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2008-01-30

Desde que os muros de seu antigo presídio foram ao chão, em 1994, Ilha Grande não é mais a mesma. O pedaço de terra ao sul do estado do Rio de Janeiro, na Baía da Ilha Grande, passou a receber um número de visitantes muito além de sua vocação turística. O resultado foi o já conhecido em situações desse tipo: lixo e esgoto integrados à paisagem natural. Depois de muita pressão popular, em 20 de janeiro de 2002, o então Ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, aportou com sua trupe na Vila do Abraão levando nas mãos um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Assinado pelas esferas municipal, estadual e federal, o documento seria a solução para os desvios ambientais da ilha. Seria.

Passaram-se seis anos desde que Sarney Filho pisou na principal praia de Ilha Grande. Mudaram ministros, governadores, secretários. Mas o cenário de descaso permaneceu o mesmo. “Um ano era o prazo máximo dado pelo TAC para que os projetos estivessem prontos e as obras iniciadas. O termo acabou de completar seis anos e nada aconteceu em relação a esgoto e lixo”, lamenta o engenheiro Alexandre de Oliveira e Silva, que preside o Comitê de Defesa da Ilha Grande (Codig).

Apesar de ficar responsável por botar no papel os projetos de saneamento, gestão de resíduos e recuperação de áreas degradadas na ilha, a prefeitura de Angra dos Reis sequer demonstra intimidade com o assunto. Procurada pela reportagem, a secretaria de Meio Ambiente resistiu como pôde para responder às perguntas sobre o TAC. A justificativa estava na ponta da língua: tanto o secretário como o subsecretário haviam acabado de assumir a pasta. Normal, não fosse esta a quinta troca de cargo pela qual a secretaria passa desde o início do primeiro mandato do prefeito Fernando Jordão, iniciado em 2001.

“Nesses seis anos, a prefeitura esboçava apresentar os projetos, mas eles acabavam perdidos nos escaninhos oficiais. Vez ou outra, anunciava no jornal que tinha conseguido verba para o saneamento, mas nada andava”, recorda Oliveira e Silva, acrescentando que a estratégia adotada pelo executivo municipal para se eximir da culpa é atirar para os lados. “Eles dizem que o projeto está pronto e colocam a culpa na Feema, que não o aprovou, no Ministério do Meio Ambiente (MMA), que não soltou o dinheiro, no governo do estado”.

Mesmo estando na linha de tiro, o MMA não soube falar sobre o assunto. A assessoria do ministério tentou, por uma semana, puxar da memória os compromissos que tinha assumido no TAC, mas não teve sucesso. As obrigações, no entanto, não tinham nada de complexo: era meter a mão no bolso e liberar o 1,5 milhão de reais prometido para que a prefeitura tocasse o plano de gestão de resíduos e recuperação de áreas degradadas.

No improviso

Já que a amnésia é geral no poder público, a população de Ilha Grande vai se virando como pode. Depois de terem fechado no peito, em 2001, um lixão totalmente irregular no território da ilha, os resíduos produzidos pelos moradores e turistas tiveram de receber outro destino. As autoridades municipais resolveram, então, alugar uma traineira comum para recolher diariamente os detritos. Num improviso irresponsável, o barquinho segue até Angra dos Reis abarrotado.

“A questão do lixo está pessimamente gerenciada. O sistema inteiro é um problema”, denuncia o biólogo Paulo Bidegain, superintendente de Biodiversidade da Secretaria Estadual do Ambiente (SEA). “A barca sai lotada de sacos de lixo e eles acabam caindo no meio da baía”. A imagem descrita por Bidegain, que tem coordenado trabalhos de reestruturação do Parque da Ilha Grande, é comum de ser vista. “Não é raro ver um monte de saco preto caindo pelo mar durante o trajeto do barco”, diz o presidente do Codig.

Enquanto a montanha de lixo é empurrada para o lado de lá do continente, o antigo depósito irregular continua com a sujeira enterrada, representando um perigo oculto. “Uma das obrigações da prefeitura no TAC era recuperar a área degradada pelo lixão. Também não fizeram nada. O mato cobriu, mas o lixo continua ali, debaixo da terra, com riscos de contaminar o lençol freático”, alerta Alexandre de Oliveira.

O outro problema que mais aflige a população da ilha também está debaixo dos pés dos moradores. Com cerca de seis mil pessoas distribuídas pelas 106 praias, a Ilha Grande conta com apenas uma estação de coleta e tratamento de esgoto, na Vila do Abraão. Construída há mais de dez anos, quando o local ainda era privilégio de poucos, ela não dá mais conta dos milhares de turistas que chegam nas barcas a cada fim de semana.

“O sistema está precário para as condições atuais da ilha, que está se urbanizando numa velocidade muito rápida”, afirma Carlos Abenza, ex-secretário de saneamento de Angra e atual diretor de obras da Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla). Os moradores reclamam do mau cheiro nos arredores da estação, e não se surpreendem mais quando surge alguma língua negra no meio das praias. “Hoje, o que tem lá não dá conta. É preciso aumentar a estação”, constata Abenza.

