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transposição do são francisco
2008-03-03
Carta de Sobradinho

Nós, os 93 movimentos populares e organizações sociais e 213 pessoas participantes da Conferência dos Povos do São Francisco e do Semi-árido, realizada em Sobradinho (BA), entre 25 e 27 de fevereiro de 2008, tornamos públicas as discussões e as decisões de continuidade de nossas lutas pela vida do Rio São Francisco e do Semi-árido brasileiro, contra o Projeto de Transposição, ao mesmo tempo em que conclamamos a adesão e a solidariedade de todos e todas.

Escolhemos Sobradinho, como sede da Conferência, pelo seu valor simbólico de resistência, nestes 30 anos da barragem, revivido nos 24 dias de jejum de Dom Luiz Cappio ao final de 2007. A experiência vivida por nós, próximos ou distantes, em torno dele naquela ocasião, sintetizou mística e política, solidariedade e fé, economia e ecologia, reinventou nossas formas de ação e nos colocou em mais alto patamar de luta pela Vida.

Na capela do jejum fizemos a abertura, ao redor de potes e plantas do Semi-árido, juntando terras e águas trazidas pelas delegações, entre as quais água turva do Rio Tietê e terra do Cemitério de Perus, onde eram enterrados ativistas “desaparecidos” durante a ditadura militar e “indigentes” do Povo de Rua de São Paulo.

A Conferência foi organizada e realizada pelos movimentos e organizações sociais, representando os mais diversos segmentos das regiões implicadas e de outras do País e do Exterior, com os objetivos de fazer um balanço destas lutas e suas implicações, consolidar a unidade entre entidades e pessoas nelas envolvidas e definir próximos passos.
 
Ao analisar a situação atual, mais uma vez rejeitamos este modelo de desenvolvimento predatório e excludente que cada vez mais ameaça o Planeta. No Brasil, é parte essencial das políticas do governo federal que mantém o País na condição de exportador de produtos primários como minérios e produtos agropecuários, entre os quais os agrocombustíveis – uma grande “fazendona” mundial, tal com ocorre desde o período colonial.

Este modelo combina subserviência aos grandes interesses econômicos internacionais com ausência de reais políticas públicas para o Nordeste, em especial o Semi-árido, impondo-lhe mega-obras equivocadas e desnecessárias, tal como a transposição do Rio São Francisco. O “sócio-desenvolvimentismo” do governo Lula não disfarça seu caráter retrógrado, evidente nas obras do PAC – Plano de Aceleração do Crescimento, flexibilização de restrições ao capital, assistencialismo social e cooptação de organizações e movimentos sociais.

Diante deste quadro, definimos os seguintes princípios gerais e as ações que faremos:

1. Acesso a água

Os movimentos sociais e populares do São Francisco e do Semi-árido reafirmam que a água é, em si mesma, um bem e um valor universais e que o acesso a água é direito humano fundamental secularmente negado à população pobre do Semi-árido, a do São Francisco inclusive. O modelo concentrador de água fez construírem muitos e suficientes reservatórios e poucas adutoras e ainda mantém quase metade da população do Semi-árido sem acesso a água.

A democratização do acesso a água deve ser uma política pública prioritária, em todo o Semi-árido, baseada no princípio de que o respeito aos direitos humanos deve ser central em qualquer sociedade e rigorosamente respeitado por qualquer governo. Com ela deve ser fomentada uma nova cultura de água, que evite o desperdício, garanta a reprodução de todas as formas de vida e promova a atitude hidro-ecológica.

2. Revitalização do rio São Francisco

Os povos do São Francisco e do Semi-árido reafirmam a posição de que a revitalização verdadeira do São Francisco é urgente e prioritária, visando recuperar as condições hidro e sócio-ambientais do rio e a sobrevivência de milhões de pessoas e demais espécies que habitam a sua bacia. Para isso é condição essencial cessar o avanço e o descontrole da exploração dos Cerrados e Caatingas.

