O mundo presenciou algumas condições climáticas de inverno extraordinárias em ambos os hemisférios no ano passado: neve em Johannesburgo em junho e em Bagdá em janeiro, o gelo do oceano Ártico retornou com ímpeto vigoroso depois de uma derrocada recorde no verão passado, nevascas paralisantes na China, e uma queda considerável na temperatura média do globo.
Não é de se espantar que alguns cientistas, analistas, políticos e outros que normalmente contrariam os alertas sobre o perigo do aquecimento global causado pelo homem tenham caído em cima desse fato como uma oportunidade de comprovação de sua tese.
"A 'febre' da Terra acabou: o resfriamento global já está acontecendo", anunciava um post de blog e um comunicado para a imprensa escritos na quarta-feira por Marc Morano, diretor de comunicações da minoria republicana no Comitê de Meio Ambiente e Assuntos Públicos do Senado americano.
Mas o que está acontecendo?De acordo com uma série de especialistas em clima, incluindo alguns que questionam a extensão e os riscos do aquecimento global, trata-se apenas do bom e velho clima, com um toque de frio do Oceano Pacífico tropical, que está em sua fase La Niña por mais alguns meses, um ano depois de passar pelo fenômeno oposto, o quente El Niño.
Se há algo mais acontecendo - como um resfriamento relacionado aos ciclos das manchas solares ou mudanças lentas nos padrões atmosféricos e oceânicos capazes de influenciar as temperaturas - são muitos os cientistas que, apesar de terem diferentes posicionamentos em relação ao aquecimento global, concordam que não há como determinar com precisão se há alguma influência dessa ordem.
Muitos cientistas também dizem que a onda de frio não derruba de forma alguma o enorme conjunto de evidências que apontam na direção de um mundo em aquecimento, com padrões de clima alterados, menos gelo e elevação do nível dos oceanos se os gases de efeito estufa resultantes da queima de combustíveis fósseis e florestas, e responsáveis por reter o calor, continuarem a se acumular no ar.
"O atual resfriamento não é nada muito excepcional", diz Carl Mears, cientista que trabalha no Remote Sensing Systems, um grupo de pesquisa privada em Santa Rosa, Califórnia, que usa dados de satélite para acompanhar a temperatura global e cujas descobertas têm sido consideradas confiáveis por muitos especialistas em clima. Ele apontou quedas semelhantes em 1988, 1992 e 1998, todavia com uma tendência clara de aquecimento a longo prazo.
"É muito provável que as temperaturas voltem a subir após o fenômeno La Niña", diz.
Morano foi firme em uma mensagem de e-mail em que dizia que a mudança de temperatura está dentro da normalidade: "Normal é normal. Perceber (e não exagerar) o inverno incomum e rigoroso que atinge todo o globo significa simplesmente descrever o óbvio", escreveu. Para ele, aqueles que não concordam com a tese de uma 'crise climática' criada pelo homem estão usando a realidade desse inverno recorde para contrariar o alarmismo tolo em relação ao aquecimento global que a mídia e alguns cientistas promovem sem cessar há décadas.
Mais cacarejar sobre o frio pode ser esperado nos próximos dias. O Instituto Heartland, um grupo de pesquisa sobre políticas públicas de Chicago que é contra medidas regulatórias para solucionar problemas ambientais, realiza nesta segunda e terça-feira uma conferência em Nova York com o objetivo de discutir questões como a causa e os perigos da mudança climática.
O evento irá reunir uma série de cientistas, economistas, estatísticos e analistas liberais que carregam uma estonteante variedade de pontos de vista sobre a mudança climática - desde aqueles que admitem a influência humana mas não acreditam que haja perigo, até os que dizem que o aquecimento global é um embuste, os que culpam o sol e até mesmo os que o consideram benéfico. Vários dos presentes dizem que o encontro marcará o nascimento de um novo paradigma. Mas muitos climatologistas e ambientalistas dizem que esta será a última cartada dos céticos.