Pelo texto do TAC, a prefeitura tinha quatro meses para apresentar um plano de implantação de sistemas de saneamento “em áreas com concentração populacional” da ilha. Ou seja, em maio de 2002, a papelada deveria estar pronta para iniciar as licitações e espalhar os canteiros de obra por Abraão, Palmas, Longa, Bananal, Araçatiba, Provetá, Praia Vermelha, Saco do Céu, Aventureiro e Dois Rios. Até hoje, nem um grão de areia saiu do lugar.

Novas promessas

Uma vez que o município e o governo federal não se coçavam, restava um fio de esperança no estado. Enquanto era comandado pela dupla Garotinho, o governo fluminense também não virou os olhos para a Ilha Grande. Apenas com a entrada de Carlos Minc na Secretaria Estadual do Ambiente (SEA), em 2007, a coisa aparentemente começou a andar. “Agora, o governo do estado resolveu pegar uma verba do Fecam (Fundo Estadual de Conservação Ambiental) para o saneamento”, conta o presidente do Codig. “Mas não sei em que projeto vão aplicar”, ironiza, referindo-se à morosidade da prefeitura.

De fato, a SEA destacou, em meados do ano passado, R$ 4 milhões do Fecam para aplicar em novos sistemas de saneamento da Ilha Grande. Segundo o diretor da Serla, que está supervisionando a empreitada, o início das obras não será mais empurrado com a barriga: “A prefeitura já mandou os projetos. Logo depois do carnaval já devemos botar os editais para licitação na rua”. Carlos Abenza admite, porém, que os documentos entregues pela equipe municipal não estão concluídos. “Ainda há alguns ajustes para se fazer, faltam alguns dados. Vários projetos têm complementos para serem feitos”.

Ele adianta que das dez praias que estavam programadas pelo TAC para receber estações de tratamento próprias, apenas quatro serão contempladas: Araçatiba, Provetá, Saco do Céu e Abraão, com a duplicação do sistema atual. “A contrapartida do município vai ser de R$ 800 mil para a estação do Abraão”, explica.

Paralelamente ao trabalho da Serla, a Superintendência de Biodiversidade da SEA também começa a esboçar, mesmo que tardiamente, um plano para ordenar a entrada desenfreada de visitantes na ilha. O coordenador Paulo Bidegain justifica o atraso da discussão pela falta de informações consistentes sobre a região. “Não existia mapa em escala adequada para se discutir a capacidade de carga. Não queríamos fazer as coisas no 'achismo'”, comenta.

Ele diz que o mapeamento já está em andamento, e que em três meses a secretaria vai chamar a comunidade e a prefeitura para debater a ocupação. “Com base nos novos mapas, vamos discutir praia a praia. Não adianta discutir uma capacidade para a ilha como um todo. Tem que ser caso a caso. Vamos limitar pelo número de barcos. Mas isso não se resolve da noite para o dia, tem que estudar”, afirma, acrescentando que a Ilha Grande vai passar a contar com uma equipe fixa de 47 pessoas, incluindo bombeiros e guarda-parques, para colaborar na fiscalização e orientação de turistas.

Brecha

Se o poder público não se mexe nem com determinações explícitas, qualquer brecha no TAC poderia dificultar ainda mais as medidas voltadas para a Ilha Grande. E foi o que aconteceu. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), um dos signatários do termo, recebeu a função de dar um jeito nos escombros do antigo presídio espalhados pela ilha. Fez direitinho seu papel, e apresentou o projeto do Ecomuseu, que pretende aproveitar as ruínas para contar a história da região. O documento, porém, não determina quem deve assinar o cheque para viabilizar as obras.

“O TAC não definiu de onde sairia a verba. Temos tido muita dificuldade de captação de recursos”, lamenta a professora responsável, Myrian Sepúlveda dos Santos, que está tendo que se virar para arranjar patrocinadores. “O projeto todo está orçado em R$ 3,5 milhões, e o que conseguimos de concreto até agora foi R$ 190 mil da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). A Turisangra (Fundação de Turismo de Angra dos Reis, ligada à prefeitura) comprometeu-se com R$ 150 mil, mas até agora, nada”.

Por telefone, a Fundação confirmou que o dinheiro está separado, e assegurou que logo após a conclusão da licitação o valor será liberado. Mesmo assim, Myrian se diz preocupada com os mais de R$ 3 milhões que ainda vão faltar. Segundo ela, a primeira fase das obras – incluindo um centro de recepção em Abraão e o Museu do Cárcere, que vai contar a história dos presídios - deve ficar pronta em três meses após o resultado da licitação. “Espero que a abertura do primeiro módulo dê maior visibilidade ao projeto”.

Apesar da série de descasos por parte das autoridades, no aniversário do TAC da Ilha Grande não há espaço para lamúrias. Poucos se lembram de sua existência., mas basta ler a cláusula sexta do termo e fica claro que o descumprimento das obrigações pelas partes signatárias – Prefeitura de Angra, Ministério do Meio Ambiente etc – obriga ao pagamento de multa por dias corridos. Somados os quase dois mil dias passados desde a festiva apresentação do TAC, na Vila do Abraão, muita gente teria que desembolsar cerca de 10 milhões de reais por punição. Está na hora de botar a mão no bolso.

(Bernardo Camara, O Eco, 30/01/2008)

 


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