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saúde pública poluição e saúde
2008-02-20
O antigo aforisma (atribuído ora a Samuel Johnson, escritor e dicionarista inglês do século XVIII, ora a Henry J. Temple, nobre inglês dos fins do mesmo século) segundo o qual a sujeira é apenas matter out of place, matéria fora de lugar, deixa de lado as múltiplas implicações que a questão da limpeza pode ter para o ser humano: implicações culturais, sociais, religiosas, psicológicas. Sobre os aspectos simbólicos, aliás, devemos citar o importante trabalho da antropóloga Mary Douglas, autora do clássico Purity and danger: an analysis of the concepts of pollution and taboo (Londres: Ark Paperbacks, 1966). Como aponta Mary Douglas, no Antigo Testamento são numerosas as referências à limpeza e igualmente numerosos os preceitos higiênicos, inclusive os dietéticos. E aí temos um típico exemplo da superposição de fatores religiosos e culturais com outros ligados àquilo que o antropólogo Marvin Harris denomina de materialismo cultural. Por que os hebreus e outros povos do Oriente Médio não podiam (e não podem) comer porco? Uma explicação: o porco é considerado um animal impuro, tabu. Outra, pouco provável: o porco seria identificado como portador de parasitoses. Marvin Harris levanta uma outra hipótese, que poderíamos denominar de ecológica. O porco transpira muito pouco, e, para aliviar o calor corporal, necessita de umidade externa (é por isso que chafurda na lama), umidade esta que em regiões desérticas como o Oriente Médio é rara. Além disto, e diferente do boi, da vaca e mesmo de cabras, o porco não proporciona tração nem leite, só a carne. Esta, contudo, provavelmente se constituía numa iguaria, gerando um problema: os hebreus queriam comer porco, mas não deviam comer porco. O legislador bíblico resolve o impasse com a proibição. O mesmo se pode dizer da higiene. Tomemos o antigo preceito judaico que manda lavar as mãos após sair do cemitério: é uma medida higiênica, de proteção contra doenças, é um ritual de purificação, ou as duas coisas?

Seja como for, o certo é que a medicina hipocrática começou a estabelecer vínculos entre doenças, higiene pessoal e higiene ambiental. O texto conhecido como Ares, águas, lugares, atribuído a Hipócrates, discute os fatores ambientais ligados à doença, destacando especificamente que “o efeito da água sobre a saúde não deve ser esquecido”. Isto se referia tanto a água para beber como a água para a higiene pessoal. Os romanos, que conquistaram a Grécia e incorporaram a medicina hipocrática (muitos dos médicos em Roma eram gregos, em geral levados como escravos) desenvolveram muito esse aspecto, construindo aquedutos, que traziam para a cidade água de melhor qualidade, banhos públicos e a Cloaca Maxima, um grande sistema de esgotos.

Com a queda do Império Romano e a ascensão do cristianismo houve uma mudança de hábitos. As casas de banho eram vistas como lugares de licenciosidade pagã. Banhar-se não era coisa de rotina. Nos mosteiros e conventos europeus, o banho só ocorria às vésperas de celebrações como a Páscoa e o Natal (e na população em geral não deve ter sido muito diferente). Nos mosteiros beneditinos só religiosos idosos e doentes podiam se banhar. Mesmo o começo da modernidade não trouxe mudanças significativas; as condições até pioraram, porque com o crescimento das cidades os problemas de higiene e saneamento se agravaram. Não é de admirar que o início da era moderna tenha sido marcado por epidemias de peste bubônica: os ratos que albergavam as pulgas transmissoras da doença encontravam no lixo urbano abrigo ideal. Os dejetos eram jogados na rua. Mesmo o palácio de Versailles não tinha banheiros – as fezes eram dali retiradas uma vez por semana. O banho freqüente era contra-indicado pelos médicos – enfraqueceria a pele e permitiria a entrada de doenças. Dom João VI era particularmente avesso a banhar-se e a trocar de roupas – diz-se que as camisas apodreciam em seu corpo. Para os europeus em geral, banhar-se era coisa esporádica e feita com pano úmido (mas os perfumes eram bastante usados pelos ricos, o que explica o desenvolvimento da indústria francesa de perfumes).

No final do século XIX, com o desenvolvimento da bacteriologia, constatou-se que sujeira pode ser refúgio de micróbios. Instituiu-se a assepsia e a higiene pessoal. A propósito, é importante assinalar o trabalho do médico húngaro (trabalhando em Viena) Ignaz Semmelweiss em relação à febre puerperal. Ele descobriu que essa doença, causada por um estreptococo, era transmitida às parturientes pelos próprios médicos, que, depois de fazerem necropsias em pacientes falecidas, examinavam as mulheres que iam dar à luz sem luvas e sem sequer lavar as mãos. Preconizou medidas de higiene que, aliás, foram muito mal recebidas pelos médicos e transformaram-no num inimigo público. Simultaneamente melhoravam as condições para a higiene pessoal, com o surgimento de redes de água e de esgoto, a industrialização do sabonete (o sabão era conhecido desde os egípcios, mas seu uso era restrito) e o surgimento (em 1877) do papel higiênico em rolo.

Limpeza ainda pode ser obsessão e compulsão (de fato, lavar as mãos repetidamente é uma manifestação do TOC, o transtorno obsessivo-compulsivo) e seus aspectos simbólicos ainda se fazem presentes, mas a associação de higiene com saúde está definitivamente estabelecida e é parte do estilo de vida. Mostrando que, apesar dos pesares, a humanidade evolui.

(Por Moacyr Scliar, Revista ComCiencia, Fev.2008)
Moacyr Scliar é médico, especialista em saúde pública, doutor em ciências e escritor, autor de 80 livros. É membro da Academia Brasileira de Letras.

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