Quem procura emas dentro do parque nacional que as homenageou corre o risco de se frustrar. Embora elas vivam em grande número no interior da unidade de conservação, é bem mais fácil visualizá-las ciscando nas extensas plantações de soja, milho e algodão, que viraram fisionomia dominante onde a paisagem deveria ser de Cerrado. A maior ave brasileira não é a única que aprendeu a conviver com as lavouras. Onças, antas, queixadas, lobos, carcarás e diversos outros animais conseguiram atravessar a barreira das plantações para obter alimento e acesso aos remanescentes do segundo maior bioma do Brasil.
Hoje, o Cerrado só pode ser conhecido dentro de unidades de conservação, terras indígenas ou, quando há, em áreas de reserva legal das propriedades. Essa situação, que se tornou tão consolidada no Planalto Central e em suas bordas, chega a ser chocante na região do Parque Nacional das Emas (GO), na divisa dos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. Limitado por cercas, o parque de 132 mil hectares ficou ilhado. Muito diferente de quando foi criado, em 1961. É nítido, tanto ao vivo quanto em imagens de satélite, onde começa e onde termina a unidade de conservação, pois ela é quase toda circundada por lavouras e algumas áreas de pecuária. Falar em zona de amortecimento – área no entorno do parque que por lei só pode sofrer interferências com o aval da autoridade ambiental competente – é uma ilusão.
Mas, por incrível que pareça, pesquisadores preferem rejeitar a idéia de que o parque já esteja mesmo isolado e, antes de confirmarem esse fato, insistem na necessidade de mais estudos, enquanto há tempo. “É difícil dizer que as populações estão isoladas. Nunca ninguém mediu se há desequilíbrio ou estudou a variabilidade genética das espécies”, explica Cynthia Pinheiro Machado, bióloga da Fundação Fauna & Flora Internacional.
A circulação de animais dentro e fora do parque nacional tem sido comprovada, além da observação eventual, através de um monitoramento dos atropelamentos nas estradas nos limites do Parque das Emas. De acordo com dados da administração do parque, nos meses de novembro e dezembro de 2007 foram atropelados 48 animais acima de 15 centímetros nas estradas percorridas. Entre os bichos, quatro antas, cinco emas, além de lobos-guarás, raposas, quatis, e onças.
“As áreas de lavoura não são uma barreira intransponível. Isso tem sido estudado”, afirma o biólogo Mario Barroso, gerente do Programa Cerrado da Conservação Internacional. Os pesquisadores sabem que áreas importantes e não muito distantes dos limites do parque devem atrair diversos animais, embora o visitante que trafegue pela área de chapadões não as consiga visualizar, uma vez que são localizadas nas bordas do planalto e em vales. “Existem as nascentes do rio Araguaia, rio amarelo e outras áreas significativas”, cita Barroso.
Essas áreas foram mapeadas e observadas com mais cuidado pela equipe da ONG Oréades, que, entre outras atividades, faz geoprocessamento e dá apoio a projetos como o que pretende consolidar um corredor ecológico entre o Parque Nacional das Emas e o Pantanal. O monitoramento da Oréades tem revelado que, pouco a pouco, os remanescentes de 2 mil, 5 mil e até de 10 mil hectares de Cerrado têm sido cada vez mais pressionados.
“Identificamos remanescentes que estão sendo ‘aparados’. Sem autorização alguma, o produtor corta os fragmentos pelas beiradas, desmatando de 20 a 30 hectares em média. São pequenos talhões, que a sociedade só percebe depois de quatro ou cinco anos”, relata Renato Moreira, engenheiro agrônomo da organização. Segundo ele, a única unidade de conservação relativamente próxima e que poderia ser conectada é o Parque Estadual das Nascentes do Rio Taquari (MS). “É muito pouco. Para chegar até lá os bichos têm que dar uma volta muito grande por causa da barreira de lavouras que se formou”, diz.
Benefício da dúvida
A incerteza sobre a saúde das populações que ocorrem no Parque Nacional das Emas e sua relação com o entorno é um dos pontos mais sensíveis nas tentativas de regularização ambiental da região. Apesar do constante fluxo de pesquisadores, até hoje não se sabe, com profundidade, quais são os impactos do cercamento do parque para algumas espécies, assim como a pulverização aérea de defensivos agrícolas dentro e fora da unidade de conservação, ou de possíveis contaminações por agrotóxicos via cursos d’água – o que particularmente preocupa mais os moradores das cidades vizinhas.
Por isso, as pressões que ainda estão por vir são ainda mais imprevisíveis, como a substituição de áreas de lavouras de soja, milho e de pecuária por canaviais, agora com a instalação de duas usinas de álcool no que seria a zona de amortecimento do parque. “Emas e antas circulam bem pela soja, mas não sabemos como essas e outras espécies responderão à cana”, sugere Moreira.
A existência desse tipo de dúvida tem conseguido adiar o cumprimento das normas ambientais. Ali, por exemplo, zona de amortecimento é uma peça de ficção. E até servidores do Ibama hoje reconhecem que a tentativa de implantá-la foi um tiro que saiu pela culatra. Segundo Ary Soares, superintendente do Ibama em Goiás e ex-chefe do Parque Nacional das Emas, em 2005 o plano de manejo definiu que numa faixa de dois quilômetros para fora da unidade de conservação estariam proibidas atividades como a pulverização de agrotóxicos. Conselho consultivo e proprietários questionaram o embasamento técnico para tal determinação, porque desde 2003 estudos para comprovarem a contaminação haviam sido solicitados. Nessa hora, o Ibama fraquejou. “Existia um trabalho científico sobre a interferência de um tipo de agrotóxico sobre insetos, mas não foi suficiente”, conta Soares. Na verdade, nem era para ser.
