A arqueóloga Niède Guidon, responsável pelo Parque Nacional da Serra das Capivaras, no Piauí, diz que o local poderá ser fechado no próximo dia 31 por falta de verba para pagar funcionários O Parque Nacional da Serra da Capivara, localizado a 540 quilômetros de Teresina (PI), é conhecido mundialmente por abrigar a maior quantidade de pinturas rupestres (feitas pelos ancestrais do homem em cavernas) das Américas. Além de sua riqueza arqueológica, é também uma das poucas reservas florestais preservadas no país, além de ser importante pólo de turismo.
Todo esse patrimônio, no entanto, poderá ficar em risco a partir do fim deste mês, data em que expira o aviso prévio de 62 dos 84 funcionários da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) que restaram para guardar toda a área do parque, mais de 240 quilômetros de perímetro, ou 140 mil hectares.
Aos 74 anos, a arqueóloga francesa Niède Guidon, com 34 anos de pesquisas na região, chegou ontem (28) a Brasília para pedir ao governo que não deixe as “portas” do parque fecharem. Ela afirma que a situação é caótica, e que o 13º salário dos funcionários foi pago com um empréstimo pessoal que fez.
Nesta semana, ela tentará uma audiência com os ministros Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil, Gilberto Gil, da Cultura, e Marina Silva, do Meio Ambiente, para pedir ajuda. A Agência Brasil tentou, nessa segunda-feira, ouvir os ministérios, mas ainda não obteve retorno.
ABr: Qual é a atual situação do Parque Nacional da Serra da Capivara?
Niède: Nós estamos tendo que demitir os últimos funcionários. Nós tínhamos 270, hoje temos 84, dos quais 62 já estão com aviso prévio para o dia 31 de janeiro. O parque tem 28 guaritas, todas elas tinham funcionários para fazer a vigilância, impedir caçadores, incêndios, e agora nós já estamos há cinco meses com 20 guaritas fechadas e vamos ter que fechar as últimas oito.
ABr: E o que isso significa?
Niède: Isso significa que todo este imenso patrimônio brasileiro, não só a parte arqueológica, o sítio, as pinturas, que são patrimônio da humanidade, mas tudo o que foi construído lá dentro, cerca de US$ 15 milhões, as guaritas todas, elas mobiliadas com sistema de rádio, mais de 400 quilômetros de estradas mantidas, 128 sítios com todo o sistema para permitir a visitação, com passarelas, com tudo, vão ficar completamente sem manutenção, sem proteção.
ABr: Há quanto tempo começou a faltar dinheiro para a manutenção do parque?
Niède: Essa situação de dificuldade começou há dois anos e só faz piorar a cada dia. Quem está nos salvando atualmente são doações da Petrobras, mas para ela poder nos fazer doações nós temos que ter autorização do Ministério da Cultura. E, infelizmente a burocracia é imensa, tem que estar pedindo a renovação dessa autorização, nós pedimos em março de 2007 e até hoje não foi publicada, então a Petrobras tem recursos para nos passar e não pode.
ABr: De quanto foi o último repasse da Petrobras?
Niède: A Petrobras nos repassou, em dezembro de 2006, cerca de R$ 1,2 milhão, mas isso não foi suficiente para manter os 270 funcionários. Então, nós tivemos que ir despedindo e agora, como não saiu a autorização do Ministério da Cultura, a Petrobras não pode repassar uma nova parcela.
ABr: E atualmente como está a situação financeira do parque?
Niède: Hoje não tem orçamento. Nós temos recebido recursos da Petrobras, mas não temos um orçamento para manter o parque nacional, e isso é uma coisa pela qual estamos lutando. Nós precisamos de um orçamento fixo para poder continuar esse trabalho. Esse parque hoje é o que tem a melhor estrutura da América, todo mundo vê e acha que é uma coisa fantástica, então nós temos que ver qual é a decisão do governo. O parque pertence ao Brasil, é uma responsabilidade do governo federal, e se o governo pretende não continuar desenvolvendo o parque, nós não podemos fazer nada. A responsabilidade é do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Cultura, porque ele é um Patrimônio da Humanidade, e o Brasil se comprometeu com a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] de garantir a manutenção desse parque.
ABr: Quanto seria necessário para manter toda a estrutura do parque?
Niède: Nós precisamos, para manter todos os funcionários, para manter toda a proteção e conservação, de R$ 400 mil por mês. Com isso cria-se 270 empregos no Piauí, que é um estado onde a pobreza é muito grande, onde a seca não deixa a agricultura se desenvolver, e agora nós estamos entrando no terceiro ano de seca, então o turismo era uma solução.
ABr: Há estrutura no parque para desenvolver o turismo?
Niède: Já está sendo construído um aeroporto internacional, tudo está pronto, e agora falta dinheiro para manter aquilo que foi construído. A expectativa, quando tudo estiver pronto, o aeroporto, companhias hoteleiras que querem construir hotéis, será receber 3 milhões de turistas por ano. Esse é o resultado de um estudo feito por uma firma suíça, que foi quem fez todo o projeto. O parque já chegou a ter 15 mil visitantes por ano, mas como houve uma chuva muito forte em 2004, as estradas foram destruídas e o acesso ficou péssimo, então diminuiu muito, porque ficou muito difícil chegar até lá.
ABr: Há quanto tempo a senhora acompanha o Paque Nacional da Serra da Capivara?
Niède: Nós começamos a fazer pesquisa lá em 1973. Na ocasião, eu era professora em Paris (França) e vinha nas minhas férias, com os meus alunos, para fazer esse trabalho. Com isso, nós descobrimos uma quantidade imensa de sítios arqueológicos e foi criado o parque nacional em 1979, só que o Ibama [Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] criou, mas não mandou nenhum funcionário. Então a depredação começou e depois, em 1991, o governo brasileiro solicitou à França que eu fosse emprestada para coordenar os trabalhos visando à proteção do parque nacional. Foi então que eu vim da França para cá, me instalei lá, e começamos a trabalhar com toda a minha equipe, fizemos um estudo e trouxemos especialistas técnicos do Banco Interamericano (BID), do governo da França, do governo da Itália, e a conclusão foi que a região não têm condições de sobreviver pela agricultura e que a única atividade economicamente rentável seria o turismo.
ABr: O que a senhora pretende dizer aos ministros que encontrar esta semana em Brasília?
Niède: Estou comunicando oficialmente ao governo que a partir do dia 31 todo este imenso patrimônio vai estar sozinho, sem ninguém para tomar conta, porque se houver arrombamento, se quebrarem as coisas, nós não podemos mais assumir essa responsabilidade. E, sobretudo, eu tenho que comunicar à Unesco, porque nós somos os técnicos responsáveis pela conservação desse patrimônio, o governo brasileiro assumiu o compromisso de proteger o parque quando pediu que ele se tornasse patrimônio da humanidade, e agora, se ele não der o dinheiro, esse patrimônio ficará sob risco.
ABr: Se nada for feito, o que o Brasil poderá perder?
Niède: Ele perde todo um patrimônio cultural dos primeiro povos que viveram aqui, é o sítio mais antigo que nós temos nas três Américas, somente no museu hoje nós temos mais de um milhão de peças, belíssimas. Foi feito um museu para atrair os turistas, nós temos tudo lá, e o parque é uma paisagem maravilhosa, ele está muito bem preservado, e além disso naquela região, até há 10 mil anos atrás, nós tínhamos o encontro de dois grandes biomas brasileiros, que é a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica, e até hoje dentro do parque nacional estão preservadas espécies dos dois biomas.
(Por Irene Lôbo
, Agência Brasil, 29/01/2008)