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cvrd
2008-03-04

A Companhia Vale do Rio Doce conseguiu reajustar em 65% os preços do minério de ferro que comercializa no mercado internacional, conforme anunciou gloriosamente na quinzena passada. O aumento só foi inferior ao de 2005, que chegou a 71%. Mas para o produto de Carajás o reajuste continuou a ser recorde: os mesmos 71% de três anos atrás. A razão: o minério do Pará, com 65% de hematita pura, é o melhor do mundo. Por causa dessa qualidade excepcional (realçada ainda mais pelo volume das jazidas, das maiores do planeta), Carajás proporcionará um ingresso extra de 600 milhões de dólares aos cofres da Vale neste ano. A pergunta imediata é: por que só a empresa tira proveito de um atributo físico do minério do Pará? Por que o Estado não pode tirar vantagem de sua própria riqueza?

No momento em que os novos contratos de fornecimento de minério estão sendo fechados, para vigorar no exercício financeiro dos compradores, apenas as grandezas apregoadas pela Vale foram destacadas pela imprensa e ecoadas pelo governo. Tudo muito longe do Pará, parecendo estar fora do seu alcance, embora a fantástica mina de Carajás se localize em seu território. Ele é efetivo ponto de partida de todo processo, mas é como se nada tivesse a ver com os desdobramentos a partir daí. Nunca é o ponto de chegada dos maiores benefícios, principalmente porque não se esforça para entender a engrenagem que secciona a riqueza natural, circunstancialmente situada em seus limites, do seu uso e controle.

Mesmo quando parece que, finalmente, alguma nova renda ficará retida no Estado, não é possível soltar foguetes ao simples anúncio da benesse. É o caso da siderúrgica que a Vale prometeu instalar no Pará, por pressão do presidente da república, pressionado, por sua vez, pela governadora do Estado. Desta vez, a metodologia será diferente: ao invés de ir atrás do parceiro de investimento e só depois definir a localização do projeto, a Vale parte da definição locacional à espera que surja um sócio disposto a entrar no negócio. Parece um caminho mais incerto, principalmente no momento em que ela implanta três outras siderúrgicas (no Ceará, Espírito Santo e Rio de Janeiro). Mesmo que saia mais essa usina de placas de aço, o objetivo maior é agregar valor ou consolidar o monopólio ao longo da ferrovia de Carajás, colocando as guseiras no redil?

Carajás é a pérola da coroa da Vale. No íntimo, seus principais executivos devem pensar que essa pérola foi atirada aos porcos, que somos nós. Porcos em sentido figurado, não literal: pessoas incapazes de entender o que é dispor de uma pérola dessa qualidade, rara mesmo quando se trata de uma substância mineral abundante em quase toda crosta terrestre, como o minério de ferro.

Os australianos dominavam o mercado mundial e estavam preparados para sair na frente de todos os concorrentes no atendimento do consumo asiático, em especial da China. No entanto, foram passados para trás. Eles têm a enorme vantagem de estarem muito mais próximos da Ásia do que o Brasil, distante 20 mil quilômetros. Mas quando Eliezer Baptista deslocou o alvo, primeiro para o Japão e, depois, para a China, tinha no colete o teor de pureza da rocha de Carajás, contendo quase o dobro da hematita presente no produto australiano. Os dois terços a mais de distância foram neutralizados e o comprador ganhava em tempo, em energia, em desgaste - em custo, enfim.

Mas agora os australianos estão dispostos a endurecer a competição. Eles tocaram num ponto nevrálgico, que também foi exposto aqui (acho que pela primeira vez em toda imprensa brasileira) na edição passada, sem provocar o menor comentário das lideranças institucionais do Estado, como se este jornal estivesse tratando das pedras de Marte: o frete marítimo de Carajás para a Ásia.

