e Manaus-Boa Vista (BR-174) -, perfazendo um total de 3.500 quilômetros, provocariam ao longo dos próximos 25 a 35 anos um desmatamento entre 80 mil quilômetros quadrados, no cenário otimista, e 180 mil quilômetros quadrados, numa perspectiva pessimista. Algo como um a dois Portugais de floresta derrubada e morta, em apenas uma geração, ou entre um décimo e um quinto da área de mata atlântica que os portugueses e seus descendentes levaram cinco séculos para devastar. Em carta publicada na revista britânica Nature em 11 de janeiro de 2001 ( vol. 409, p. 131), a previsão do Ipam, incluindo agora todas as estradas do Avança Brasil, foi revisada para 120 mil a 270 mil quilômetros quadrados de destruição --até três Portugais.

O segundo trabalho veio à tona em novembro de 2000, novamente pelas mãos de pesquisadores norte-americanos associados com brasileiros, dessa vez numa instituição científica mais tradicional, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), mantido pelo governo federal. Liderado pelo ecólogo William Laurance, tinha o claro propósito de refinar os cálculos efetuados pelo grupo de Nepstad, na medida em que se propunha a incluir todas as estradas do Avança Brasil, mais as hidrovias e hidrelétricas previstas no plano desenvolvimentista e a construção de linhas de transmissão de energia elétrica. Submetido à prestigiada revista científica norte-americana Science, o artigo vazou para a imprensa brasileira antes mesmo de ter recebido a aprovação final dos revisores especializados, que seus editores contatam na tentativa de garantir a publicação só de trabalhos que satisfaçam os mais altos padrões de pesquisa (um processo de filtragem conhecido como peer review, ou "revisão por pares"). Acabou saindo em janeiro de 2001 na Science (vol. 291, 19 de janeiro de 2001; p. 438). O time do Inpa também recorreu ao esquema dos dois cenários, mas pintou-os com tintas ainda mais carregadas: em apenas 20 anos, menos de uma geração, iriam restar somente 28% de mata virgem na Amazônia, na previsão mais otimista, ou meros 5%, na estimativa menos otimista, como resultado do Avança Brasil (hoje ainda há 87% da floresta de pé, boa parte intocada).

O projeto de integrar a Amazônia ao Brasil a golpes de estradas como a Transamazônica e a Belém-Brasília dura já quatro décadas. Partiu do conceito duvidoso de que a região representava um "vazio demográfico" (do qual certamente discordariam os índios e as populações ribeirinhas) e estaria portanto vulnerável a apetites estrangeiros. Além de estradas, estava nos planos a ocupação por meio de projetos de colonização agrícola e de latifúndios agropecuários, artificialmente induzidos por incentivos fiscais. Depois vieram os grandes projetos públicos de infra-estrutura e mineração, como a hidrelétrica de Tucuruí e a exploração da serra de Carajás. Com o Avança Brasil, alteraram-se alguns objetivos --na mira está agora o escoamento da produção da soja que avança sobre o cerrado circundante--, mas não a mentalidade que engendrou um "desenvolvimento" no mínimo discutível, como bem resumiu o relatório do Ipam:

"Em função dessa política de ocupação, a população humana na região cresceu de 4 milhões para 10 milhões entre 1970 e 1991, e muitas famílias foram assentadas. O rebanho bovino cresceu de 1,7 milhão de cabeças (1970) para 17 milhões em 1995. Nesse período, a produção de ferro, bauxita e ouro da região rendeu cerca de US$ 13 bilhões. O produto interno bruto (PIB) da Amazônia, que era de US$ 1 bilhão por ano em 1970, subiu para US$ 25 bilhões em 1996 (3,2% do PIB nacional). No entanto, em 1991, quase 60% da população amazônica possuía renda insuficiente e a taxa de analfabetismo era de 24%, uma das mais elevadas do Brasil, situando-se abaixo somente da região Nordeste. Atualmente, a Amazônia detém a pior distribuição de renda do Brasil, que, por sua vez, é um dos países com os piores problemas de desigualdade do mundo".

