“Enquanto uma parte do mundo sustenta um mercado de designers de garrafas de água que não trazem qualquer benefício tangível para a saúde, outra parte enfrenta graves riscos de saúde pública porque as pessoas são obrigadas a beber água de valas ou de lagos e rios partilhados com os animais e contaminados com bactérias nocivas.” Relatório do Desenvolvimento Humano – PNUD, 2006
Nos últimos 60 anos, a população mundial duplicou. No mesmo período, o consumo de água pelas diferentes atividades humanas aumentou em sete vezes, enquanto a quantidade de água existente permanece igual. Aumentou, na mesma proporção, a degradação deste recurso fundamental para o desenvolvimento de todas as formas de vida na Terra. A deterioração e o uso excessivo têm relação direta com o homem, em especial com o crescimento e a diversificação de atividades agrícolas e industriais, aumento da urbanização e intensificação de atividades humanas nas bacias hidrográficas. A combinação do desperdício da água com a poluição dos mananciais - com exceção das regiões do planeta em que há limitações naturais - é a principal razão da escassez da água já ser um problema real para boa parte da população mundial, em especial para a que vive nas grandes cidades do planeta.
Estudos recentes alertam que 2,6 bilhões de pessoas (algo em torno de 40% da população mundial) não têm acesso a saneamento adequado e um bilhão não tem acesso à água de boa qualidade . Ao contrário do que se pode pensar, parcela significativa desta população não está em áreas remotas, mas sim nas grandes cidades, onde vive metade da população mundial, ou 3,3 bilhões de pessoas . Até 2025, as previsões apontam para um aumento de 2 bilhões de pessoas na população do planeta. Esse crescimento se dará principalmente nas cidades dos chamados “países em desenvolvimento”. O aumento da população urbana, aliado ao mau uso e poluição da água, aponta um quadro preocupante, onde garantir água de boa qualidade nas grandes cidades será um dos principais desafios deste século.
O chamado “estresse hídrico” – relação entre disponibilidade natural e os diversos usos que o homem faz da água, como produção de alimentos, abastecimento público, geração de energia, diluição de esgotos, controle de enchentes, entre tantos outros – já é uma realidade em metrópoles mundiais, inclusive nas capitais de países ricos. Um dos casos emblemáticos é o de Londres, que depende dos reservatórios formados pelos rios Tamisa e Lee. A rede de distribuição de água da cidade é muito antiga - um terço dela tem mais de 150 anos e mais da metade tem mais de um século – e apresenta altos níveis de perda, devido aos vazamentos. A situação se agrava com o prolongado período de estiagem e conseqüente diminuição do volume de chuvas na região nos últimos anos, o que tem levado as autoridades locais a planejar captações de água em mananciais distantes e dessalinização de águas salobras e marinhas para atender a demanda crescente.
Casos como o da capital inglesa tendem a surgir com mais freqüência no cenário mundial em função de mudanças no regime de chuvas. Essas mudanças vêm ocorrendo em vários locais do planeta, inclusive no Brasil, e prenunciam um cenário ainda mais sombrio de restrição do acesso à água em um futuro próximo, com proporções gigantescas caso as previsões sobre as alterações no clima, já nas próximas décadas, se confirmem.
A boa notícia é que algumas cidades já acordaram para a questão da proteção de suas fontes de água para garantir a produção e abastecimento a sua população – e outras sempre estiveram despertas. A preservação das áreas de mananciais para abastecimento de Tóquio teve início em 1901. Essas áreas estão localizadas nas nascentes dos principais rios (Tama, Tore e Ara) e protegidas por uma imensa floresta de 21.631 hectares. A manutenção desta floresta garante o fornecimento de água em quantidade e qualidade para o maior aglomerado urbano do planeta – vivem na Grande Tóquio mais de 31 milhões de pessoas, que consomem 6,23 bilhões de litros de água a cada dia, o equivalente a 200 litros per capita.
Já Nova Iorque iniciou, durante a década de 1990, um amplo programa de uso racional da água e proteção das bacias hidrográficas, que se mostrou mais econômico do que o investimento necessário para ampliar e tratar água de pior qualidade. Entre as ações desenvolvidas destacam-se um programa de subsídios para a substituição de todas as válvulas de descarga em cada uma das residências – o que resultou em diminuição do consumo e conseqüente aumento da sobrevida dos mananciais disponíveis para abastecer a cidade. Também foram executados um programa de gestão territorial compartilhada, incluindo a aquisição de terrenos em porções ambientalmente sensíveis das áreas de mananciais pela prefeitura da cidade e acordos com os proprietários das áreas de mananciais que, em troca da proteção, passaram a receber compensações financeiras.