Inteligentemente, a Vale não inclui no reajuste do minério o custo do frete, que é quase o dobro do custo de extração do minério (este, US$ 50 FOB, posto no porto da Madeira, em São Luís do Maranhão; aquele, US$ 90 até a China). O frete é pago pelo comprador e a Vale faz essa transação através de outra de suas empresas, autônoma, que não entra no seu custo direto, mantida a saudável distância dos holofotes, postos sempre à disposição do seu presidente, Roger Agnelli. Um reajuste como o que foi conseguido na primeira rodada, com o Japão, a China e a Alemanha, jogaria o frete para um valor insuportável, de mais de US$ 150, minando a competitividade da Vale.

Os australianos, com o apoio de outros concorrentes da mineradora brasileira, querem que o aumento inclua tudo, até o frete. Por isso manejam valores como 100% e 150%. Os analistas mais apressados estranharam que a Vale não esperasse para chegar a preço maior e os japoneses, por sua vez, que falavam em 35%, tenham cedido quase o dobro. A razão é que, se antecipando aos movimentos altistas dos australianos, o vendedor sai ganhando, ao deixar o frete de lado, e o comprador também, por se livrar de uma facada maior.

Nas radiosas notícias espalhadas pela grande imprensa nacional, todos saíram ganhando com a quase quadruplicação do preço do minério de ferro nos últimos cinco anos. As exportações da Vale, se os novos preços forem aplicados a todos os seus contratos, passarão de US$ 20 bilhões. De Carajás sairá quase US$ 9 bilhões só em minério de ferro, a maior parte da produção destinada ao mercado externo (em proporção muito maior do que no Sistema Sul da Vale, que serve o mercado nacional). De cada 10 dólares de saldo da balança comercial brasileira previsto para 2008, US$ 2,5 serão fornecidos pela ex-estatal. É feito sem paralelo na história da economia nacional. Dos US$ 10 bilhões líquidos que passarão do caixa da empresa para os cofres do Banco Central, quanto sairá de Carajás? Um quarto, talvez; ou até mais?

E nós, os porcos, aos quais essa pérola foi atirada? Míriam Leitão divulgou em sua coluna cálculo feito pela Vale, com base em dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Siderurgia, segundo os quais o valor do aço aplicado em um carro Gol, da Volkswagen, é de 10% do seu custo, e por isso o reajuste, para o bem de todos e felicidade geral da nação, pouco afetará o consumidor brasileiro. Já o custo com o minério bruto na produção do mesmo carro é de apenas 0,4%. Sai no calor.

Como só ficamos na ponta inicial da linha, da extração e venda do minério, sem avançar sobre a transformação industrial, essa é a parte que nos cabe no latifúndio de faturamento da Vale e do Brasil. É a parte do porco na venda da pérola. Se estamos satisfeitos e não nos interessa nada além, então à lama, companheiros.

Recordes: para quem?
Diz a lenda que um dos geólogos da primeiras equipes (de multinacionais) que avançaram a oeste de Marabá, no rumo do que se apresentaria depois como sendo a província mineral de Carajás, a mais importante do mundo, encontrou uma pedra. Consultou o outro geólogo, que era o chefe, sobre o valor da descoberta. "É preta?", quis saber o chefe. "Não, é dourada", informou o subordinado. "Então joga fora, não interessa", sentenciou o chefe. E assim o geólogo pioneiro deixou de descobrir a jazida de ouro do futuro garimpo de Serra Pelada, o mais famoso de todos os tempos no Brasil, do qual foram extraídas pelo menos 40 toneladas do minério.

Na época o que as multinacionais procuravam era a pedra preta, o manganês, o minério do qual era carente a nação mais poderosa da Terra, os Estados Unidos. A corrida foi desencadeada por uma delas, a Bethlehem Steel, que encontrou um rico depósito de manganês no Amapá. As concorrentes se lançaram para a margem oposta do Amazonas, onde havia uma formação geológica semelhante de pré-cambriano, favorável às mineralizações. Era tudo pela pedra preta, elemento essencial nos altos fornos das siderúrgicas, das quais saía a matéria prima da mais voraz das indústrias, a automobilística. A pedra dourada era então secundária.

