Toda rebelião campesina de sucesso na história da China foi inspirada em pedidos de distribuição de terra mais justa. É por isso que o atual governo, herdeiro da última revolta campesina de 1949, está tão preocupado com um movimento de reforma agrária incipiente -que seus organizadores dizem que vai se espalhar pelo país e desafiar a fundação do comunismo.
O aparato de segurança estatal da China, normalmente eficiente, foi pego de surpresa em dezembro, quando grupos separados de agricultores em quatro partes remotas do país publicaram declarações muito similares na Internet alegando ter tomado sua terra coletivamente do Estado e tê-lo privatizado unilateralmente. Agentes de segurança nas províncias de Heilongjiang, Jiangsu e Shaanxi e na cidade portuária de Tianjin rapidamente prenderam a maior parte do punhado de camponeses que assinaram os documentos. Alguns foram liberados desde então, após terem assinado confissões, enquanto outros permanecem sob custódia ou desapareceram, seu destino é desconhecido.
As declarações publicadas pelos camponeses acusavam as autoridades locais de lucrarem exigindo a terra dos agricultores sem fornecer compensação adequada e usando-a para projetos de desenvolvimento corruptos. A constituição comunista do país estipula que toda propriedade rural é do Estado, que a empresta em contratos de leasing de 30 anos, mas pode tomá-la de volta com relativa impunidade.
A expansão econômica da China foi parcialmente promovida pela pronta oferta dessa terra barata, que as autoridades vendem às fábricas ou às incorporadoras, depois de pagar uma rápida compensação e remover os agricultores que a ocupam. O processo pouco transparente é cheio de oportunidades de corrupção e as apreensões de terra oficiais tornaram-se a principal causa de protestos na China.
Em cada uma das quatro províncias, a "tomada" da terra pelos camponeses foi apenas simbólica e não tem força legal. Antes de sua prisão, os camponeses da província de Helongjiang conseguiram encontrar e dividir um bloco confiscado pelas autoridades locais. Mas os documentos que assinaram violam a constituição e ao menos três leis que estipulam que toda terra na China é de propriedade do Estado. Em outros locais, os camponeses nem foram tão longe. A ação rápida do aparato de segurança impediu apreensões físicas.
Mesmo sem muita ação, o protesto representa um desafio novo e sério ao partido. O sistema de segurança da China enfrenta cerca de 100.000 "distúrbios da ordem pública" por ano (de acordo com estatísticas do governo, que ativistas políticos chineses acreditam minimizar a verdadeira escala da inquietação social), mas a ampla maioria deles é pontual e não é coordenada. Os protagonistas, em geral, enfatizam sua lealdade ao sistema, enquanto apelam a Pequim para que reprima os erros das autoridades locais.
Esse incidente foi diferente. Não apenas havia manifestantes desafiando o partido diretamente, mas também estavam organizados em nível nacional por um grupo sofisticado de dissidentes. A ação foi coordenada por uma associação livre de jornalistas, acadêmicos, intelectuais e ativistas políticos e pediu a privatização de toda propriedade rural, em uma clara rejeição do atual regime. Em palavras que poderiam ter saído da boca de Mao Tsetung, uma declaração perguntava: "De quem é este país? Quem realmente se beneficia em nome do interesse público? Somente quando você protege os direitos das massas e as ajuda a se desenvolverem, você pode ser chamado de governo."
A maior parte dos autores das declarações mora em Pequim e até agora não foi capturada. Eles operam em segredo e pediram que os detalhes de suas identidades não fossem revelados para evitar prisão imediata. Alguns são dissidentes de carreira enquanto outros são membros sólidos do partido; para sua segurança, o "Financial Times" decidiu não revelar mais sobre quem são. Eles dizem que estão agindo com base na convicção que muitos dos problemas dos camponeses da China vêm do atual sistema de propriedade da terra.
Esses organizadores, compostos de um grupo central de cerca de 10 pessoas, passaram mais de dois anos viajando pelo país, reunindo milhares de assinaturas de camponeses envolvidos na luta pela terra e convencendo-os que a apreensão era a melhor forma de atrair a atenção para seus problemas.
