Desde criança, fazer brinquedos e jogos com as tralhas do quintal, era um exercício natural com uma dúzia de irmãos, onde alguns eram mais criativos e ousados, outros mais intelectuais e reservados, mas todos interagiam proporcionando momentos riquíssimos de aprendizagem. Lembro-me dos carrinhos de rolimã, patinete, casinhas de boneca com fogão de tijolos e fogo de verdade, jogo da trinca, trilha, velha, 5 pedrinhas (5 Marias), amarelinhas riscadas (ora com carvão, ora com caco de telha ou gesso de construção), queimada com bolas de meia ou jornal... O que não valia mesmo era ficar sem brincar.
Cresci re-utilizando roupas e tudo mais que meus dez irmãos mais velhos deixavam de usar. Muitas vezes, colocava um adereço na roupa ou no objeto que ficavam com aparência de novos, e a satisfação de fazer algo inédito não tinha preço. Ao entrar no mundo da criança, percebo que não é preciso dinheiro para comprar todas as novidades que a mídia oferece. A criatividade usada num brinquedo e as coisas feitas com as próprias mãos são muitas vezes mais satisfatórias que ganhar um brinquedo caro, “bonito” e sem significado.
Se eu pudesse falar algo que tocasse os corações dos adultos, educadores e pais, eu diria que o que conta muito é com o que a criança brinca, como foi feito o brinquedo, o jogo e com quem foram partilhados esses momentos. Valorizo muito o resgate de brinquedos e brincadeiras folclóricas, porque acredito que é um passo importante nos dias de hoje, já que brincar na “rua” tornou-se inviável e deve ser substituído pelo brincar na escola, no condomínio, no clube, na praça ou outro local.
Em 1980, dei início à minha profissão de professora na Prefeitura de Campinas e a realidade era uma carência de materiais que me instigava a buscar sucatas. Senti necessidade de recursos especiais, porque passei a trabalhar com crianças que apresentaram dificuldades de aprendizagem. Virei a “Rainha da Sucata” em várias unidades escolares que trabalhei, muitas colegas compartilhavam as novidades e trocávamos experiências que deram certo.
Empenhei meus esforços e dediquei-me ao reaproveitamento dos materiais descartados, porque percebi que isso valorizava meu trabalho pedagógico e hoje, não mais em sala de aula, ministro cursos para os educadores que usam a prática lúdica, trocando suas tentativas e experiências nesta maneira simples e criativa de fazer jogos, brinquedos, bandinhas, adereços, presentes e outras coisas mais, com a re-utilização de todo tipo de material.
Em 2003, fui convidada para integrar a equipe do Programa de Educação Ambiental da Secretaria de Educação, onde desenvolvi uma oficina: “Recriando com arte”, com brinquedos, jogos e bandinha de sucata. A criatividade não tem fim: Iniciei a montagem de uma eco-brinquedoteca itinerante e fui levando às escolas as idéias que colhia aqui e ali, por onde passava. Esta brincadeira virou coisa séria, aumentando de uma caixa de jogos, brinquedos e bandinha para 8 caixas bem equipadas.
Em 2005, participei de um grupo que se preocupava com a formação de Brinquedistas no Centro de Educação Profissional de Campinas (Ceprocamp) oferecendo uma prática de aprender e fazer jogos e brinquedos de sucata. O público atendido era formado de pessoas entre 15 e 80 anos, analfabetos, universitários e de preferência de desempregados.
Aprendo todos os dias com todas as pessoas, com as crianças, professores e outros profissionais, e procuro aprender também em todas as circunstâncias do dia-a-dia. Não crio nada. Tudo já existe e eu apenas modifico dando uma roupagem ou cara nova.
Manipulando os jogos e brinquedos, consigo visualizar a transdisciplinaridade deles. Com algumas adaptações, eles servirão como recurso pedagógico para aulas de história, inglês, geografia, física e todas outras matérias. Tenho até um simulado nos moldes daqueles feitos pela Unicamp cujo tema foi o lixo, feito no Cursinho ZAP, quando ocupei o cargo de coordenadora pedagógica.
Nos últimos dois anos, ministrei 7 turmas de eco-brinquedista e através de depoimentos e avaliações, posso afirmar que quem passa pelo curso “eco-brinquedista” percebe o lixo com outra conotação, e no dia-a-dia, muda seus hábitos, mostrando um carinho especial para cada coisa que descarta.
Aos olhos do mercado capitalista, eu sei que estou regredindo, porque procuro não consumir tanto e, ainda tento abrir os olhos de quem o faz. Virei uma catadora de lixo que não consegue passar perto de uma caçamba ou entulho sem esticar o olho e muitas vezes aproveitar coisas que lá não deveriam estar.
