Estudo inédito desenvolvido na Unicamp resultou na obtenção de filmes biodegradáveis a partir de derivados do grão de quinoa, um pseudocereal originário da América do Sul andina. Os biofilmes obtidos pelo método de casting apresentaram boas propriedades mecânicas e resistência a solubilidade. Foi uma experiência exploratória, mas que abre a perspectiva do uso desses derivados de quinoa em biomateriais no futuro, substituindo os filmes convencionais de plástico, que protegem os alimentos, mas poluem o meio ambiente.
A peruana Patrícia Cecília Araujo Farro trouxe seis das centenas de variedades de grãos de quinoa existentes em seu país, optando por estudar a variedade Real (Chenopodium quinoa Willdenow) para a tese de doutorado apresentada na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), orientada pela professora Florência Cecília Menegalli e co-orientada pelo professor Paulo José de Amaral Sobral.
Filmes convencionais de plástico são poluentes
A autora da tese explica que a elaboração de biofilmes é um processo de transformação que implica, inicialmente, conhecimento das características físico-químicas de suas matérias-primas, como amidos, proteínas, lipídios e aditivos ao processo com agentes plastificantes. O amido é o mais estudado na literatura, devido a sua abundância no reino vegetal e à elevada degradabilidade.
“O grão de quinoa é uma fonte muito rica de amido – macromolécula que permite a formação de filmes – e de proteínas e lipídeos. Há muitas pesquisas sobre suas propriedades nutricionais, como farináceos e aminoácidos, mas este é o primeiro estudo exploratório relacionado com biomateriais”, informa.
Patrícia Araujo Farro escolheu a quinoa Real por seu maior conteúdo de amido, 73%, contra 12,8% de proteínas e 6,3% de lipídeos. A partir deste grão, ela extraiu três matérias-primas: a farinha integral, obtida por moagem seca do grão; a farinha por extração úmida, parcialmente desengordurada e desproteinizada; e o amido, processado de forma a danificar pouco o grânulo.
“Da farinha integral de quinoa, chegamos a um filme de coloração amarelada e brilhante, propriedades ópticas que foram atenuadas na farinha por extração úmida. Já o amido resultou em filme de transparência comparável com a do polipropileno”, explica a pesquisadora.
Segundo ela, os biofilmes apresentaram características boas em termos de barreira (permeabilidade ao vapor de água e a gases), mecânicas (em testes de tração e perfuração) e solubilidade. “Mostramos que os derivados de grão de quinoa, realmente, podem formar biofilmes que merecem ser testados para uso em setores como os de alimentos, agrícola e farmacêutico”.
A aplicação mais comum dos filmes é na cobertura e embalagens de alimentos, podendo conter antioxidantes, antimicrobianos ou aditivos que visam retardar a taxa de deterioração do produto. “Os biofilmes que elaboramos podem ser inclusive comestíveis, mas isto exigiria outras condições de preparação que não testamos”, diz a autora do estudo.
Exigências
Patrícia Araujo Farro afirma que as pesquisas para produção de filmes biodegradáveis respondem a três exigências atuais no mundo, começando pela substituição dos plásticos, por uma questão ambiental. “A segunda é a de utilizar recursos regionais. Temos muitos estudos sobre o milho e o trigo, mas possuímos diferentes variedades de grãos esquecidos na América do Sul, que permitem obter matérias-primas novas”.
A terceira premissa, conforme acrescenta a pesquisadora, é a biodegradabilidade. “Obtendo matérias-primas derivadas de recursos naturais, com a menor quantidade de processamento químico, teremos certeza de que a biodegradabilidade deste material será de cem por cento. Há uma série de metodologias ainda não exploradas, como modificações químicas e bioquímicas, capazes de melhorar os resultados com a quinoa”.
A professora Florência Menegalli, que orientou a tese de doutorado, informa que seu grupo de pesquisadores na FEA vem trabalhando com proteínas há bastante tempo, sempre no desenvolvimento de biomateriais. “Esses produtos ainda apresentam problemas que tentamos resolver, até que possam substituir os plásticos sintéticos. Temos muito trabalho pela frente”.
A docente esclarece que existem misturas de materiais naturais com sintéticos que também são biodegradáveis. “Ocorre que estaremos sempre amarrados ao petróleo. O que buscamos são materiais absolutamente hidrofílicos, mas também naturais, atendendo a uma exigência dupla dos dias de hoje. Investigamos outros derivados de grãos com esse objetivo, que oferecem biofilmes mais solúveis, porém menos resistentes – este é um aspecto que procuramos melhorar”.