Reafirmamos que a revitalização não pode ser tratada como um mero projeto fragmentado e paliativo, muito menos propagandístico, mas como um amplo e coordenado programa exaustivamente discutido com a sociedade e a ciência e submetido a rigoroso controle social. É disso que o São Francisco precisa, não de mais um uso abusivo.


3. Transposição do rio São Francisco

Os povos do São Francisco e do Semi-árido rejeitam incondicionalmente a transposição de águas do rio. Esta obra apenas reproduz o modelo centenário de concentração de água, que manterá milhões de pessoas excluídas do acesso democrático a água e a um padrão de vida minimamente digno.

Ao levar mais água para onde já existe é uma obra inútil; ao excluir milhões de pessoas é mais uma obra hídrica injusta desde a sua concepção; e ao destinar as suas águas para fins essencialmente econômicos é uma obra desumana que viola o princípio de que a água é um direito humano fundamental. Esta é a mesma razão pela qual rejeitamos os grandes projetos de irrigação, que apenas favorecem o agronegócio exportador.

4. Convivência Sustentável com o Semi-árido

Os povos do São Francisco e do Semi-árido reafirmam que compreendem a Convivência com o Semi-árido como fundamento de desenvolvimento nos termos contemporâneos mais avançados – um novo paradigma civilizatório. Como tal é dos mais relevantes grandes temas nacionais da atualidade, que interessa e deve ser compreendido por toda a sociedade brasileira.

Rejeitamos o atual modelo de desenvolvimento que há séculos perpetua a concentração de terra, água e renda, excluindo quase metade da população da região. Propomos um modelo de desenvolvimento que seja essencialmente justo, garantindo acesso a terra e a água, baseado na lógica da Convivência com no Semi-árido, com inúmeros programas já testados e comprovadamente eficazes.

NOSSAS AÇÕES

a) Trabalho de base: intensificar em todas as regiões, em especial no Semi-árido Setentrional, mas também em todo o país, em mutirões que congreguem militantes dos vários movimentos e organizações, utilizem novos subsídios acessíveis ao povo, esclareçam a verdade sobre a transposição e as questões mais amplas da água, do hidro-negócio, da revitalização do São Francisco e da questão energética, divulguem as alternativas e fortaleçam a consciência militante e a organização popular.

b) Organização e articulação: realizar Conferências Regionais / Estaduais; criar novos Comitês contra a transposição; ampliar as articulações regionais e da bacia; manter a articulação e a luta conjunta entre o São Francisco e o Semi-árido, tendo como instrumento a Coordenação desta Conferência; trabalhar a partir das demandas e alternativas (Atlas Nordeste da ANA – Agência Nacional de Águas e iniciativas da ASA – Articulação do Semi-Árido), também no São Francisco (programa de revitalização).

c) Comunicação: massificar a discussão sobre os temas São Francisco, Semi-árido e transposição, considerando os três públicos diferentes (urbano, rural e base dos movimentos); empreender uma contra-ofensiva à nova campanha de propaganda do governo federal; envolver as assessorias de comunicação das diversas entidades envolvidas (comissão e rede de assessoria de imprensa e de comunicadores populares); trabalhar mais as rádios e a internet, monitorando e divulgado o que sai na mídia.

d) Enfrentamento: realizar marchas e outros atos criativos, em Brasília e outros locais, aproveitando as datas do Calendário Nacional de Lutas, nas quais inserir os temas São Francisco, Semi-árido e transposição: 8 de março – Dia da Mulher, Abril Vermelho / 17 de abril – Dia Internacional da Luta Camponesa, 1º de maio – Dia do Trabalhador, 10-13 de junho – Jornada das Organizações do Campo e da Cidade; 4 de outubro – Dia do Rio São Francisco.

e) Igrejas: introduzir os temas nas preocupações e atividades pastorais das Igrejas, em especial na Assembléia da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (2-11 de abril), divulgando os subsídíos.