Cynthia Pinheiro Machado, autora do estudo sobre insetos, esclarece que sua pesquisa nunca pretendeu estabelecer referências para zona de amortecimento. “Eu tinha que fazer a revisão do plano de manejo quanto à entomologia. Como o Ibama só tinha dinheiro para bancar quatro idas a campo, fiz uma análise grosseira da situação dos insetos na área central do parque e nas bordas interiores numa faixa de dois quilômetros”, explica.
Descobriu, com dados que precisam ser aprofundados, que a quantidade de insetos nessa faixa dos 2 km e no centro do parque não apresenta grandes diferenças, enquanto fora destas áreas tudo que encontrou foram pragas. “O Ibama rebateu esses dois quilômetros para fora do parque e resolveu proibir os defensivos e a pulverização nessa área”, conta Cynthia. A reação foi imediata. “Os produtores iriam aceitar qualquer zona, desde que bem fundamentada”, garante Joênio Araújo, secretário de Planejamento e Desenvolvimento de Chapadão do Céu (GO).
Para o Ibama de Goiás, a administração do parque, o conselho consultivo, pesquisadores e proprietários, a determinação dos 2 km não se aplica mais. Mas o Instituto Chico Mendes não pensa assim. O coordenador do bioma Cerrado do Instituto Chico Mendes, Sergio Carvalho, afirma que houve sim justificativa técnica para a determinação dos dois quilômetros. “Não dá para aceitar a argumentação de que não houve embasamento. Ele foi sim superficial porque não havia pesquisa sobre isso”, diz Carvalho.
Por isso, segundo ele, o instituto tem todo o interesse em revisá-la. “Mas o Ibama nunca tocou nisso. Íamos fazer seminário com os proprietários e até suspender temporariamente a determinação no final de 2006, mas por problemas políticos e retenção de recursos, a coisa não andou”, conta o coordenador. “Em março de 2007, tentamos retomar, mas aí criaram o Instituto Chico Mendes e o assunto foi relegado a segundo plano”. Enquanto isso, ao contrário do que todos pensam, vale a zona de dois quilômetros. “A norma não foi suspensa. Ela está sendo descumprida”, alerta o funcionário do Chico Mendes.
Tão descumprida quanto a legislação dos agrotóxicos. Carvalho explica que existe uma determinação do próprio Ibama que proíbe os aviões agrícolas de sobrevoarem uma área entre 100 e 500 metros de distância de quaisquer fragmentos florestais. “Não pode ter dispersão tão perto, isso é passível de multa e cassação do brevê do piloto”, conta ele, que, como tantos outros, já viu aviões que lançam agrotóxicos sobrevoando a área do parque. Diante disso, o impacto é praticamente certo. “Acreditamos que deve haver impacto e significativo”, diz Mario Barroso, da Conservação Internacional.
Difícil regularização Só para ter uma idéia da dificuldade de garantir áreas saudáveis para as espécies que transitam na região do parque das Emas, um levantamento do Ibama constatou que num universo de 300 mil hectares em seu entorno mais de 80% das cerca de 200 propriedades rurais apresentam algum tipo de irregularidade, como a ausência de reserva legal, de áreas de preservação permanente ou as duas coisas. Mas, até agora, nenhum proprietário foi efetivamente multado. “Ainda não consolidamos todas as informações, e queremos uma solução negociada”, afirma Ary Soares, superintendente do Ibama em Goiás.
A espera tem sido longa, para dizer o mínimo. Conforme lembra Barroso, em 1973 os primeiros sojicultores chegaram à região de Emas. E em 1989 o parque já estava cercado. De lá para cá o que se viu foi a paulatina redução dos remanescentes de Cerrado, conforme mostra uma simulação da Conservação Internacional, que estimou o cenário dessa destruição entre 1973 e 2030. Agora é correr atrás do prejuízo. “Temos que resolver problemas já consolidados. A destruição do Cerrado aconteceu há 20, 30 anos. É diferente da Amazônia, onde você ainda pode ter um instrumento forte de repressão para parar ou diminuir a devastação”, considera Soares, que aposta todas as fichas em um seminário que deve acontecer em março para definir as novas estratégias de regularização ambiental.
“Não queremos solução meramente legalista. A recomposição de reserva legal ali pode não resolver a situação. Por isso pensamos em fazer essa compensação em extra propriedade, na área em que escolhermos como de maior interesse ecológico”, explica Soares. Neste caso, para lidar com os infratores, o Ibama pretende fazer termos de ajustamento de conduta para adequação das propriedades e aguardar os resultados, que já começaram a aparecer com a ajuda da Oréades. “Temos um projeto financiado pela Bunge em que orientamos os produtores sobre o que fazer para se regularizarem”, diz Moreira. “Tem produtor que não possuía nenhum hectare de reserva legal e agora já reflorestou 300 hectares numa área importante para conservação. Esse passivo está sendo resgatado”, conta o pesquisador da Oréades.
Recuperar reserva legal na faixa no entorno do parque para ajudar na recomposição da zona de amortecimento não é uma idéia consensual. Para Mario Barroso, da CI, teoricamente essa solução seria ótima. “Mas o custo é muito alto e isso pode não trazer um ambiente de qualidade. O ideal é continuar trabalhando com remanescentes”, opina o biólogo. Marco Antônio Batalha, ecólogo da Universidade Federal de São Carlos, acha que o esforço pode valer a pena. “A gente deve tentar recuperar, o Cerrado tem boa capacidade de regeneração. Basta retirar a soja para que outras espécies cheguem”, sugere o pesquisador. “É claro que para grandes mamíferos isso não é suficiente, mas em áreas de recuperação já é possível encontrar cerca de 100 espécies de plantas e insetos”, conta.
(Andreia Fanzeres,
O Eco, 16/02/2008)
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