Distorção nocivaMichael E. Schlesinger, um cientista atmosférico da Universidade de Illinois, Urbana-Champaign, diz que qualquer tentativa de usar os últimos meses ou anos como evidência para derrubar a teoria já estabelecida de que o acúmulo de gases de efeito estufa está tornando o mundo mais quente é, na melhor das hipóteses, perda de tempo, e, na pior, uma distração nociva.
Discernir a influência humana no clima, diz ele, "é como encontrar um sinal em um fundo ruidoso". E acrescentou: "A única forma de fazer isso no nosso sistema climático caótico, é fazer uma média de um período grande o suficiente para diminuir o ruído de forma considerável, e então perceber o sinal. Isso significa que é impossível olhar para um ano em específico e saber se o que se está vendo é um sinal ou o ruído, ou ambos."
Também é difícil atribuir as mudanças na extensão e na espessura do gelo dos oceanos Ártico (onde o gelo diminuiu significativamente nos últimos verões) e Antártico (onde a área de gelo flutuante aumentou) a influências específicas.
Entrevistas e trocas de e-mail com meia dúzia de especialistas em gelo e clima polar resultaram num vago consenso: mesmo com o regelamento extensivo das águas do Ártico em decorrência do gélido e escuro inverno boreal, o gelo recém-formado continua mais fino do que a camada de metros de espessura formada ao longo de anos que a região tinha até a década de 90.
Isso sifnifica que as chances de ver trechos extensos de oceano sem gelo no próximo verão continuam altas, dizem muitos dos especialistas em Ártico.
"Os céticos em relação à mudança climática pegam algumas peças do quebra-cabeça para desmentir o aquecimento global, e ignoram o panorama geral que a maior parte da comunidade científica vê ao olhar para todas as peças", diz o Dr. Ignatius G. Rigor, cientista climático no Centro de Ciência Polar da Universidade de Washington em Seattle.
Ele diz que a tese da crescente influência humana no clima foi abordada no relatório do ano passado do Painel Intergovernamental para a Mudança Climática, ou PIMC, baseada em evidências de vários campos do conhecimento.
"Admito que não temos todas as peças", diz Rigor, "mas como o PIMC relatou, a maior parte das evidências sugerem que o aquecimento global é real". Em relação ao Ártico, ele diz que "sim, a extensão de gelo ártico esse ano é maior do que a do ano passado, mas continua menor do que a média a longo prazo."
Rigor diz que o degelo do próximo verão, apesar do atual crescimento da fina camada de gelo recém-formado, poderia ainda ultrapassar o do ano passado, quando quase todo o Oceano Ártico entre o Alaska e a Sibéria foi transformado em mar aberto.
Alguns cientistas que discordam veementemente sobre a intensidade do aquecimento que acontecerá neste século, e sobre o que fazer a respeito dele, concordam que é importante não se deixar seduzir por supervalorizar as mudanças climáticas de curto prazo, quentes ou frias.
Patrick J. Michaels, um climatologista e comentarista do liberal Instituto Cato em Washington, tem há tempos censurado os ambientalistas e a mídia por exagerar nas conexões entre as variações climáticas extremas e o aquecimento causado pelo homem. (Ele está na programação da conferência dos céticos.)
Mas Michaels diz que aqueles que estão alardeando o resfriamento global deveriam tomar cuidado para não fazer o mesmo que fazem com o aquecimento global. Segundo ele, a "previsão distorcida" dos climas extremos "serve para ambas as direções".
Gavin A. Schmidt, climatologista do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA em Manhattan que falou sobre a necessidade de reduzir os gases de efeito estufa, discorda de Michaels em muitos aspectos, mas concordou nesse ponto.
"Quando sou chamado pela CNN para comentar sobre uma grande tempestade de verão ou um período de seca ou o que for, dou a mesma resposta que dou para alguém que me pergunta sobre uma nevasca", diz Schmidt. "Tudo está nas tendências de longo prazo. O tempo não vai acabar por causa da mudança climática. Há um desejo de explicar tudo que vemos em termos de algo que você acha que compreende, seja a vinda de uma próxima era glacial ou o aquecimento global."
(Por Andrew C. Revkin, NYT, tradução de Eloise De Vylder,
UOL, 02/03/2008)