Hoje a situação se inverteu de tal maneira que, no ano passado, a Vale do Rio Doce preferiu suspender, por quase cinco meses, o transporte de manganês de Carajás: reservou todos os trens para o escoamento de minério de ferro, que está lhe dando rendimento maior. A produção de manganês em Carajás (incluindo mais de uma empresa) diminuiu 40% em relação a 2006. Mesmo assim, com 1,3 milhão de toneladas (945 mil da Vale, que sozinha produziu 1,7 milhão de toneladas em 2006), superou tudo que a Icomi conseguiu produzir no Amapá num único ano. Para chegar a tanto, a empresa de Antunes e da Bethlehem sugou ao máximo a mina de Serra do Navio, em autêntica pilhagem de lesa-pátria. O que dá uma medida da sangria de recursos minerais que ocorre sob nossos olhos em Carajás.

Nossa (nossa mesmo?) grande província levou 15 anos para produzir os primeiros 500 milhões de toneladas de minério de ferro. Os 500 milhões seguintes foram atingidos nos últimos sete anos - em menos da metade do período anterior, portanto. Se continuar a escala de produção atual, mais 500 milhões serão produzidos antes dos próximos cinco anos, contados de 2008.

A produção em Carajás já devia ter sido de 100 milhões de toneladas no ano passado, mas ficou em "apenas" 91,7 milhões (duas vezes e meia mais do que o máximo estabelecido no projeto original, que era de 35 milhões de toneladas), em razão de alguns imprevistos, inclusive as duas paralisações da ferrovia pelo movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, o MST, que custaram à Vale algo como 150 milhões de dólares de faturamento não realizado. A produção de cobre e níquel, que nem fazia parte do escopo inicial, já avança para nível internacional aceleradamente, com a incorporação da produção canadense em conseqüência da aquisição da Inco. Logo serão batidos novos recordes. Em proveito de quem?

A grande mineradora e o mundo em volta
A Mineração Rio do Norte completará 30 anos de funcionamento em 2009. É o mais antigo dos "grandes projetos", que integraram definitivamente a Amazônia ao mundo. Quando fez seu primeiro embarque de bauxita da jazida do Trombetas, em 1979, o máximo de produção a que pretendia chegar não ia além de seis milhões de toneladas. No ano passado, a empresa superou 18 milhões, três vezes mais, e pela primeira vez ultrapassou a conta do bilhão de reais de faturamento bruto (R$ 994 milhões de receita líquida), um crescimento de 10% em relação a 2006. Consolidou-se como uma das maiores mineradoras de bauxita do mundo.

Pelo jeito, a MRN continuará em 2008 a bater recordes. Parte dos investimentos neste exercício (de quase R$ 90 milhões) é para o aumento da produção e da produtividade, embora a capacidade de escoamento do rio Trombetas pareça esgotada. Os preços compensam, garante a diretoria no relatório que acompanhou o balanço anual, divulgado no mês passado. Infelizmente, ao contrário do que já fez em exercícios anteriores, a prestação de contas nada fala sobre os preços contratados e praticados durante o exercício. Sequer fornece o valor do dólar médio, para permitir o cálculo de terceiros. Grosso modo, pode-se dizer que a tonelada do minério ficou abaixo de 60 reais. Transformado para um valor de referência ao dólar, significaria algo abaixo de US$ 40, com um reajuste de quase 20% sobre 2006. Um aumento significativo também em relação ao valor histórico, entre US$ 20 e 25, mas que não acompanhou o crescimento do preço da alumina, o produto seguinte na cadeia de transformação para o alumínio.

Mais de dois terços das vendas da Rio do Norte se destinaram ao mercado interno, atendendo dois dos seus maiores clientes, que são também acionistas: a Alunorte, em Barcarena, controlada pela Companhia Vale do Rio Doce, e a Alumar, em São Luís do Maranhão, da Alcoa (com a Billiton). A ampliação da escala da produção visa, sobretudo, o mercado externo, já que a Vale passou a suprir a Alunorte com a bauxita extraída da jazida do Capim, em Paragominas, liberando parte dos compromissos da MRN. Paragominas, que entrou em operação em abril do ano passado, já proporcionou 1,9 milhão de toneladas, produção que se expandirá velozmente, colocando-a como uma das maiores minas do mundo. A Rio do Norte poderá, assim, melhorar o seu comércio exterior, que refluiu em 2007: o saldo de divisas foi de 113 milhões de dólares, contra US$ 197 milhões em 2006. Quase US$ 47 milhões foram remetidos para o exterior e mais US$ 10 milhões em serviços.