O Valor Da Floresta

O objetivo central deste livro é desfazer a imagem de que a floresta tenha estado ou vá estar aí para sempre. Acabar com o mito de que a exuberância amazônica, apesar de abarcar mais da metade do território nacional, representa "florestas virgens tão antigas quanto o mundo", como se referiu o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire às matas brasileiras. Ou, ainda, que seja tão vasta e perene a ponto de carecer de valor, ensejando sem maiores conseqüências uma exploração predatória como a que dizimou a mata atlântica em cinco séculos de colonização.

Não menos fundamental, porém, será a noção de que o valor entesourado na maior floresta tropical do mundo precisa ser apropriadamente avaliado e explorado, o que equivale a dizer que ela deve ser ocupada e utilizada de maneira sustentável, de modo a garantir a sobrevivência para uma parcela crescente de brasileiros, de preferência com uma renda e um nível de vida igualmente ascendentes. Qualquer outra proposta para a Amazônia, seja de preservação, seja de exploração, que não atenda a esse objetivo social, está fadada ao fracasso.

Como disse Euclides da Cunha numa famosa frase, relembrada pelo jornalista Ricardo Arnt em ensaio de 1991 ("Um Artifício Orgânico"): "A Amazônia é a última página, ainda por escrever-se, do Gênese". Ela terá de ser escrita por todos os cidadãos de um país que carrega o nome de uma árvore à beira da extinção, marca indelével de uma nação que principiou pela destruição sistemática de florestas, mas que nem por isso precisa insistir sistematicamente no erro.

Quanto às páginas do livro, serão escritas e apresentadas numa ordem concebida com a intenção de demonstrar a necessidade racional de revisar, desde a raiz, as noções mais correntes sobre a floresta amazônica. Sobre a floresta, bem entendido, e não sobre a Amazônia como unidade geopolítica. Não havendo como abarcar, numa obra desta extensão, todos os aspectos políticos, militares e estratégicos de um território tão vasto e problemático, optou-se por concentrar o foco naquilo que há de mais básico para esse debate: o ecossistema, em suas interações mais imediatas com as populações humanas e com o clima, regional e mundial. É manifesto que somente essas informações de fundo mais científico e econômico são insuficientes para dirimir os muitos debates sobre os destinos da macrorregião, do projeto Sivam ao problema da biopirataria, mas também não é menos certo que muitas das falsas polêmicas sobre ela seriam rapidamente resolvidas com apoio mais sólido e mais freqüente nessas mesmas informações.

No capítulo 1, os temas serão as riquezas mais propaladas da Amazônia, sua biodiversidade (riqueza biológica, ou quantidade de espécies) e sua sociodiversidade (riqueza cultural, ou multiplicidade de nações indígenas e populações tradicionais que a habitam e exploram, exercendo maior ou menor grau de pressão sobre o ambiente). O objetivo do capítulo será demonstrar que, apesar de todo o potencial dessa massa de diversidade e de conhecimento tradicional sobre seus usos para a nascente indústria da biotecnologia, dificilmente resultará daí uma forma predominante de atividade econômica, capaz de prover níveis crescentes de renda para milhões de pessoas. Extrativismo (borracha, castanha, essências) e sistemas agroflorestais (culturas perenes como cupuaçu, açaí e pupunha, por exemplo) são soluções atraentes, em particular se voltadas para o beneficiamento e o aumento do valor agregado dos produtos, mas dificilmente sustentariam mais que populações locais. Além disso, com a transformação progressiva da engenharia genética numa tecnociência da informação, a matéria-prima das seqüências genéticas naturais tenderá a perder importância.