Mas o avanço na gestão de seus recursos hídricos e proteção dos mananciais fazem de Nova Iorque e Tóquio exceções e exemplos a serem seguidos. Xangai, uma das maiores cidades chinesas, por exemplo, enfrenta enormes desafios nesta área. Sua maior fonte de água, o rio Huangpu, está tão contaminado por poluentes industriais e agrícolas que não registra vida aquática há mais de 20 anos. O rio Yangtze, a fonte alternativa de água, vem sofrendo com o aumento de salinidade em seus trechos mais baixos, resultado dos reduzidos níveis de água liberados pela maior barragem do mundo, a das Três Gargantas. Ao mesmo tempo, o lençol freático existente no subsolo de Xangai está sofrendo crescente contaminação da água do mar. A situação na capital do país não é muito melhor: dos 21 reservatórios superficiais que abastecem Pequim, 4 estão totalmente secos e apenas 3 são considerados fontes de água satisfatórias para consumo humano.
A Cidade do México é o principal exemplo de super exploração das águas subterrâneas. Estima-se, que é extraído dos aqüíferos da região um volume de água 30 a 65% superior aos níveis de recarga, fazendo com que os mananciais do subsolo estejam diminuindo a um ritmo médio de 1 metro por ano. Em alguns locais, o afundamento do solo provocado pela redução do nível das águas dos aqüíferos chegou a 7,5 metros abaixo do nível original, o que também tem provocado mais inundações e danos à rede de água e de drenagem, contaminando todo o sistema. Para piorar, as áreas de recarga dos mananciais vêm sendo ocupadas pela expansão da cidade, que cresce, em média, 250 hectares por ano. Para cada hectare ocupado, perdem-se 1.700 m³ de recarga anual dos aqüíferos - quantidade de água suficiente para abastecer 1.500 famílias.
As fontes de água alternativas da Cidade do México estão cada vez mais distantes e os métodos para trazer água são caros e vulneráveis, além de implicar na disputa pela gestão do recurso entre diferentes estados da federação. Apesar deste quadro, o consumo diário médio per capita dos 19 milhões de habitantes da capital mexicana é de abusivos 364 litros dia – a ONU recomenda um consumo médio diário per capita de 110 litros. O risco de escassez ainda aumenta diante da cifra de água desperdiçada: estima-se - de acordo com o último levantamento disponível - que a perda de água na distribuição local seja de 35% do total de água retirada dos mananciais.
O Brasil, pátria de 12% de toda a água doce superficial do planeta, é páreo duro na competição com o México para ver quem joga mais água limpa fora. Um estudo divulgado em novembro passado pelo Instituto Socioambiental (ISA) lançou luz sobre a situação do abastecimento público e saneamento básico nas 27 capitais brasileiras. O levantamento revela que praticamente metade da água retirada dos mananciais das capitais (45%) é desperdiçada em vazamentos, fraudes e sub-medições. A quantidade de água jogada fora é estimada em 6,14 bilhões de litros por dia (2.457 piscinas olímpicas) e seria suficiente para abastecer 38 milhões de pessoas por dia, ou a população de um país como a Argentina.
O levantamento sobre as coberturas e desperdícios nas redes públicas de abastecimento e saneamento, tem como base os dados fornecidos pelas concessionárias prestadoras dos serviços para o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades (ano base 2004). Leia a seguir algumas constatações:
Abastecimento de água• Apenas seis das 27 capitais atendem à totalidade de sua população;
• Apesar da média de cobertura ser de 90%, Porto Velho, Rio Branco e Macapá cobrem apenas 30,6%, 56,2% e 58,5% da população, respectivamente.
Consumo de água• A média de consumo per capita nas capitais é de 150 litros por dia;
• São Paulo, Rio de Janeiro e Vitória apresentam os maiores consumos (mais de 220 litros/habitante/dia). A ONU recomenda 110 litros.
Perda de água (desde vazamentos até sub-medições e fraudes)• A água perdida diariamente nas capitais seria suficiente para abastecer 38 milhões de pessoas/dia (considerando o consumo de cada capital);
• A capital campeã do desperdício é Porto Velho, com 78,8% do total;
• Em termos de volume perdido, o Rio de Janeiro é a capital que mais joga água fora – um volume diário equivalente a 618 piscinas olímpicas!
Outro ponto que o estudo avaliou foi a situação do esgotamento sanitário nas grandes cidades do País. O descaso e a ausência de investimentos no setor de saneamento em nosso País, em especial nas áreas urbanas, são flagrantes. Quase metade da população residente nas capitais brasileiras (45% da população ou 19 milhões de pessoas) tem seus esgotos despejados nos rios e no mar sem qualquer tratamento. E uma parcela significativa desta população (13 milhões de habitantes) não tem sequer a coleta e o afastamento dos resíduos, e convive de perto – na porta ou nos fundos da casa - com a poluição. Manaus, Belém e Rio Branco apresentam os piores índices, com menos de 3% de seus moradores atendidos pelo serviço.
Enchentes, lixo, contaminação dos mananciais, água sem tratamento e doenças apresentam uma relação estreita. Diarréias, dengue, febre tifóide e malária, que resultam em milhares de mortes anuais, especialmente de crianças, são transmitidas por água contaminada com esgotos humanos, dejetos animais e lixo. Estima-se que 70 % das internações na rede pública de saúde estão relacionadas com doenças transmitidas pela água.
