Muitos nunca pararam para pensar, mas aquele pássaro silvestre a venda numa pet shop pode representar uma pequena ponta de um mercado ilegal que é o terceiro em movimentação de dinheiro no mundo, atrás somente do de drogas e armas: o tráfico de animais silvestres. E o Brasil, país detentor de uma das maiores biodiversidades do planeta, infelizmente tem um papel de destaque neste mercado.
Segundo levantamento oficial feito pelo Ministério do Meio Ambiente e pela ONG Renctas (Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres), estima-se que cerca de 38 milhões de animais são retirados de ecossistemas brasileiros a cada ano para alimentar a demanda do tráfico. O destino desses animais – ou de pelo menos parte deles, já que se sabe que apenas um entre 10 animais sobrevive ao transporte até o destino final – é abastecer o mercado externo (principalmente Europa e Estados Unidos) de colecionadores de pets exóticos e também o mercado interno, virando mercadoria a venda em feiras ou “criadouros registrados de fachada.”
Aproximadamente metade dos animais capturados ilegalmente no Brasil, a maioria pássaros, vão para o mercado externo. Também se estima que o país é responsável por cerca de 15% do mercado ilegal de animais silvestres no mundo, tendo 400 quadrilhas organizadas realizando a captura e tráfico - sendo que 40% possuiriam ligações com outras atividades ilegais.
Devido à falta de informação e maiores esclarecimentos, algumas pessoas acabam adquirindo animais silvestres no impulso de ter um “bicho diferente em casa”, achando, erroneamente, que eles são como gatos e cachorros. E também não se dão conta que este consumo sustenta toda uma rede de ilegalidade.
“O principal desafio do trabalho de combate ao tráfico de animais silvestres no Brasil é a educação ambiental. Acreditamos que a situação esteja muito melhor hoje do que há alguns anos, pois as campanhas educativas têm contribuído muito nos esforços de conscientização. Hoje a sociedade denuncia mais e podemos afirmar que os traficantes não atuam mais com a facilidade de antes”, afirma Dener Giovanini, coordenador geral da Renctas, que trabalha no combate ao mercado ilegal no Brasil desde 1999.
Lugar de animal silvestre é na natureza
Giovanini ressalta o importantíssimo papel da população em não adquirir animais silvestres e denunciar situações testemunhadas de comércio irregular dos mesmos. E complementando essa visão mais crítica, vale a pena refletir um pouco sobre as implicações de conservação e bem-estar animal e as questões éticas por trás do comércio de animais silvestres.
Uma primeira questão a ser pensada é o fato de animais silvestres não serem animais de companhia (os chamados pets). Araras, sagüis, micos, algumas espécies de papagaio e outros pássaros, por exemplo, não passaram pelo processo de domesticação de gatos e cachorros para se adaptarem ao “estilo de vida humanizado”. Ou seja, seu lugar não é em um apartamento ou em uma casa na companhia de adultos e crianças, mas sim na natureza.
O homem levou cerca de 10 mil anos para domesticar cachorros e cinco mil anos para os gatos e hoje estes são classificados como animais de companhia devido a este histórico de compatibilidade com o meio ambiente do homem. Mas mesmo assim muitos cachorros e gatos ainda enfrentam problemas de bem-estar devido à falta de informação por parte de seus donos em relação às demandas e características de seu comportamento e fisiologia. E este desconhecimento pode resultar em problemas de comportamento do animal ou até o seu abandono, agravando o cenário do crescente número de animais abandonados nas ruas e em abrigos.
A criação de animais silvestres sem a devida informação especializada pode resultar em problemas de bem-estar e sofrimento do animal, que, além de estar fora de seu habitat natural, pode não ter todas as suas necessidades atendidas. Vale também ressaltar que a captura ilegal da natureza já é apontada como uma das principais causas da ameaça de extinção enfrentada por algumas espécies brasileiras. É o caso, por exemplo, da ararajuba (ave) e do sagüi-de-duas-cores (primata), animais da Amazônia classificados respectivamente como ameaçado e criticamente ameaçado na lista vermelha da IUCN (World Conservation Union) e comumente comercializados de forma ilegal.
Lista oficial de pets exóticos
Atualmente no Brasil qualquer pessoa pode ter um animal silvestre como pet desde que o animal seja adquirido de um criadouro registrado (Lei 5.197/67 e Portarias 117/97, 118/97 e 102/98). Mas a prática de criar e comercializar animais silvestres como pet com uma regulamentação mais específica voltou à pauta de discussão entre ambientalistas e defensores de animais nos últimos meses.
Em setembro o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) aprovou uma resolução que define os critérios para produção de uma lista de animais silvestres brasileiros que poderão ser criados e comercializados como animais de estimação. Desde então o Ibama vem trabalhando na elaboração da lista, que deve ser divulgada para aprovação pública ainda no primeiro semestre de 2008. Entre os critérios utilizados estão o significativo potencial de riscos à saúde animal ou ao equilíbrio das populações naturais, os riscos à saúde humana e a condição de bem-estar e adaptabilidade da espécie para a situação de cativeiro como animal de companhia.
Mas a iminente mudança na lei no Brasil poderia ser uma barreira para o controle de possível impacto no aumento da demanda/consumo dos animais? A resposta é: sim e não.
A resposta é positivo quando se analisa que a resolução do Conama foi aprovada com o intuito de regulamentar o especificamente o artigo 6 da Lei n. 5197, de 1967, que diz que o Poder Público estimulará criadouro de animais silvestres para fins econômicos e industrias (leia-se, pele e couros). A intenção da resolução é atualizar a lei para o mercado de pets, estabelecendo critérios específicos e eliminando brechas decorrentes de seu conteúdo genérico atual.
