Arte pela Amazônia é a ampla mostra que será inaugurada hoje à noite para convidados e amanhã para o público, no terceiro andar do prédio da Fundação Bienal de São Paulo. Há de tudo: fotografia, instalações, pinturas, esculturas, objetos, vídeos e gravuras criados por três diferentes gerações de artistas. Essas obras são abrigadas na mostra dentro de núcleos livres (leia ao lado), concebidos pelo curador Jacopo Crivelli Visconti de forma a promover aproximações entre as criações. Os núcleos não têm títulos próprios. Cabe ao espectador fazer suas relações.
A iniciativa contou com a adesão de 150 artistas de todo o Brasil, incluindo os grandes nomes de nosso cenário de artes visuais, como Tomie Ohtake Tunga, Nelson Leirner, Paulo Pasta, Regina Silveira, Sandra Cinto, Thomaz Farkas e Maria Bonomi. Eles cederam suas criações para a mostra e, depois, para a realização de um leilão, previsto para o dia 3 de abril, em um shopping da cidade.
As escolhas das obras foram feitas pelos próprios artistas. Muitos criaram trabalhos específicos para o projeto; outros decidiram apresentar peças já prontas e há criadores que optaram por reeditar obras realizadas há tempos. 'Não gosto de tema para trabalhos, então resolvi colocar uma obra inusual minha, uma monotipia de uma série de 2005 que nunca havia mostrado. Essa exposição é bacana, é um jeito de ajudar em algo', diz o pintor Paulo Pasta, referindo-se aos possíveis desdobramentos do projeto, voltado para uma criação de reserva natural na Amazônia. Sandra Cinto também entrou com a vontade de ajudar. 'Nunca fico preocupada com o literal. Meu trabalho em si já tem relação com a paisagem e resolvi participar com um desenho inédito e novo', afirma a artista, que também indicou as jovens Michele Lerner e Alice Ricci a participar.
Preocupada em realizar ações de preservação da floresta e programas para a população ribeirinha local, a produtora da mostra é a Base 7 Projetos Culturais. 'É fundamental chamar a atenção para a Amazônia e promover sua preservação consciente', diz o artista Ricardo Ribenboim, proprietário da Base 7, ao lado de Arnaldo Spindel e Maria Eugênia Saturni e principal articulador do projeto.
Como conta Ribenboim, que criou, ele próprio, a obra Intangível para a mostra, as primeiras conversas para a realização do projeto vêm sendo feitas há oito meses em parceria com a CO2 Soluções Ambientais. Com a verba do leilão, será criado um fundo para o recém-nascido Instituto Arte + Meio Ambiente, que, concebido este mês, poderá ter estrutura própria.
Tudo será focado para o plano de criação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) a ser comprada em local já definido, no sul do Amazonas. 'É uma área equivalente a 5,3 vezes o Parque do Ibirapuera', afirma Ribenboim. 'As reservas particulares são uma solução saudável para a Amazônia. Os recursos são particulares, mas a guarda é do Governo', ainda diz. Segundo ele explica, quando se constitui uma reserva, não se constrói nada no local, mas se instalam censores em núcleos estratégicos que indicam se há queimadas e desmatamento na área. 'Eles acionam a segurança', conta.
O local escolhido para a reserva particular, perto da divisa com o Mato Grosso, é, segundo Ribenboim, um lugar estratégico dentro da área de cinco Estados brasileiros que compreende a Amazônia. 'Com o Amazonas sentimos mais firmeza. É o Estado com menor índice de desmatamento; que quer trabalhar para a preservação da floresta em pé e pela sustentabilidade; e que tem um Instituto Socioambiental seriíssimo', diz. No leilão, que será comandado pelo martelo do leiloeiro James Lisboa, 70% do valor de cada obra (os lances mínimos foram estipulados pelos próprios artistas) serão destinados ao projeto e 30% vai para o criador. 'Mas há os que cederam integralmente sua obra', diz Ribenboim.
Mundos, Esferas e Universos
SEM FRONTEIRAS: Este é um segmento que, como afirma Ribenboim, fala de 'rasgar a idéia das fronteiras' - ele completa que problemas ambientais como o aquecimento global são de responsabilidade do mundo todo. A fotografia Nem Lá...Nem Cá, realizada em 2005 por Rafael Assef, é uma feliz representação da idéia de abstração de fronteiras: nela, a pele é tomada em uma grande área pela tatuagem lisa feita com tinta escura, ficando apenas uma pequena tira ilesa na composição. Já Tunga, como conta Ribenboim, criou uma obra especialmente para a mostra, uma aquarela que 'faz a representação de fumaça diluída.' Na mesma linha, Shirley Paes Leme exibe suas telas em que os desenhos são feitos com fumaça congelada. Já em fotografia, Cao Guimarães apresenta duas pequenas bexigas penduradas em um bastão em uma rua qualquer: uma delas está murcha, a outra, aparece como um frágil corpo inflado. Carmela Gross exibe a instalação Alagados, feita com barras de ferro articuladas . 'Cada um contribui com um tijolo imaginário, e o que conta é o resultado desse esforço coletivo, desse movimento. O objetivo é começar a colocar limites, traçar no chão uma linha que não pode ser ultrapassada, uma tentativa de fronteira que delimite o nosso universo, o dos ideais que não podem e não devem ser negociados. O trabalho propriamente artístico sublima-se, aqui, no gesto democrático, e seu valor precisa, portanto, ser repensado, medido com novos parâmetros', define em texto o curador Jacopo Crivelli.