Omissão históricaNos anos 80, os investimentos no setor foram centralizados juntamente com o Estado Brasileiro. O Plano Nacional de Saneamento (Planasa) incentivou a concessão de serviços para as companhias estaduais e contribui para diminuir a atuação dos municípios. Entre suas metas, estava o atendimento de 90% da população com serviços adequados de abastecimento de água e 65% com esgotamento sanitário, e não incluía os serviços de coleta de lixo. A situação atual dos serviços de saneamento no Brasil mostra que as metas eram ambiciosas e que a universalização destes serviços deve ser encarada como prioritária para o desenvolvimento do País. A ausência de investimentos em itens tão fundamentais como os serviços de saneamento têm impactos sobre a saúde da população e o meio ambiente.
A sustentabilidade das grandes cidades e metrópoles mundiais está diretamente vinculada com a garantia e manutenção de fontes de água para abastecimento público. Neste sentido, é fundamental que seus governantes adotem – e sejam pressionados pelas respectivas sociedades para tal - estratégias e políticas públicas que promovam a sustentação da produção atual de água, incluindo a proteção dos mananciais, a ampliação das áreas permeáveis, a diminuição dos desperdícios e perdas, juntamente com a racionalização do uso deste recurso fundamental.
São Paulo no limitePara abastecer a população residente na cidade de São Paulo, são produzidos aproximadamente 3,4 bilhões de litros de água por dia (equivalentes a 3,4 milhões de caixas d’água ou 40 metros cúbicos por segundo). De acordo com a Sabesp, 30,8% deste total se perde no percurso entre os mananciais e a porta da casa dos 10 milhões de moradores da cidade. A água desperdiçada em São Paulo equivale a um volume de aproximadamente 1 bilhão de litros por dia (ou 1 milhão de caixas d'água). Esta perda compreende os vazamentos, mas também problemas relacionados à medição e fraudes.
O volume de água consumido na cidade de São Paulo é de aproximadamente 2,4 bilhões de litros por dia, incluindo a água que é medida pela empresa e a água que é retirada de forma clandestina das redes. A média de consumo per capita na cidade é alta, 221 litros por habitante/dia, mas do que o dobro recomendado pela ONU. Importante ressaltar que o consumo é muito desigual nas diversas regiões da cidade. Enquanto alguns bairros centrais apresentam consumo por habitante de aproximadamente 500 litros/dia, bairros periféricos da Zona Leste, por exemplo, registram consumos diários de pouco mais de 100 litros por habitante/dia.
A alta taxa de perda na rede, o elevado consumo por boa parte de seus habitantes e a degradação dos mananciais fazem com que a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) já enfrente sérios problemas para garantir água em quantidade e qualidade adequada para seus 19 milhões de habitantes. A baixa disponibilidade hídrica da região – localizada próxima às cabeceiras do Rio Tietê – foi agravada ao longo de sua história em função da poluição e da destruição de seus mananciais, entre eles os rios Tietê, Pinheiros, Ipiranga, Anhangabaú e Tamanduateí.
Hoje, para dar conta do abastecimento de sua população, a Grande São Paulo importa mais da metade da água que consome da Bacia do Rio Piracicaba, através do Sistema Cantareira - que está a mais de 70 km do centro de São Paulo e conta com seis represas interligadas por túneis. O restante da água é produzido pelos mananciais que ainda restam na região - em especial Billings, Guarapiranga e Sistema Alto Tietê - e que sofrem intenso processo de ocupação, resultante da expansão da mancha urbana dos municípios que fazem parte da metrópole. A produção de água está muito próxima da disponibilidade hídrica dos mananciais existentes, que é de 66 mil litros por segundo. Essa pequena folga coloca a região em uma situação frágil, onde um período de estiagem mais prolongado pode resultar em racionamento de água para grande parte da população.
Apesar desse quadro, as áreas de mananciais – que são protegidas por lei desde a década de 1970 - são alvos da expansão da mancha urbana dos municípios, caracterizada pelo deslocamento das populações mais carentes para as áreas periféricas. Atualmente, a mancha urbana ultrapassa os limites da área de proteção e essa expansão é caracterizada especialmente pelo abandono das áreas centrais da cidade e pelo adensamento das áreas periféricas, processos estimulados pela especulação imobiliária, criação de novos pólos industriais e de serviços e pela ausência de programas habitacionais. Toda essa dinâmica de ocupação, poluição e degradação das áreas de mananciais já pode ser sentida no bolso dos moradores da Grande São Paulo. Nos últimos cinco anos, o custo de tratamento de água nos sistemas Cantareira, Guarapiranga e Alto Tietê duplicou.
(Por Marussia Whately, Fernanda Blauth e Bruno Weis,
ISA, 14/02/2008)
*Artigo originalmente publicado na edição de janeiro de 2008 do Le Monde Diplomatique Brasil.