A recente autorização para o cultivo das variedades de milho geneticamente modificado Liberty, da empresa alemã Bayer, e MON810, da norte-americana Monsanto - liberadas por sete votos contra quatro no Conselho Nacional de Biosegurança, integrado por 11 ministérios, confirmando a decisão de janeiro da Comissão Técnica Nacional de Biosegurança (CTNBIO) –, causou um frenesi de análises tanto de defensores quanto de críticos
Não é difícil imaginar que os veículos de grande circulação, por isso mesmo mais imbricados aos interesses de poderosos grupos econômicos, assim como vários membros do governo tenham tecido considerações positivas ao que consideraram como um "avanço" em nosso país. Em suma, enxerga-se a transgenia como uma oportunidade ímpar de aumentar a oferta de alimentos a um custo menor em face de uma demanda mundial visivelmente crescente e, quiçá, de extirpar a fome do mundo. Advertências quanto ao monitoramento do risco, já previsto em lei, e ao direito à informação do consumidor não vêm, por sua vez, passando ao largo dessa visão mais otimista quanto aos cultivos transgênicos.
A questão que ora se coloca é: dão conta da realidade essas advertências, propaladas com ares de responsabilidade e senso público?
Responder a esta pergunta remete, de imediato, às críticas que vêm sendo feitas por órgãos também competentes, e que buscam fazer um contraponto a essa noção de progresso associada à transgenia. Não são poucos os estudos que se contrapõem a esta noção, os quais, ressaltando graves riscos ao meio ambiente e à saúde humana, vêm encontrando ampla repercussão em uma imprensa mais alternativa. Tratando-se, por sua vez, de estudos efetuados por instituições de peso como a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente), encontram inelutavelmente alguma guarida também na grande mídia.
Bem longe do acolhimento dos maiores veículos de comunicação está, no entanto, os determinantes estruturais, bem mais sutis, dessa "onda transgênica", que vem se juntando a tantas outras para compor um mesmo e nocivo modelo de desenvolvimento. Nem poderia ser diferente; a se desnudarem esses determinantes, ficariam expostos aqueles que, sendo seus protagonistas, são os mesmos a ditarem boa parte das "regras da comunicação" em nosso país.
Riscos dos transgênicos: as várias advertênciasQuanto aos argumentos que têm sido levantados pelos órgãos supracitados, ANVISA e IBAMA, contra os transgênicos, no que se refere às suas repercussões na saúde e no meio ambiente, são inúmeros e sólidos e, por si sós, poderiam arrefecer os ânimos dos defensores - ou, pelo menos, daqueles que ingenuamente os seguem. Os leitores desse Correio já devem ter se deparado com uma boa parte desses argumentos, e não é o caso de aqui repeti-los à exaustão.
Vale, sim, referir-se às noções mais contundentes, reforçando-as na medida em que sirvam para criar um firme contraponto. A ANVISA vem divulgando há algum tempo como inadequados e insuficientes os estudos da Monsanto e da Bayer para atestar os riscos dos trangênicos à saúde pública, no que se refere à sua alergenicidade e toxidade. Visão corroborada pela própria OMS (Organização Mundial de Saúde), ao considerar os efeitos cancerígenos do herbicida patenteado pela transnacional Monsanto, dada a sua influência em possíveis alterações nos genes e ainda a persistência do veneno nos cultivos.O IBAMA, por sua vez, ponderou sobre a ausência de estudos quanto aos impactos nos ecossistemas brasileiros e sobre a possibilidade de a liberação do milho transgênico contaminar variedades de milho crioulas, cultivadas pelos pequenos agricultores.
Nesse sentido, para Isidoro Revers, da Via Campesina e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a decisão de liberação "atenta contra o direito dos agricultores, que perderão suas variedades tradicionais e crioulas, e dos consumidores, que não terão opção de uma alimentação saudável e não transgênica, já que não haverá controle da contaminação".
Transcendendo as repercussões sobre a saúde e o meio ambiente, a própria efetividade da tecnologia utilizada para esses cultivos, teoricamente simplificadora no controle das pragas, está sendo posta à prova. Os transgênicos foram desenvolvidos para resistir à aplicação dos agrotóxicos, utilizados para eliminar as plantas invasoras. Ocorre que essas plantas também têm adquirido resistência aos herbicidas, impelindo à sua utilização em escala crescente. Os dados do Ibama que indicam que, para cada quilo de princípio ativo do herbicida reduzido no Rio Grande do Sul, houve um aumento de 7,5 kg do herbicida à base do glifosato, no período de 2000 a 2004 - época de expansão da área da soja Roundup Ready resistente ao glifosato no estado -, podem atestar essa dinâmica.
As tão conclamadas vantagens de custo caem, assim, por terra, vez que os herbicidas são um dos componentes básicos dos custos de produção. Isso sem contar o preço de aquisição das sementes, cuja produção é monopolizada pela Monsanto – que também controla o mercado do herbicida à base de glifosato, – e o pagamento de royalties.
