Aprovada em 13 de setembro de 2007, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas representa o reconhecimento dos Estados nacionais à legitimidade do modo de vida destes povos. Nela são tratados direitos como à livre determinação dos povos indígenas; à terra, aos territórios e aos recursos naturais; ao consentimento prévio, livre e informado; às normas não escritas que regem internamente a vida das comunidades indígenas; à propriedade intelectual.
A Declaração reforça a discussão sobre o caráter intercultural e plurinacional dos Estados reivindicados por diversos povos na América Latina. Após a aprovação pela Assembléia da ONU, movimentos indígenas na Bolívia, Equador, Guatemala discutem maneiras de transformar a Declaração em lei. No Brasil, a primeira mobilização neste sentido ocorreu em fevereiro, em Brasília, promovida pelas organizações indígenas Apoinme (Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), Instituto Warã e Conselho Indígena de Roraima (CIR).
O evento contou com participações internacionais, entre elas a de Juan Leon Alvarado, indígena guatemalteco Maya-quiché, embaixador da Guatemala no Equador. Juan, que é ex-presidente da comissão da OEA que discute a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, nos falou em entrevista ao PORANTIM dos diversos aspectos que representa - enquanto vitória e desafios - a aprovação da Declaração da ONU e sobre a conjuntura atual em seu país.
PORANTIM - Qual o significado da Declaração da ONU para os povos indígenas?
JUAN LEON - A aprovação da Declaração levou 22 anos e houve realmente um processo de intercâmbio entre povos indígenas e governos. Os movimentos indígenas tiveram um amadurecimento, assim como os governos, para chegar à sua aprovação. E que significado tem essa Declaração para todo o mundo? Pela primeira vez há um instrumento jurídico internacional que reconhece a existência dos povos indígenas com estatuto, como povos com direitos internacionais. É um instrumento que vai criar uma parte complementar do direito internacional e introduzir direitos coletivos, de que não se falava antes. E mais, tem uma importância para os povos indígenas como instrumento de revalorização e crescimento da auto-estima. A Declaração lhes injetou energia, lhe deu visões de como gerar ações. Outro ponto é que ela obriga os Estados a fazer reformas, mudanças em suas políticas internas que não vão puder ser as mesmas, se realmente falamos de uma democracia integral em que participam os povos indígenas independe de seu número nos países.
Como se deu a participação indígena no processo de construção e aprovação da Declaração?
- Durante os 22 anos houve uma participação muito ativa, muito persistente dos povos indígenas. Não houve um espaço de negociação direta entre os estados e os povos indígenas porque a ONU não permite, mas através de delegações como do governo da Guatemala, do México e de outros países da União Européia se faziam consultas aos povos indígenas e se aprovava o que era de importância para os povos.
Como o Sr. Avalia a responsabilidade dos governos diante da Declaração?
- Ela tem que ser total. Não pode ser parcial, não pode ser somente uma seleção de direitos ou de artigos. Se a declaração está organizada por artigos é por uma questão técnica e não significa que os direitos dos povos indígenas se dividem, eles são integrados. E integração, se falamos de direito à vida indígena, tem a ver com meio ambiente, recursos naturais, terra, território, língua, história, cultura, conhecimento, tudo. Creio que a responsabilidade dos governos tem que ser gradual, mas não pode ser seletiva, nem discriminadora, ou seja, utilizar apenas os artigos que lhes são mais convenientes. Não há justificação para os governos que dizem que a Declaração não é vinculante, porque não é uma convenção. Isso não é justificável porque é um direito internacional com máxima autoridade para criar as normas e os instrumentos das Nações Unidas e estes estados são membros das Nações Unidas e têm a responsabilidade de por em prática suas determinações.
Mas essa assistência dos governos não pode se transformar num assistencialismo e colocar em risco a autonomia dos povos indígenas?
- Por esse motivo digo que a Declaração vem revolucionar a relação entre Estados e povos indígenas. A autonomia, o livre governo, a livre determinação não podem ser uma questão como acontece com grupos de povos que vivem em reservas, como nos Estados Unidos. Não pode ser assim. Podemos entender que se o Estado dá o recurso econômico, vamos perder a autonomia? Eu creio que não. Há autoridades tradicionais, governos bem estabelecidos pelos povos indígenas. Temos que crer na capacidade de nossos povos de manejarem seus recursos de maneira que não nos acusem depois de mau prestação de contas, corrupção, de não saber utilizar. Nós sabemos planejar e aplicar o recurso. Mas o estado tem que dar o recurso de forma incondicional, não pode ser o governo "te dá isso" mas quer "aquilo", assim estaríamos perdendo a autonomia, os direitos. Estaríamos como vendendo o direito, trocando por dinheiro e isso é perigoso.