Eles dizem que a divulgação coordenada das quatro declarações foi apenas o início de um movimento que vai se espalhar pelo país. De acordo com uma pessoa que alega ter redigido as declarações originais, (que foram rapidamente removidas da Internet pelos censores do governo), milhares de camponeses em dezenas de outras localidades em 20 províncias já assinaram declarações similares e estão se preparando para tomar a terra. Se isso acontecer, o governo terá que enfrentar uma verdadeira rebelião, que pode ameaçar seu controle bem no momento em que a atenção do mundo estará voltada para as Olimpíadas de Pequim.
Esses ativistas têm alguns defensores poderosos, inclusive incorporadores proeminentes que pediram publicamente a privatização das terras rurais. Eles argumentam que essa medida poderia ajudar a esfriar os preços de propriedade em alta nas cidades por expandir amplamente a oferta enquanto garante aos cidadãos do campo a mesma segurança que têm os da cidade hoje.
Nos anos 90, o governo começou a experimentar com a propriedade privada residencial nas maiores cidades, transferindo alojamentos estatais para os funcionários. Enquanto toda a terra urbana tecnicamente continua sendo posse do Estado, os contratos de leasing são muito mais longos do que no campo (até 70 anos) e o direito de uso da terra é comprado e vendido como se pertencesse ao locatário. Essa privatização de fato levou a uma explosão em riqueza pessoal e foi crucial na criação de uma classe média urbana. No final dos anos 90, bancos estatais começaram a emitir as primeiras hipotecas desde a revolução, e hoje as hipotecas residenciais urbanas perfazem uma grande parte do sistema bancário.
Os agricultores podem ter suas casas, mas não a terra, então não podem usá-la como garantia para empréstimos. Defensores da reforma dizem que isso exacerba as diferenças de riqueza entre a cidade e o campo, onde a terra virtualmente não vale nada.
A privatização da terra agrada aos camponeses por razões óbvias, mas também tem apoio de alto nível de algumas seções reformistas do Partido Comunista, inclusive de membros aposentados e acadêmicos liberais do país.
Zhang Guangyou, 73, é autor conhecido e ex-jornalista que trabalhou para a rede de transmissão estatal Xinhua e foi editor chefe do jornal estatal "Pesants' Daily". Ele argumenta apaixonadamente que chegou a hora do partido dar a terra de volta ao povo. "O sistema de contratos de 30 anos é fatalmente falho e não pode durar muito -os camponeses devem decidir como usar sua terra e ter permissão de privatizá-la se é o que querem", diz Zhang.
Alguns acadêmicos do governo dizem que a falta de terra arável na China seria exacerbada se os camponeses tivessem permissão de vendê-la aos incorporadores. Os ativistas, contudo, salientam que trechos amplos já estão desaparecendo e argumentam que a privatização provavelmente iria apressar a criação de fazendas maiores e mais eficientes.
O poder de reclassificar a terra rural como industrial ou urbana é das autoridades, que derivam grande parte de sua renda oficial (sem mencionar a renda pessoal ilícita) da venda de terra reclassificada. Os camponeses não precisam pagar pelos leasings de 30 anos, mas têm permissão de sub-locar a terra, o que dá enorme espaço para as autoridades darem a terra do governo de graça para seus amigos e parentes, que então a alugam por lucro.
Os defensores da privatização admitem que a maioria das autoridades locais do país não apoiará a perda de tamanha fonte de renda e esse interesse arraigado é provavelmente o maior obstáculo para o governo concordar com tal reforma. "O grande problema com nosso sistema socialista é que os membros do Partido Comunista se tornaram senhores de terra", diz um organizador dos protestos, que argumenta que a propriedade privada da terra será precursora de um sistema político mais pluralista.
Ele diz que a privatização em áreas urbanas deu à classe média maior controle na forma que o país é dirigido e aponta para uma onda recente de manifestações pacíficas nas cidades como Xiamen e Xangai. Os cidadãos foram às ruas por questões específicas que afetavam diferentemente o valor de suas propriedades -um projeto de construção de uma fábrica química em região densamente habitada de Xiamen e uma extensão pelo centro de Xangai do trem de levitação magnético - e nos dois casos conseguiram convencer o governo a revisar os planos. "Se o povo recebesse a terra, teria o poder de se expressar e isso ajudaria a trazer democracia para a China", diz o ativista.
Do outro lado do debate, há críticos convincentes que se preocupam que a China desceria pelo mesmo caminho que outros países pós-comunistas, mais notavelmente a Rússia, se privatizasse rapidamente toda a terra.
