Valdelice Verón lamenta até agora não ter acompanhado seu pai, mas ele lhe ordenou que fosse à cidade. Pela manhã, naquele domingo 12 de janeiro de 2003, sua filha alertou: “Mãe, olha o vovô na televisão”. Era a notícia de que seu pai estava gravemente ferido em um hospital. Brutalmente golpeado, Marcos Verón morreu no dia seguinte no hospital de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Seu sobrinho sobreviveu com um tiro na perna. Os acusados da agressão respondem ao processo em liberdade.
Marcos, de 70 anos, liderou nessa ocasião a segunda tentativa de recuperar uma área que considerava terra guarani, porque ali viveram seus antepassados e sua tia foi “queimada viva m 1953”. Em 2001, seu grupo tampouco conseguira manter-se na fazenda, no município de Juti, mas o líder não suportou ver sua gente acampada às margens da estrada com “desnutrição e água suja” e encabeçou a nova “retomada”, lembra sua filha.
Nessas terras localizadas no sul do Estado, na fronteira com o Paraguai, também no ano passado foram mortos a tiros Julite Lopes, de 74 anos, e Ortiz Lopes, durante três tentativas de recuperar a terra que os guaranis denominam Kurusú Ambá. Vários indígenas foram feridos e outros presos, insolitamente acusados de dispararem contra seus próprios parentes. Estas mortes refletem os numerosos conflitos agrários entre indígenas e fazendeiros, embora sejam minoria no total de assassinato de nativos, que aumentaram muito nos últimos anos. A maioria devido à violência interna nas aldeias, especialmente no Mato Grosso do Sul.
Dos 81 indígenas brasileiros mortos no ano passado, segundo o Conselho Indigenista Missionário e ainda sob revisão, 53 eram desse Estado, onde as etnias autóctones somam uma população estimada em 65 mil pessoas, a maioria guaranis. Em 2006, foram 48 nativos mortos, sendo 20 guaranis.
A morte cotidiana
Diante desta dramática realidade, a seção estadual da Ordem dos Advogados do Brasil promoveu a campanha “Respeite o indígena, genocídio não”. “Temos uma posição: estamos ao lado dos indígenas”, afirmou seu presidente, Fábio Trad. Ao lançar a campanha no dia 18 de janeiro em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Não é uma posição consensual, porque há mais advogados defendendo fazendeiros do que indígenas nos conflitos que se intensificaram nas duas ultimas décadas, diante das retomadas nas disputas por terras e em casos criminosos.
O número de mortos se acentua no Parque Indígena de Dourados, uma área de 3.561 hectares espremida entre a cidade de Dourados e extensas plantações de soja. Ali vivem cerca de 12 mil indígenas, a maioria guaranis do grupo kaiwoá. Em 2007, foram assassinados pelo menos 21, um índice de 175 para cada cem mil habitantes, sete vezes superior à média nacional.
Além disso, nesse lugar se registram mais suicídios de adolescentes do que em outras zonas do País, uma tragédia que atrai especial atenção desde o começo da década passada. Nos últimos anos também houve crise de desnutrição com muitas mortes de crianças e a morte se tornou cotidiana. São “indígenas matando indígenas”, grande parte com facões, usados na colheita da cana. Vítimas e autores são majoritariamente jovens. A razão de tanta violência é a terra limitada – 0,3 hectares por pessoa – que configura um confinamento, segundo os antropólogos.
“Os indígenas não estão preparados para tão pouca terra”, disse à IPS Anastácio Peralta, coordenador de Políticas Públicas na Questão Indígena da Prefeitura de Dourados. Há muitos outros fatores que geram violência, entre eles “o álcool, as drogas, a prostituição”, além da perda da cultura tradicional por parte dos jovens e muita influência externa, especialmente pela televisão, acrescentou Peralta, um kaiwoá que andou “desmatando” em fazendas e trabalhou no transporte de cargas e na indústria madeireira, antes de voltar, em 1994, a “convite de parentes”.