A intenção pode até ser boa, mas a (triste) realidade brasileira no que diz respeito ao controle do comércio de animais silvestres nos leva para a parte negativa da resposta.
“Ainda não é possível prever com exatidão quais serão as conseqüências desta nova regulamentação. Porém creio que se os mecanismos de controle e fiscalização não forem reforçados para atender a demanda que essa resolução trará, os riscos são grandes. Se os critérios estabelecidos não forem respeitados poderá existir um aumento no tráfico e, inclusive, desequilíbrios ambientais ocasionados pela introdução indevida de espécies na natureza”, ressalta Giovanini, da Renctas.
E a visão da ONG é compartilhada pelo próprio Governo. “O comércio de animais silvestres não tem se mostrado como uma solução para o tráfico. Pelo contrário, muitas vezes os criadouros e comerciantes podem servir de fachada para a atividade ilegal, ou são seus principais fomentadores”, explica Vincent Kurt Lo, analista ambiental do Ibama SP. “Além disso, enfrentamos problemas de controle com o limitado quadro de servidores e parcos recursos, não dando conta de todas as fiscalizações e verificações em campo necessárias.”
Segundo Vincent, a lista de animais é válida ser for extremamente limitada e específica, permitindo a comercialização de poucas espécies silvestres como pets. Em vez de encorajar que as pessoas levem animais para casa, o analista acredita que o ideal é incentivar que as pessoas vão até à natureza somente para observá-los.
O assunto é tão controverso que a própria Divisão de Fiscalização de Fauna (Difau) do Ibama, que está elaborando a lista e coordena o trabalho de fiscalização do comércio de animais silvestres no Brasil, alerta sobre as implicações negativas do incentivo de “pets selvagens” (ver box), entre eles o abandono do animal pelo proprietário que não consegue prover todos os cuidados necessários.
A soltura de um animal silvestre num ecossistema que não é o seu habitat natural pode gerar sérios problemas ecológicos. Na portaria 117, de 1997, o Ibama define que o comerciante, criadouro ou importador deve fornecer aos compradores de animais de estimação um texto com orientações básicas sobre os cuidados básicos com a espécie e a recomendação da não devolução dos animais à natureza sem o expresso consentimento da área técnica do instituto.
Mas novamente se esbarra no problema do limite da fiscalização e dos recursos utilizados, que limitam o controle. Além disso, animais provenientes de criadouros comerciais licenciados são marcados e controlados com microchips e anilhas e estes são facilmente falsificados pela indústria do tráfico. A solução seria a verificação através de teste de DNA, o que ainda não é aplicado pelo Governo Brasileiro.
Diante de tantas implicações e questionamentos, a única certeza em torno do mercado de animais silvestres é a de que ele não deveria existir. A tentativa de oficializar o comércio pode visar um maior controle, mas o fato é que lugar de animal silvestre é na natureza. A captura do mesmo pelo homem para ser um pet é apenas um ato de capricho, passando longe da necessidade e do princípio ético de que toda vida deve ser respeitada.
Mudança na lei inglesa pode incentivar o tráfico
Em outubro o Governo Britânico divulgou uma notícia que vai de encontro aos esforços de combate ao tráfico de animais silvestres. Depois de alguns meses de avaliação, definiu-se que 33 animais silvestres, totalizando 122 espécies, não eram mais tão perigosos a ponto de necessitarem de licença para serem comprados como animais de estimação por qualquer pessoa que assim desejasse.
Na prática isso significa que qualquer cidadão inglês pode ir a uma pet shop e comprar sagüis, micos, lemurs, gatos híbridos e até bichos preguiça sem qualquer espécie de controle. O governo se defende das críticas na mudança na Lei de Animais Silvestres Perigosos (Dangerous Wild Animals Act, em inglês) afirmando que o critério seguido foi apenas o do quanto os animais são perigosos para o homem. Questões de bem-estar animal e conservação seriam assuntos tratados por outras leis, como a de Bem-Estar Animal (Animal Welfare Act) e a CITES (Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora).
“Muitos animais silvestres podem até não ser propriamente perigosos para o homem, mas todos são extremamente difíceis de serem criados e precisam de cuidados de especialistas. Estamos muito desapontados e preocupados com a remoção desse grande número de espécies da lista”, diz Tim Thomas, cientista sênior do Departamento de Vida Selvagem da ONG inglesa RSPCA (Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals), referência no país em trabalhos de defesa de direitos dos animais.
Considerando que 30% dos animais que não precisam mais de licença, segundo a lei inglesa, são considerados ameaçados de extinção pela Red List e que 36% deles são originados da América do Sul, incluindo o Brasil, não é exagero fazer uma análise sobre as possíveis conseqüências que mudanças na lei de um país que “compra” os animais teriam em um dos países de origem dos mesmos.
“Esta mudança na Inglaterra pode ter uma forte influência no crescimento da demanda de animais silvestres dos países tropicais, consequentemente aumentando o tráfico. Animais como bicho preguiça e macaco de cheiro, por exemplo, não precisam mais de licença e isso pode gerar uma corrida para retirada de mais animais das florestas brasileiras, dificultando ainda mais o controle do tráfico”, alerta Vincent Kurt Lo, do Ibama SP.
Para denunciar o tráfico de animais:
Ibama – Linha Verde (todo o país) 0800 618080
(Por Jaqueline B. Ramos*, Eco Agência, 31/02/2008)
* A autora assina o blog Ambiente-se: http://www.ambientese.blogspot.com.