"É um milagre impossível que a China, com sua população flutuante de 200 milhões de trabalhadores migrantes de áreas rurais, não tem favelas de verdade. Isso acontece porque todo mundo tem um pedaço de terra em sua aldeia, para o qual sempre pode voltar", diz Wen Tiejun, diretor da faculdade de agricultura e desenvolvimento rural da Universidade do Povo, de elite, em Pequim. "Graças ao atual sistema de propriedade, a China apreciou três décadas de rápido crescimento econômico e quase não tem pobres rurais sem terra, em contraste com a maior parte dos países em desenvolvimento."
Ele salienta que um terço da população indiana é considerado sem terra, um problema que ajudou a gerar a insurreição armada de guerrilheiros maoístas no norte do país, enquanto no Brasil, há um movimento nacional dos sem terra. "Se o governo chinês quiser ter os mesmos problemas que a Índia, então deve prosseguir e privatizar a terra", diz ele.
Por enquanto, o governo concorda com ele. A linha oficial é que a privatização da terra é "ilegal, inconstitucional e impossível" e que qualquer um que desafie isso será firmemente contido pelo brutal aparato de segurança do Estado.
Os ativistas dizem que o texto usado nas declarações e o momento de sua divulgação deveriam evocar um evento conhecido pelos estudantes da história chinesa moderna -a reforma agrária "espontânea", secretamente executada por um pequeno grupo de camponeses em dezembro de 1978, na minúscula aldeia de Xiaogang, na província de Anhui no leste da China.
Naquela época, o país ainda estava se recuperando do caos da revolução cultural. A maior parte da terra arável havia sido coletivizada em comunas, um sistema que ajudou a levar grande parte do país à beira da fome. De acordo com a legenda do partido comunista, depois de consultar os anciões da aldeia sobre como poderiam evitar a fome, 18 agricultores esfomeados em Xiaogang assinaram um pacto secreto dividindo a terra de sua comuna entre eles, para cada família trabalhar individualmente, uma ação unilateral que poderia facilmente tê-los levado à execução como traidores.
Em vez disso, seu exemplo foi defendido por autoridades reformistas, inclusive o líder supremo Deng Xiaoping, que ordenou que o "sistema de responsabilidade familiar" fosse espalhado pelo campo. Os camponeses receberam contratos de 30 anos para usarem sua terra para cultivar o que quisessem; eles poderiam manter ou vender o excedente produzido. O capitalismo voltou, e o milagre econômico chinês iniciou-se. Neste ano, é o 30º aniversário de ação de Xiaogang e, nos próximos anos, os contratos originais de leasing da terra começarão a expirar. Apesar de o governo ter dito que vai estendê-los por outros 30 anos, os pedidos de reforma estão ficando mais ruidosos.
A presença de Deng ainda envolve Xiaogang. "Vire a direita quando vir Deng Xiaoping", aconselham os locais. E com certeza, logo depois de deixar a estrada novinha em folha com pedágio, os visitantes chegam a um retrato desbotado de Deng com um sorriso magnânimo por baixo de caracteres que dizem: "Xiaogang, a primeira aldeia da China a se reformar". Mas Yan Juncheng, o homem que liderou a ação de Xiaogang e assim iniciou a reforma econômica da China, há muito perdeu sua veia rebelde que o levou a desafiar o partido e o sistema de terra comunal que foi a fundação da ideologia maoísta.
"Sob a liderança do meu Partido Comunista, a terra não é privada, mas coletivizada sob o socialismo. Nosso partido não pode voltar aos velhos tempos quando a terra era de propriedade privada, porque essa foi a razão que liberamos todo o país na revolução, para começar", diz Yan, quando perguntado porque apóia os colegas modernos.
Zhang irrita-se quando ouve o que Yan tem a dizer sobre a reforma agrária atualmente. "O que eu sei é que foi o sistema de terra comunal que matou mais de 30 milhões de pessoas no Grande Salto para Frente, e é o atual sistema que está causando tanto sofrimento e deve ser mudado", diz ele. "Afinal, a China é um país revolucionário; sua revolução foi uma revolução campesina e a principal questão dos camponeses é a terra."
(Por Jamil Anderlini, Financial Times, tradução de Deborah Weinberg,
UOL, 21/02/2008)