Maria José da Costa, do Movimento de Pequenos Agricultores, em uma declaração à Agência IPS/Envolverde sobre a recente liberação do milho transgênico, ressaltou que "os desastres que causará a autorização do milho serão de proporções muito maiores". Segundo a ativista, considerando tratar-se de um produto constitutivo da cultura milenar dos povos latino-americanos e, sob o aspecto técnico, levando-se em conta a sua polinização aberta e cruzada - a partir da qual os grãos podem contaminar outras espécies localizadas a enormes distâncias - , "haverá perda de biodiversidade, degeneração e erosão genética muito grande".
A "onda transgênica" e as suas raízesA divulgação crescente dessa argumentação é essencial para a tomada de consciência da população sobre o que está realmente em jogo. Mas é preciso também retomar os determinantes mais gerais dessa onda que parece agora aprofundar-se, a qual, conforme acima ressaltado, aglutina-se a outras tantas para conformar um determinado modelo de desenvolvimento. Dito de outro modo, repensar a dinâmica mais profunda dos últimos acontecimentos pode ser fundamental para aceitar e introjetar as visões críticas associadas.
Segundo a da ISAAA (Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações em Agrobiotecnologia, na sigla em inglês), o cultivo de alimentos transgênicos no mundo atingiu cerca de 114 milhões de hectares em 2007 (crescimento de 12% em relação a 2006) e deve dobrar até 2015. As lavouras transgênicas no Brasil, por sua vez, cresceram 30% em 2007, a segunda maior taxa observada entre os 23 países que possuem esse tipo de plantação e fizeram a pesquisa. Em números absolutos, foram 3,5 milhões de hectares.
Será gratuita uma investida dessa magnitude, cujas raízes externas parecem agora se estender internamente com tamanho vigor?
Essa é, nesse sentido, uma discussão que não pode ser de modo algum dissociada das atuais polêmicas que envolvem a Amazônia e o agronegócio – temas nesse momento no ápice de sua visibilidade, em função dos veementes dados sobre desmatamento da Amazônia. Divulgados por um órgão de estatura como o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), esses dados não passariam sem repercussão nacional e internacional.
A supremacia do capital internacional
Uma associação nefasta entre o setor público, o capital privado nacional e o internacional, onde este último tem crescentemente participado na condição de "sócio majoritário", é uma das chaves básicas para o entendimento que aqui se propõe.
Tomando-se como ilustrativo o agronegócio, hoje sabidamente interconectado às elevadas taxas de devastação da Amazônia, o geógrafo aposentado da USP Ariovaldo Umbelino fez declarações preocupantes a este Correio. Segundo o geógrafo, "omunicípio de Sorriso, no Mato Grosso, é um dos maiores produtores mundiais de soja do mundo. A maior parte de suas terras, no entanto, é de propriedade do Incra, ou seja, está grilada pelos sojeiros, e o Incra não pede a reintegração de posse. Em Primavera do Leste, no Mato Grosso também, acontece a mesma coisa. Há um processo no Tribunal de Contas da União em Cuiabá contra esses sojeiros, pressionando o Incra para recuperar essas terras públicas, que deveriam ser destinadas à reforma agrária".
A não discussão, ou a discussão rasteira, acerca da reforma agrária no Brasil estaria, a partir desse raciocínio, servindo a duas causas: a de encobrir a grilagem de nada menos que um quinto do território brasileiro; e a de mascarar um quadro de defesa do agronegócio e contrário aos movimentos sociais.
Para o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, professor do programa de pós-graduação em Geografia da UFF, em artigo publicado na Revista Proposta - Ano 31, n° 114, Out/dez 2007, Rio de Janeiro -, "a grilagem de terras é o fenômeno-chave para entender a violência estrutural que se configura na região, conformando um padrão de organização do espaço geográfico que se reproduz por meio de atividades como a exploração ilegal de madeira, a produção de carvão com a queima da floresta para purificar o ferro e a formação de pastos para pecuária". Segundo Porto-Gonçalves, se uma dinâmica de enclave global-regional havia se sobreposto à dinâmica nacional-regional em uma fase anterior, "agora estamos diante de uma dinâmica nacional/globalizada onde, mais uma vez, a região se inscreve de modo subordinado, com graves conseqüências, sobretudo para os setores subalternos".
Obviamente que este decorrer dos fatos antecede o governo Lula. Mas o presidente não se fez de rogado, na medida em que o transcurso de seus mandatos até agora traz evidências relevantes de sua forte ligação com o agronegócio. Para o economista Guilherme Delgado, o atual mandatário "aderiu a um projeto reciclado no segundo mandato FHC, qual seja, o relançamento da ‘modernização-conservadora’, gestada no período militar, agora com o pé direito no setor externo. Neste projeto, o país deveria aumentar significativamente sua participação no comércio mundial de ‘commodities’, conjunturalmente, para equacionar problemas no Balanço de Pagamentos, e, estruturalmente, para inserir-se em nova posição na economia mundial. Essa nova posição seria essencialmente primário-exportadora, com certo foco na agricultura e na mineração".
É nesse percurso que encontra seu lastro a nova onda transgênica. As mesmas transnacionais que provavelmente dominarão a "reprimarização" de nossos padrões de comércio, subordinando o setor público e o capital nacional, também determinarão cada vez mais o modo de organização de nossa agricultura, subordinando os pequenos agricultores.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
(Correio da Cidadania,
La Biodiversidad, 20/02/2008)