Mudei minha relação com o lixo, porque consegui ver nele duas coisas importantes:- Grande problema da atualidade
- Solução possível
O primeiro caso acontece nas grandes metrópoles que já não têm onde colocar o lixo, alugando espaços em outros países e locais, encarecendo este serviço para a população. O lixo é o vilão que polui água, ar e terra, mas só é tratado com desprezo, pois as pessoas misturam papéis com óleo, borra de café, papel higiênico sujo, curativos, cascas de frutas, frascos de vidros, recipientes de plástico, metais com os mais variados produtos, tornando-o inviável para a reciclagem.
No segundo caso, grande porcentagem do lixo não é lixo, podendo ser reutilizado e reciclado. Pra mim o lixo brilha feito ouro, pois vejo nele a matéria prima para todo o trabalho que desenvolvo e milhões de toneladas desta matéria prima para infinitas utilidades.
A catação de lixo é atualmente um subemprego, mas que garante o sustento de milhares de famílias e ajuda na sustentabilidade do planeta. Campinas já tem mais de dois mil catadores independentes e 14 cooperativas. As cooperativas desenvolvem um trabalho mais humanitário, com carteira assinada e garantia de um preço melhor para o lixo que será reciclado.
Muitas pessoas pensam que reciclar o lixo é separá-lo em recipientes especiais para cada tipo de produto. Isto faz parte do que chamamos de coleta seletiva. A separação deste material é fundamental e é importante saber que do outro lado do nosso lixo tem um ser humano que se sustenta, sustenta a família e vive dele. Muitas vezes, conversando com os catadores e visitando as cooperativas, sinto compaixão por estas pessoas, sabendo por elas, que grande parte do lixo não é possível ser vendida. Isso por minha culpa, nossa culpa e, principalmente daqueles que mais produzem lixo e querem ficar livre dele de qualquer forma.
Conforme Al Gore: "Temos tudo o que precisamos para salvar a integridade de nosso planeta, exceto a vontade política".
Vimos no natal uma campanha milionária para reutilizar 1.200.000 garrafas pets, como enfeites da cidade de Campinas, e nunca vimos tal campanha para reciclagem das mesmas que obstruem bueiros, acumulam-se em terrenos baldios e são responsáveis por grande parte dos desastres ambientais urbanos.
Campinas possui 900T/dia de lixo sendo 3% deste total a porcentagem reciclada. Que vergonha! Eu também faço parte desta estatística e quero contribuir para aumentar a porcentagem de reciclagem em 2008.
Aos 56 anos de idade, 31 anos de magistério, nesse início do século XXI, em plena era das comunicações, eu me admiro e ao mesmo tempo fico surpresa quando percebo meu compromisso em afirmar que brincar é necessário para todos nós, saudável para a mente e corpo, pode ser um modo prazeroso de aprender e criar regras e burlá-las também, envolve diferentes linguagens (afetiva, espontânea, simbólica, imaginativa, universal, gestual, oral), é uma atividade inserida num universo cultural local e global. Tem importante potencial de criação e abertura para novos significados e relações com parceiros que também gostam de brincar, envolve os participantes em pura emoção, permite a interação de forma a possibilitar a compreensão entre as pessoas, sentimentos e os vários conhecimentos, conhecer e respeitar regras de convivência social, fazer escolhas (temas, papéis, objetos, parceiros, tipos de jogos) e sentir a sensação de liberdade, errar e aprender, refazer, repetir muitas vezes até esgotar-se, pensar e repensar conhecimentos. Brincar é tão antigo quanto a origem do ser humano. Brincar é pedagógico.
Tenho mania de continuar aprendendo e aprendendo com crianças. Certa vez, numa conversa que aconteceu em janeiro de 2006, no avião que seguia para Porto Alegre, do meu lado sentou-se uma menina de 7 anos com sua “filha” - uma boneca. Ela colocou o cinto de segurança na “filha” e depois nela, aí olhou em volta e procurando conversa, me perguntou:
- Como você se chama?
- Sou Zamira e você?
- Larissa. Para onde você está indo?
- Vou fazer um curso de brinquedista na Universidade Federal de Porto Alegre.
- O que é isso?
- É um curso para que eu aprenda a brincar. Depois vou ensinar às professoras e monitoras a brincar, e elas ensinarão às crianças.
Ela ficou séria, pensativa e logo em seguida, sorrindo, completou.
- Mas não precisa! Criança já brinca!
Aquela afirmação me paralisou por momentos, fiquei sem palavras... Passei a refletir muito esta verdade incontestável! E me faz perguntar: porque estudar tanto sobre o brincar? Desde então, cada vez mais, busco compreender os processos e mecanismos pelo qual o ser humano aprende, e como o brincar pode contribuir na formação de cada ser. Estou comprometida no aprofundamento e nas pesquisas que visam ajudar com o processo de ensino/aprendizagem. Os jogos e brinquedos são divulgados pela Apostila Virtual e faço questão que usem, abusem e divulguem todo o material que apresento.
Os interessados na Apostila podem escrever para zamiranunes@gmail.com.
(Por Tereza Miriam Pires Nunes,
Revista ComCiencia, Fev.2008)
Tereza Miriam Pires Nunes é professora da rede municipal de Campinas (SP) e integrante do Plano Municipal de Educação Ambiental.