Natureza Deturpada
FLORESTA ASSASSINADA: Dentre os quatro núcleos da exposição, está o que trata, como não poderia deixar de ser, da devastação da natureza pela visão poética dos artistas. Ao se ver o conjunto de obras reunidas em toda a mostra, tem-se a impressão de que elas tratam mais do tema de forma poética e lírica do que de maneira radical. 'Denúncia não é preciso mais', diz Ribenboim. Segundo ele, as primeiras propostas que trataram da natureza, e que fizeram intervenções sobre ela, ocorreram nas décadas de 1950 e 1960, visando 'à transformação das artes pela sua aderência à vida cotidiana' e manifestando 'não apenas o interesse pela paisagem, mas a efetiva integração do ambiente no fazer artístico'. A land art e seus similares ' aparecem hoje desdobradas em inúmeras proposições referidas ou não às questões ambientais', afirma ainda. É assim que, nesse núcleo, estão, entre outros, a fotografia de peixes cortados com intervenções pictóricas realizada por Alex Flemming; a aquarela de Janaína Tsch‰pe; o delicado objeto Spilling (Derramamento), de Jeanete Musatti; a pintura Floresta, de Sergio Fingermann; a gravura sobre papel Gracias a La Vida, Gracias a La Muerte, de Alex Cerveny; e a grande instalação de teto Man at First, feita com xilogravura e colagem sobre papel Nepal por Maria Bonomi, uma das maiores, em dimensão, da mostra, que talvez vá itinerar por outras cidades brasileiras - 'por enquanto, a primeira aproximação é realizá-la na Espanha, em Madri ou Barcelona', como adianta Ribenboim.
Retratos
PRESENÇA DA FOTO: O gênero fotográfico é meio valioso tanto para a realização de obras de caráter documental quanto para os trabalhos que se transformam em visões mais livres - e até abstratas - sobre a floresta e seus habitantes. É também nas obras fotográficas que aparece a cor verde tão característica da ampla mata. 'Cada geração escolhe as suas batalhas: algumas lutaram pela paz, outras defenderam os direitos das minorias, outras, ainda, exigiram um mundo mais justo e igual. A batalha mais urgente e iniludível, hoje, é voltada para o planeta', afirma o curador Jacopo Crivelli. Os retratos presentes no segundo núcleo da exposição são, portanto, os realizados por criadores de diversas gerações. Uma das mais emblemáticas desse conjunto é o retrato O Derrubador, realizado por Thomaz Farkas, fotógrafo e cineasta com uma das carreiras mais extensas entre os participantes. Nesse seu trabalho, um homem, com forte expressão, está sentado na ponta de um barco segurando um machado. Há também outras fotos, como, por exemplo, a Paisagem Bovina, de Tadeu Jungle; A Mata, de Claudia Jaguaribe; Perto de Manaus, de João Luiz Musa; Piraguaçu, de Caio Reisewitz; Rosa no Arraial, de Luiz Braga; trabalho realizado por Miguel Rio Branco no Pará; e e Dilúvio, por Gal Oppido. Mas não se pode dizer que esse segmento se encerra na fotografia. Há também, entre outros, a pintura realista O Tempo e o Improvável, de Mariana Palma; e um belo desenho de paisagem em preto-e-branco de Gil Vicente.
Abstração
LIBERDADE: Nesse segmento figuram obras não que tratam de uma representação da floresta, mas interpretações abstratas livres e carregadas de sentidos. A monotipia de Paulo Pasta, assim como o desenho de Sandra Cinto. E há ainda as gravuras da consagrada Tomie Ohtake e a recente tela Lembranças do Tocantins, realizada especialmente para o projeto, por Feres Khoury. É um segmento amplo, repleto de obras diferentes em que a natureza foi cada vez mais abstraindo, transformando-se em figura aquosa e orgânica, como na peça de Manoel Veiga, no emaranhado de linhas de aço feito por Angelo Venosa ou de tinta sobre espelho, por Carlito Carvalhosa. A Amazônia sobre tela de Carlos Matuck é composição de apenas cores. A abstração não vem do nada, ela tem o seu referencial no mundo. Como conta o artista Pazé, que apresenta a tapeçaria Labirinto, produzida com Tomi Roman e com a Associação de Moradores do Bairro Jardim Indaiá, seu desenho foi retirado de série de desenhos recolhidos pelo antropólogo Darci Ribeiro em 1949, produzidos pelos índios Cadiwéu do MT. 'Ele é exatamente o mesmo desenho (abstraindo-se os desenhos das folhas em sua lateral) cunhado nas moedas encontradas na Ilha de Creta, referente ao Labirinto onde se encerrava o Minotauro', completa Pazé. O mesmo ocorre no tríptico Dormentes, de Edith Derdyk, feito com fotos de trilhos que remetem à história da comunicação e do ciclo da borracha assim como à adormecida e 'afundada Transamazônica'.
Serviço
Arte Pela Amazônia. Pavilhão da Bienal. Avenida Pedro Álvares Cabral, s/n.º, piso 3, 3088-4530, Parque do Ibirapuera, entrada pelo portão 3. De 3.ª a dom., das 10h às 20h. Grátis. Até 30/3
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Estadão, 04/03/2008)