“O problema é a bebida e agora começa a entrar a droga; sem essas coisas o indígena não briga”, resume Renato Souza, o “capitão” da aldeia Jaguapiru, que compartilha o Parque Indígena de Dourados com a aldeia Bororo. “Capitão” é um cargo criado pelo órgão indigenista oficial para regulamentar as relações de cada aldeia com a sociedade vizinha, especialmente com o governo, embora ultimamente tenha perdido autoridade e reconhecimento. “Mas a comunidade me reconhece”, afirmou Souza, eleito por sua aldeia.
Os suicídios de devem à “falta de terra e de trabalho”, mas também ao “abandono da cultura tradicional”, disse Jorge da Silva, “rezador” (líder religioso) que construiu uma grande casa de reza onde recebe sua gente para batismo de crianças, do milho e da terra, com utensílios típicos. “Resgatar a cultura guarani” é a solução para que as crianças “não sigam outro caminho” equivocado, porque além do mais as aldeias foram invadidas por “igrejas de fora”, disse referindo-se às religiões pentecostais de forte atuação em Dourados e em outras terras indígenas.
A violência dentro das aldeias é “o problema mais grave” entre os guaranis, disse Antonio Brand, historiador professor da Universidade Católica Don Bosco dedicado a investigar e promover a educação indigna. A fome se soluciona com a distribuição de alimentos, como está se fazendo com as cestas básicas do governo. Mas a violência que afeta a organização interna complexa das aldeias leva a um “beco sem saída”, ao incrementar tensão e desejos de vingança diante de cada morte, explicou. ‘A causa original é o confinamento”, acrescentou.
Como deixam de lado seus líderes e recorrem à polícia, atualmente há “uma quantidade impressionante de indígenas presos”, destacou Brand, apontando outro tipo de violência que sofrem os guaranis, especialmente os do grupo kaiwoá.
Discriminação e cárcere
No Mato Grosso do Sul há “quase 500 indígenas presos”, disse à IPS Wilton Matos, que vive na aldeia Jaguapiru. Filho de “pai guarani e mãe terena”, dirige a Comissão de Assuntos Indígenas criada pela OAB desse Estado para cuidar dos direitos nativos na área judicial e nas prisões. “A violência interna nas aldeias se deve ao desespero e ao protesto”, disse. Os indígenas são presos por discriminação e muitos são acusados de estupro, porque é mais fácil culpá-los de um “crime sem testemunha”. Quando falha, são acusados de “atentado violento ao pudor’, menos grave, mas castigado com a mesma pena, acrescentou.
Muitas vezes se transformam em réus confessos porque “quando não compreende uma pergunta os kaiwoá a respondem afirmativamente”, situação comum para a maioria que usa quase que exclusivamente sua língua e conhece pouco ou nada do português, acrescentou. Depois de falar à IPS, Matos teve de socorrer um kaiwoá preso pelo roubo de um cavalo. Denunciado por um branco, ao ser interrogado pela polícia deu versões confusas sobre a origem do cavalo. O delegado então entregou o animal ao acusador em custódia temporária.
Na noite, o indígena foi à casa do branco, levou o cavalo e acabou preso. Matos discutiu com o delegado por não ter explicado o significado de “custódia”, à qual o acusado tinha direito e este interpretou a decisão como definitiva e simplesmente tratou de recuperar o que considerava legitimamente seu. Após esclarecer o conceito provisório de custódia com o indígena, o advogado conseguiu sua liberdade. As prisões arbirtrárias e a violação dos direitos indígenas ao confiná-los com os demais presos são comuns no estado, segundo matos, cuja vida exemplifica as dificuldads de seu povo.
Cortador de cana desde os 13 anos, foi alcoólatra durante 14 anos e deixou o vício há apenas quatro. Pôde concluir o ensino básico e entrar na universidade apenas depois de se converter em apresentador de rádio com excelente audiência em Dourados, aos 37 anos, 10 anos atrás. São poucos os advogados indígenas e menos ainda os que se dedicam à causa de seu povo, lamentou. Mas a situação está mudando. Dos 500 estudantes universitários aborígens no mato Grosso do Sul, estima-se que 180 estudam Direito, boa parte interessada em defender os direitos de seus parentes.
(Por Mario Osava, IPS, 12/02/2008)