No noticiário sobre o projeto que anistiaria os responsáveis pelo desmatamento de 220 mil quilômetros quadrados na Amazônia, a edição de domingo (10/02) deste jornal (O Estado de São Paulo) traz duas matérias conexas que ajudam a entender por que o Estado brasileiro não consegue controlar uma área equivalente a nada menos de 2/3 do território. A falência, no caso, é múltipla: política, legislativa e de governança. A evidente escassez de meios para que o poder público afirme a sua autoridade sobre essa imensidão é apenas parte da história. As coisas ali não seriam o que são - ou nem tanto -, tivesse a burocracia estatal se livrado dos seus vícios crônicos, dos quais não se sabe qual o pior: a incompetência, o desleixo ou ainda a descontinuidade administrativa. O que acontece na Amazônia, aliás, não difere, na sua essência, do que se verifica numa ampla variedade de setores da administração pública brasileira, justificando a avaliação de que o governo central, quanto mais cresce, mais flácido se torna.
Uma das matérias citadas no início deste editorial refere-se ao caso, aparentemente de pouca importância, mas na realidade de importância fundamental para que se entenda como Brasília funciona (?), do Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA). Inaugurado em 2002, no último ano, portanto, do governo Fernando Henrique, seus 25 laboratórios ocupam uma edificação imponente de 12 mil metros quadrados. Ali trabalham desde a inauguração 86 pessoas, a maioria voltada para a atividade-fim da instituição - a pesquisa para o aproveitamento dos recursos naturais da região. Em menos de dois anos, a contar de 2006, quando o CBA deslanchou, graças aos recursos dos fundos setoriais que o Ministério da Ciência e Tecnologia lhe repassou, o centro tem cinco produtos prontos para serem patenteados, entre cosméticos, refrigerantes e reagentes químicos para tintas. Mas as patentes não podem ser registradas por causa de uma situação aberrante: juridicamente, o CBA não existe. E não existe porque o governo federal ainda não decidiu se deve ser uma fundação, ou um departamento ministerial ou uma autarquia.
A anomalia levou o governador do Amazonas, Eduardo Braga, a pedir ''''pelo amor de Deus'''' ao titular da Secretaria de Longo Prazo, Roberto Mangabeira Unger, o chamado ministro do futuro, que o ajudasse a desatar o nó que a burocracia do Planalto não se empenha em desfazer, em vez de delirar, por exemplo, com o aqueduto para transporte de águas amazônicas para o Nordeste. O desesperado apelo do governador começou a surtir efeito - à maneira brasiliense, bem entendido. Agora em janeiro, o presidente Lula criou um comitê interministerial (mais um, mais um...), formado, como sempre, por seis ministérios, para ''''deliberar sobre as diretrizes e prioridades do plano estratégico do CBA, bem como monitorar a execução das tarefas do seu plano de trabalho''''. O decreto, no entanto, passa ao largo do vácuo jurídico em que se encontra o centro. O Ministério do Desenvolvimento, que coordena o comitê, promete que a situação será resolvida ''''em breve'''' - a julgar pelo retrospecto, o equivalente planaltino ao conhecido ahorita mismo dos mexicanos.
A outra matéria publicada domingo, que põe em evidência os limites da atuação do Estado na Amazônia, trata da precariedade da legislação que limita a 20% a área desmatável das propriedades cuja cobertura seja constituída de flora típica da região (artigo 14 do Código Florestal). Esse limite foi fixado - em 1996 - por medida provisória (MP) do então presidente Fernando Henrique. Nos cinco anos e sete meses seguintes, o governo evitou que a MP fosse votada, para impedir que, sob pressão da bancada ruralista, a Câmara a modificasse. E mês a mês, 67 ao todo, a norma foi reeditada. Depois, a partir da decisão do Congresso de invalidar as MPs não votadas em 120 dias, a do Código Florestal, em companhia de 54 outras, foi parar num limbo legislativo: vale enquanto os políticos não resolverem o que fazer com ela. Enquanto isso, contribuindo para a confusão, o Senado aprovou um projeto que altera o Código Florestal de modo a autorizar a recuperação de áreas verdes degradadas com o plantio de palmeiras e coqueiros. Na Câmara, a proposta original deu lugar a um substitutivo, ainda não votado, que simplesmente desobriga os proprietários de recuperar as áreas desmatadas, desde que compensem o estrago em outras terras. É o chamado projeto da ''''floresta zero'''', que continuará sendo implantado pelos desmatadores, com ou sem anistia.
(Editorial de
O Estado de São Paulo, 12/02)