O incremento da produção recomenda maior atenção para as conseqüências do esgotamento das reservas do Trombetas. A empresa tem seu próprio plano de exaustão, com a reserva de um fundo compensatório e de medidas para o restabelecimento da cobertura vegetal das áreas que foram e continuarão a ser escavadas. Mas as medidas em curso e planejadas são suficientes, abrangem todos os principais efeitos do encerramento da mineração?

A MRN está dando seqüência às pesquisas geológicas visando conhecer melhor os seus recursos minerais, com a expectativa de expandi-los. Mas as duas primeiras (das quatro) minas em atividade, em Oriximiná, logo chegarão ao fim. Como ficará o município? Preparou-se para continuar a andar com outras pernas? E os outros municípios (Faro e Terra Santa) se preparam para utilizar as lições do vizinho e evitar seus erros? Nenhum deles continuará sua evolução, permanecendo dependentes do extrativismo mineral, que não é perene?

Na sua prestação de contas, a diretoria da empresa exibe iniciativas de responsabilidade social, voltadas tanto para a preservação do meio ambiente como para o fomento das atividades sociais. No entanto, o que mais brilha nas suas contas é o lucro líquido, de R$ 432 milhões (quase metade da receita operacional líquida e 30% maior do que o mesmo resultado obtido em 2006), a ser transformado praticamente todo em dividendos, a serem distribuídos entre os seus acionistas, a Vale (40% das ações ordinárias), Alcoa (26%), Alcan, Billiton e grupo Votorantim (cada um com 12,5%), mais a Norsk Hydro (10%) e a Abalco (6,7%).

Os números induzem reflexões sobre a repercussão da empresa, que parece ser maior no exterior do que dentro do país e, em particular, na região onde ela atua. O efeito multiplicador de sua atividade é maior internacionalmente do que no Brasil e no Pará. É assim porque tem que ser assim mesmo? A Mineração Rio do Norte, que realmente age com competência em vários campos, depois de um início comprometedor, faz o que está ao seu alcance para evitar essa polaridade?

Talvez pensando no maior contencioso da sua história chegue-se a uma resposta. Em 1999 a MRN reduziu em 30% seu capital social, a pretexto de que estava excessivamente capitalizada. Em 2003 foi autuada e multada pela Receita Federal, que considerou ilegal a redução, já que a Rio do Norte recebeu colaboração financeira do governo federal, através da Sudam, com acesso a recursos proporcionados pela renúncia fiscal do tesouro nacional (os incentivos fiscais). Só poderia reduzir o capital com autorização do governo.

Para poder recorrer da autuação, a empresa precisou depositar em juízo R$ 346 milhões, o valor da multa (hoje somando R$ 537 milhões, equivalente ao seu custo de produção de bauxita no ano passado), a maior até então aplicada a uma pessoa jurídica no Brasil. Em maio o contencioso completará cinco anos, ainda à espera de uma decisão judicial final. A mineradora acredita que irá vencer, por isso não contabilizou em seu balanço de 2007 o respectivo passivo contingente.

Se sua expectativa se materializar, significará que uma das maiores produtoras de bauxita do planeta acha que pode devolver aos bolsos dos seus donos 30% do que eles investiram até então numa distante área de fronteira nos trópicos. Consideraram que seu capital na área era "excessivo" porque já não havia o que fazer para melhorar as condições dos seus vizinhos, ou porque é assim que tem sido nas zonas de extrativismo mineral e assim continuará a ser: um cavalo de Tróia abrigando seus parceiros no ventre e mandando as riquezas para fora, e um cerco de desfavorecidos em torno, que o enclave não tem condições de beneficiar?

Diga-se, a bem da verdade, que a postura da MRN melhorou desde então. Mas foi uma melhora de tom, não de substância.

(Por Lúcio Flávio Pinto *, Adital, 03/03/2008)
* Jornalista


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