Nesse sentido, quais desafios se colocam para os povos indígenas?
- Um desafio é saber de que maneira podemos seguir mantendo tudo o que rege nossas normas, princípios, estruturas organizativas, formas e tomadas de decisões. Pela situação de pobreza em que vivemos, estamos perdendo o dia-a-dia e se não nos reconstituirmos por nós mesmos o que vai adiantar a Declaração? Por isso, os inimigos do movimento indígena crêem que estamos perdendo tempo e vamos terminar "alienados", "mudados". Então, de que maneira podemos equilibrar as duas coisas: utilizar as experiências externas como uma ferramenta de fortalecimento do interno e que não seja de destruição interna? Outro desafio é como produzir propostas de transformações de acordo com a Declaração. Por seguirem nos oprimindo, caímos sempre na questão da denúncia. De que maneira, ao mesmo tempo em que denunciamos, geramos propostas de ação? Isso é complexo. E outro desafio é a construção de um canal de negociação entre povos indígenas e os Estados. Não podemos seguir afastados dos governos. Ainda apontaria o desafio de como criarmos direcionamentos claros e bem definidos para a cooperação internacional, sem nos subordinarmos a seus interesses e objetivos.
Qual o papel de organismos como a própria ONU e OEA para a implementação da Declaração pelos governos?
- Eu creio que há um artigo do sistema da ONU que trata da sua implementação incluindo um fórum permanente dos povos indígenas. Creio que, até agora, como é muito recente sua aprovação, nem os povos indígenas, nem a ONU, nem a OEA tem previsto quando começaríamos a consensuar de que maneira estas instituições podem contribuir com a implementação da Declaração. Mas algo me enche de satisfação: no Equador, na Bolívia e aqui no Brasil têm sido realizados encontros nacionais e internacionais para ver como se pode fazer um plano de implementação. Na Guatemala, vai haver um encontro internacional em abril com indígenas da Austrália, Nova Zelândia... Isso vai começar a se generalizar e logo vai chegar à ONU. Quanto à OEA, onde temos a discussão da Declaração Americana, está com o debate estancado neste momento. Não sabemos se segue com a discussão da Declaração da OEA, ou se faz um plano para implementação da Declaração da ONU, ou se faz uma Convenção Americana. Não está claro o que se vai ser feito na OEA.
Na Guatemala, onde quase metade da população é indígena, como acontece a participação indígena?
- Nos governos, a participação indígena desde 1996, quando se firmou a paz, tem altos e baixos. De 1996 a 2000, tivemos mais gente ocupando postos de decisão do Estado, alguns ministros, vice-ministros, funcionários de interior. De 2000 a 2004, foi a época em que mais indígenas estiveram no Estado. Não tenho números, mas isso se pode ver facilmente: ministro da Cultura, vice-ministro da Agricultura, da Educação, de Minas e Energia, embaixadores e diretores de órgãos indígenas, foram criadas instituições indígenas, leis para oficializar idiomas, uma porção de coisas. Já de 2004 a 2007 diminuiu um pouco a inserção indígena, creio que ao mesmo nível que havia de 1996 a 2000. Mas em 2008, com o novo governo, está baixando totalmente a participação.
Mas o presidente Álvaro Colón não afirmou que convocaria a população indígena para trabalhar no governo?
