Por Onofre Carlos de Arruda Sampaio*
Uma reportagem da Bloomberg que, declaradamente, deveria tratar das vantagens e das desvantagens econômicas do ethanol, como fonte de energia renovável, revelou inusitada tendenciosidade, ao focar e dar destaque de forma desproporcional a situações episódicas, propositalmente pinçadas com extremo zelo e casuísmo, relacionadas ao trabalho de corte da cana.
A exportação de commodities agrícolas é, inequivocadamente, a grande responsável pelo superávit da balança comercial brasileira, gerando trabalho e divisas. O Brasil dispõe de substancial vantagem competitiva em relação a esses produtos, representada pela extensão territorial, pelo solo e clima favoráveis e por uma agroindústria moderna. Esta opera com a necessária economia de escala, com sistemas logísticos sofisticados e com fundamento técnico consolidado desenvolvido aqui por instituições como a Escola Superior Agrícola Luiz de Queiroz, o Instituto Agronômico de Campinas, o Instituto de Economia Agrícola, a Embrapa e muitas outras espalhados pelo País.
Mas nada é fácil nesses mercados mundiais em que governos de países com economias setoriais menos competitivas têm feito de tudo e mais um pouco para proteger os produtores locais, invalidando o quanto podem a premissa, por eles mesmos tão apregoada, da prevalência da vantagem competitiva. Quando elas não lhes são favoráveis, as regras do mercado são ignoradas.
Quando isso ocorre a ação política desses governos estrangeiros tem consistido em criar e conceder subsídios, ostensiva ou dissimuladamente, aos produtores locais, em elevar tarifas alfandegárias e em instituir barreiras regulatórias especiosas e casuísticas, exclusivamente para impedir o ingresso de produtos estrangeiros. Neste momento o Brasil enfrenta restrições às suas exportações de carne bovina, frangos, suínos, suco de laranja e etanol. Nem mesmo as reclamações à Organização Mundial do Comércio (OMC) têm conseguido sucesso definitivo contra essas medidas protecionistas.
Mas o pior mesmo ocorre quando essas restrições 'técnicas' se mostram insuficientes e os países importadores lançam mão de argumentos que fabricam restrições morais ao consumo dos produtos brasileiros para desqualificá-los aos olhos dos consumidores, que, de outra forma, não aceitariam pagar mais pelo que podem obter por menos.
No dia 24 de janeiro o alvo escolhido foi a produção brasileira de açúcar e álcool. O canal norte-americano Bloomberg Television tratou da produção brasileira de etanol, mostrando-a, nada mais, nada menos, como generalizado fruto de trabalho subumano. Deadly Brew: The Human Toll of Ethanol, ou seja, Mistura Mortal: O Custo Humano do Etanol foram o título e a forma escolhidos para estigmatizar, numa extensa reportagem, a produção brasileira de etanol. Uma reportagem que, declaradamente, deveria tratar das vantagens e das desvantagens econômicas desse produto, como fonte de energia renovável, revelou inusitada tendenciosidade, ao focar e dar destaque de forma desproporcional a situações episódicas, propositalmente pinçadas com extremo zelo e casuísmo, relacionadas ao trabalho de corte da cana. A matéria foi tão tendenciosa que chegou a conter a declaração de que os carros no Brasil seriam ' movidos a sangue humano'.
O presidente da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), Marcos Jank, entidade que representa mais da metade da produção brasileira de açúcar e de etanol, repudiou de pronto o que foi divulgado pela Bloomberg em seu programa televisivo, contestando o caráter incompleto da pesquisa jornalística que teria servido de base para a matéria, identificada como sensacionalista, e convidou o diretor-executivo da Bloomberg, Michel Clancy, para visitar a instituição, assim como as plantações e as usinas dos seus associados, certamente na esperança de que tudo seja esclarecido e de mostrar que os dados apresentados na matéria resultaram apenas, e tão-somente, de um erro de avaliação do canal de TV.
Com o preço do petróleo a US$ 100 e com as candentes questões ambientais decorrentes do seu uso, a reconhecida capacidade do Brasil na produção e na exportação de energia renovável a partir do etanol, originário da cana-de-açúcar, a um custo muito inferior ao dos demais produtores mundiais, em especial daqueles localizados em países com alto nível de consumo, como os Estado Unidos, em que o etanol de milho é incomparavelmente mais caro que o etanol de cana brasileiro, não é de estranhar mais essa tentativa de desqualificar o produto brasileiro aos olhos dos seus potenciais consumidores.
Da nossa parte, como brasileiros, seria mesmo ingenuidade imaginar que pudéssemos passar sem ataques desse tipo, muito bem orquestrados pelos nossos adversários, nessa guerra comercial por eles já declarada. O que chama a atenção, neste caso, é que os detratores da produção brasileira de etanol puderam contar, para isso, com declarações de algumas de nossas próprias autoridades, que serviram de instrumento a essa tentativa de denegrir pública e internacionalmente a imagem do País.
Em razão disso é bom lembrar que é fato que os entendidos divergem a respeito dos rumos da economia mundial e da profundidade da crise dos mercados financeiros, mas não parece haver divergência quanto a achar a economia brasileira fortemente lastreada na atividade agroindustrial, aqui realizada com exemplar competência, e nas exportações de suas commodities. Seria, portanto, muito importante que, sem esquecer da necessidade de fazer a lição de casa para corrigir nossas deficiências verdadeiras, as autoridades brasileiras levassem em conta as conseqüências de declarações ingênuas e de atitudes pouco sensatas que possam vir a ajudar nossos adversários comerciais em sua guerra contra nossa agroindústria exportadora.
*Onofre Carlos de Arruda Sampaio é advogado em São Paulo
(
O Estado de São Paulo, 13/02/2008)