Parceiros
Florência Menegalli ressalta que as pesquisas com biomateriais são feitas sempre em conjunto com o professor Paulo Sobral, da USP, e graças a financiamos diversos, como da Fapesp, Capes, CNPq, Cyted e alguns convênios bilaterais com Espanha, Portugal e países da América Latina.
Patrícia Araujo Farro, a propósito, contou com o apoio de várias instituições para viabilizar sua pesquisa. Elaborou os biofilmes e realizou parte das análises de caracterização desses materiais no Laboratório de Tecnologia de Alimentos (LTA) da USP, no Laboratório de Difração de Raios-X do professor Lizandro Pavie (com a colaboração do especialista Alfredo Fraymann) e em outras unidades laboratoriais da Unicamp.
As análises reológicas do amido foram possíveis graças ao convite do professor Arturo Bello Perez para um estágio no Centro de Produtos Bióticos (Ceprobi), do Instituto de Politécnico Nacional de México, em Yautepec. As amostras trazidas pela autora da tese (Real, Amarillo de Maranganí, Killawaman, a melhorada 5460, Blanca de Junín e Mantaro) foram doadas pelo Instituto Nacional de Investigación y Extensión Agraria (Inia), de Cajamarca, Peru.
Grão de quinoa vira iguaria no exterior
O grão de quinoa passou a ser mais conhecido no Brasil apenas recentemente, por conta do enaltecimento de suas propriedades nutricionais pela mídia que se dedica a temas sobre a qualidade de vida. Por enquanto, porém, a quinoa ainda é servida como iguaria em pouquíssimos restaurantes e com preços à altura – em Campinas, a caixa com 200 gramas de grãos é vendida a quase R$ 20.
“Tenho ouvido muitas declarações de que o grão de quinoa e o amaranto, outro pseudocereal, são muito consumidos em meu país, o que é mentira. Se fosse verdade, teríamos a população menos desnutrida do mundo, pois a qualidade nutricional do grão é bastante elevada”, afirma Patrícia Araujo Farro, que é peruana.
Segundo a pesquisadora, em termos de proteínas, a quinoa contém todos os aminoácidos essenciais para consumo humano e apresenta uma resina superficial externa chamada saponina, que tem propriedades antifúngicas e também hipocolesterimizante.
“O grão de quinoa é consumido por uma população andina bastante restrita, de campesinos, sendo conhecido até pejorativamente como ‘comida de índios’. A literatura da Espanha, na época do descobrimento, refere-se ao ‘arrozinho-de-índio’ ou ‘arroz das Américas’. Ao longo do tempo, o grão foi muito esquecido pelo grosso da população”, explica Patrícia Araujo Farro.
De fato, quando cozido, o grão de quinoa abre-se feito arroz, até duas vezes o seu diâmetro. Mas os andinos também misturam quinoa com carne de lhama ou de alpaca, usando-o também para sopas e doces.
A pesquisadora acha importante destacar que o grão de quinoa é dificilmente adaptável a outros solos fora do berço andino – formado por Bolívia, Peru, nortes da Argentina e do Chile, e serras do Equador e da Colômbia. “Ao menos no Peru, o grão pode ser cultivado desde o nível do mar até 5 mil metros acima, sendo resistente aos solos áridos e ao ar rarefeito. Aliás, a melhor qualidade do grão é obtida a altitudes elevadas”.
Ela comemora o interesse pela quinoa no exterior, principalmente na Europa e na América do Norte, que compram o grão semi-processado para consumi-lo na forma de barra de cereais ou em flocos. “Sinto muita alegria diante da disseminação do grão lá fora, mas também tristeza porque dentro do Peru não existe apoio para diversificar seu processamento, seu consumo e sobretudo sua cultura”.
Patrícia Araujo Farro ressalta o crescimento importante do cultivo a partir dos anos 1970, em função da exportação, mas assegura que a escala poderia ser bem maior. “Nesse sentido, o que eu busco com este trabalho, pessoalmente, é promover a aplicação do grão de quinoa em outros produtos que possam interessar também às indústrias, começando pela de biomateriais”.
(Por Luiz Sugimoto, Jornal da Unicamp, 12/03/2008)