O próximo 1º de Abril nós o transformamos em “Dia da mentira do governo e da verdade do povo”, marco central em nossa agenda de lutas, com atividades de protesto e de proposição em todos os cantos do País.

Na beira do São Francisco, contemplando suas belezas e mazelas, ao fundo a barragem de Sobradinho, demos um “gole d’água” ao rio e nos despedimos selando o compromisso de defender a Vida. Mística, Estudo e Ação, propostos por Dom Luiz Cappio, foram as expressões práticas deste compromisso. Cabaças enfeitadas de fitas coloridas, prenhes de sementes, eram os símbolos que cada delegação levou...

Sobradinho 27 de fevereiro de 2008.

Assinam:

Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Movimento das Mulheres Camponesas (MMC); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Movimento Saúde Pirituba – SP (Perupi); Marcha Mundial das Mulheres; Apoinme; Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Caritas; Conselho Indigenista Missionário (CIMI); Pastoral da Juventude do Meio Popular(PJMP); PJR; Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB); CEBs; Sefras – Serviço Franciscano de Solidariedade; Serviço Justiça, Paz e Ecologia da Província Franciscana de SP; Serviço Justiça, Paz e Ecologia da Província Franciscana de Imaculada Conceição; Igreja do Carmo (MG); Congregação Filhas de Jesus (Sobradinho/BA); 1ª Igreja Batista (Santa Maria da Vitória/BA); Romaria do Grito dos Excluídos; Misereor; Instituto Regional da Pequena Agricultura Apropriada (IRPAA); Centro Nordestino de Medicina Popular; Consea – PE; Diaconia; PACS; Articulação do Semi-Árido (ASA); ASPTA; CAIS – Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativa Social; Rede Ambiental do Piauí; ABAI – Serviço Paz e Justiça; Instituo Palmas; Museu Ambiental Casa do Velho Chico; Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Aracaju; Associação Pequenos Agricultores Cidadania (APAC); AAPMS; CAA – Centro de Assessoria do Assuruá; SASOP; Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais; EFAs; Centro Terra Mar; Comitê da Bacia do rio Salitre; Ecodebate; Sindicatos de Trabalhadores Rurais; Sindicato dos Trabalhadores em Água e Esgoto no Estado da Bahia (SINDAE); Pólo Sindical Submédio São Francisco; SINTECT-PE (Sindicato dos Trabalhadores da Empresa de Correios e Telégrafos); Sintagro/BA; Sindprev/RJ; APLB – Sindicato de Santa Maria da Vitória; Fórum Permanente da Bahia em Defesa do São Francisco; Frente Cearense por uma Nova Cultura de Água Contra a Transposição; Frente Paraibana em Defesa da Terra, das Águas e dos Povos do Nordeste; Comitê Paulistano Contra a Transposição; CESE; KOINONIA; ABCMAC – P1+2;ACIDES; AMIDES; Água Viva; Paróquias: Campo Alegre de Lurdes/BA, Sobradinho/BA, São Francisco de Assis/BA, Paulo Afonso/BA, Nossa Senhora das Dores; SECON; Rede Social; Jornal: Brasil de Fato; Conlutas; Diretório Central dos Estudantes de Minas Gerais; Consulta Popular; PSOL; PSTU; PUC Minas; DCE UFMG; Universidade de Innsbruck – Instituto de Geografia; UNB; Federação Argentina de Estudantes de Agronomia; Executiva Nacional dos Estudantes de Veterinária; Grupo Nascer (UFMG); Lições da Terra (PUC Minas); FEAB; Geografar – UFBA; UFS – Campus Itabaiana (SE); UNEB; Povos indígenas – Pipipã, Truká e Tupã; Comunidades: Quilombolas, Vazanteiros, Geraiseiras, Catingueiras e pescadores; Colônia de Pescadores: Z-20 (Ibiaí/MG); Juazeiro, Z-07 (Neópolis/SE); Federação dos pescadores de Alagoas; Reserva Extrativista São Francisco – Serra do Ramalho.

(CIMI, 29/02/2008)

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