- Se há uma declaração por parte do presidente, há várias instituições que eram dirigidas por indígenas e agora não são. Quanto aos ministros, temos apenas o ministro da Cultura e alguns vice-ministros, e a participação não é muito forte. É normal o processo em que chegamos porque também tem a ver com a correlação de forças com o movimento indígena. O movimento indígena, na Guatemala, neste momento, também está passando por seu momento mais baixo. Não é um movimento de mobilização, nem de reivindicação, nem de confrontação, porque, como vivemos um período muito extenso de conflito armado, muita gente preferiu entrar numa fase de negociar e não usar a força. Então, é normal essa perda de espaço quando não há força visível. O governo que entra não encontra resistência e, logicamente, não vai defender esse espaço. E quando são retirados os espaços dos indígenas, ninguém diz nada, ninguém se opõe. Temos que fazer crescer de novo a atuação indígena, demonstrar outra vez a força social, para que o governo ressuscite, inclua incorpore mais indígenas. Por ser indígena e sempre lutar pelos direitos dos povos indígenas tenho que ser crítico. Sou funcionário do governo, mas minha participação dentro do governo sempre foi crítica e propositiva. Por outro lado, não tenho dificuldade para reconhecer que o governo tem feito um esforço para a inclusão dos povos indígenas. Agora, a situação política do país é complexa. Temos muitos problemas que, a princípio, não pareciam ser substantivos como a atuação dos grupos organizados de criminosos, a pobreza extrema em que vive a população e a perda do poder aquisitivo da moeda. Está muito alto o preço das coisas básicas e o salário não sobe. Em dólares o salário chega a uns U$ 120. É um momento muito difícil para qualquer governo. Não importa se é de direita, de esquerda, de centro. A situação do país é complexa e o governo tem que promover muito diálogo para chegar a acordos com os diversos setores, um diálogo nacional sobre bases sérias, sólidas e comprometedoras. Temos aberto vários canais de diálogo na Guatemala, mas tem ficado apenas na discussão, não aterrissam. Desde o início, o diálogo tem que ser vinculante também. Saber que as decisões tomadas ali sejam levadas aos ministérios e que estes os ponham em prática ou então seguiremos igual e vamos levar muitos anos para sair dessa situação.
Qual o papel que Rigoberta Menchú desempenhou nas últimas eleições, nesse sentido de dar visibilidade às questões indígenas?
- A Rigoberta é conhecida em todo o mundo porque ganhou um Prêmio Nobel da Paz [em 1992]. Há duas etapas na trajetória dela: a primeira é que, quando ganhou o Nobel, ela decidiu manter-se um pouco mais "acima". Logicamente um prêmio Nobel tem assessores, tem que se manter entre "os grandes"... Isso a levou a criar a Fundação que tem seu nome. Mas a fundação aterrissou pouco nas comunidades e muita gente pensou que ela havia abandonado sua gente e as comunidades. Quando ela se deu conta disso, tentou corrigir a postura, mas não foi o suficiente porque isso tudo é um processo. Agora a fundação tem presença nas comunidades, faz um trabalho com o povo, mas ainda não é suficiente para mostrar um resultado. Foi o que aconteceu com ela em sua campanha eleitoral. Além da ausência nas comunidades, também foi relevante a falta de recursos econômicos para a campanha, o partido político em que se candidatou era desconhecido. E isso é um processo. Evo Morales, na primeira vez em que se candidatou, tirou 2% de votos. Se ela continuar trabalhando, vai conquistar a consciência do povo. E há um outro desafio que eu mesmo experimentei durante a campanha de 1995: o peso do racismo e da discriminação. Um oprimido não crê em outro oprimido. Em nosso país há um ditado: "se os 'louros' [os da cidade] não puderem fazer, o que nós poderemos?". Perguntamos a Rigoberta porque não está nas comunidades, porque não serve a sua gente, mas nenhum dos outros candidatos nunca estiveram nas comunidades e por quê não lhes cobramos o mesmo? Como digo, há um peso do racismo muito forte. Isso pesa muito no momento de uma decisão eleitoral. E é um desafio para Rigoberta ou qualquer outro movimento que queira promover transformações no país. Não é por ser pobre, que se vota no pobre. Existe apadrinhamento político, existe compra de votos, existem promessas de partidos políticos que não trabalham por princípios políticos e democráticos, mas para quem dá mais dinheiro e o povo vai por aí. Eu acredito que Rigoberta tem outro plano e me deixa feliz saber que retomou a luta, por exemplo, da perseguição aos genocidas na Guatemala. Agora ela tem um outro espaço aberto pela campanha eleitoral, por se aproximar das comunidades ainda que seja por pouco tempo, mas toca as mãos do povo, olha nos olhos, vê as crianças e isso fortalece seus princípios. Estou confiante de que ela vai ajudar a fortalecer as demandas indígenas.
(Por Clarissa Tavares, CIMI, 11/03/2008)