O capítulo 2 será todo ele dedicado ao maior e mais problemático produto do extrativismo, a madeira. Sua exploração nos moldes atuais, absolutamente predatórios, tem funcionado como elo fundamental na cadeia de devastação iniciada com a abertura de estradas. Mas existem alternativas, como vêm comprovando projetos de manejo sustentável (extração racionalizada, que reduz drasticamente o desperdício e prepara o retorno à mesma área, três décadas após o primeiro corte) e de certificação ambiental de madeireiras, de olho num mercado internacional "ecologicamente correto". A principal conclusão do capítulo será que a madeira, mais que a agropecuária ou o extrativismo de produtos não-madeireiros, pode constituir a base de uma economia florestal para a Amazônia, com potencial para gerar renda e emprego para a maior parte de sua população, sem necessariamente levar à degradação da floresta.

Um dos aspectos mais fascinantes da floresta amazônica, suas relações com o clima regional e global, será contemplado no capítulo 3. A apresentação de alguns dos maiores e mais criativos projetos científicos em curso nas florestas tropicais do mundo, como o Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (mais conhecido pela abreviação inglesa LBA) e o Projeto Seca-Floresta, servirá para extrair conclusões aparentemente paradoxais, como a de que a floresta é fundamental para a sua própria sobrevivência, ou a de que seus padrões de nebulosidade e de precipitação se parecem mais com aqueles que prevalecem sobre os oceanos do que com os observados sobre os continentes. Em resumo, que a permanência da floresta é crucial para a manutenção de ciclos vitais para o clima e para a economia, justificando a emergência de um conceito que pode revolucionar a forma como se vê a Amazônia: o de serviços ecológicos, ou a contribuição da floresta para insumos equivocadamente tidos como inesgotáveis e, por isso, sem valor, como o maior aparelho de produção de água doce do planeta.

No capítulo final será defendida a conclusão de que a floresta tem, sim, um enorme valor. O que falta é quantificá-lo, explorá-lo e distribuí-lo melhor. Ou seja, que a paisagem florestal, a biodiversidade e a biomassa são commodities do futuro e já se encontram em pleno processo de valorização, produto da escassez crescente. Caberia assim, aos brasileiros, preservá-las, menos em benefício da humanidade que de seu próprio país; e por razões práticas, antes mesmo das motivações éticas (como a não-dilapidação de um patrimônio que também pertence às gerações futuras, as quais continuarão a necessitar dos serviços que a floresta provê ao homem). Enfim, que a exploração racional da floresta amazônica e sua conseqüente conservação constituem também um imperativo de ordem civilizatória, além de pragmática.

1 - Aziz Nacib Ab'Sáber, Amazônia - do Discurso à Práxis. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996; p. 56
2 - Anna C. Roosevelt, "Paleoindian Cave Dwellers in the Amazon: the Peopling of the Americas". Em: Science, vol. 272; 19 de abril de 1996; p. 373.
3 - Anna C. Roosevelt, "Determinismo Ecológico na Interpretação do Desenvolvimento Social Indígena da Amazônia". Em: Walter A. Neves (org.), Origens, Adaptações e Diversidade Biológica do Homem Nativo da Amazônia. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi/CNPq, 1991.
4 - Betty J. Meggers, Amazonia: Man and Culture in a Counterfeit Paradise. Chicago: Aldine, 1971.
5 - O programa Avança Brasil se baseia no Estudo dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento, que, segundo o site do governo sobre o programa (www.abrasil.gov.br/), "é uma radiografia dos grandes problemas nacionais e das imensas oportunidades que o País oferece".
6 - Daniel Nepstad, João Paulo Capobianco, Ana Cristina Barros, Georgia Carvalho, Paulo Moutinho, Urbano Lopes e Paul Lefebvre, Avança Brasil: os Custos Ambientais Para a Amazônia (Relatório do Projeto "Cenários Futuros para a Amazônia"). Belém: Ipam, 2000.
Ver também o site: www.ipam.org.br/ O estudo crítico sobre impactos do projeto Avança Brasil está disponível em: www.ipam.org.br/avanca/ab.htm

"Folha Explica A Floresta Amazônica"
Autor: Marcelo Leite
Editora: Publifolha
Páginas: 104
Quanto: R$ 17,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

Leia também a resenha "A Amazônia merece", de José Sarney Filho, publicada à época do lançamento do livro - http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u380310.shtml

(Folha On-line, 12/03/2008)

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