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água potável crise da água
2008-01-25
São Paulo comemora 454 anos hoje, 25 de janeiro. De pequeno povoado fundado entre dois rios – o Anhangabaú e o Tamanduateí - nos últimos 200 anos, a cidade passou por um intenso crescimento, e se tornou uma entre as cinco maiores do mundo. A bela paisagem de vales e morros deu lugar a infinitas construções, avenidas e marginais.

Os 11 milhões de habitantes da São Paulo do século XXI convivem com os mesmos desafios relacionados às águas dos pouco mais de 20 mil paulistanos que aqui moravam há 200 anos: enchentes, poluição, escassez de água e proliferação de mosquitos. A diferença está na escala e no grau de ameaça à população e sustentabilidade da maior cidade do país. Como chegamos até aqui? Será que aprendemos algo? Para onde vamos, num mundo onde a garantia de água potável para os habitantes das grandes cidades é um dos principais desafios do século?

No início do século XIX, São Paulo era uma pequena cidade, com sua mancha urbana reduzida às proximidades do atual centro histórico, ocupando o entorno das várzeas dos rios Anhangabaú e Tamanduateí, este, o principal afluente da margem esquerda do sinuoso e alagadiço rio Tietê, fundamental para os habitantes da cidade desde sua fundação. E não faz muito tempo, há pouco mais de 100 anos, lavava-se roupa no Tamanduateí – palco das cantorias e “brigas de lavadeiras” – e bebia-se água, apesar de relatos de contaminação datarem do século XVII.

Em meados de 1870, durante a gestão do prefeito João Theodoro, iniciava-se uma nova era na vida cidade, chamada de “a segunda fundação da cidade”, promovida pelas lavouras de café e pela inauguração da estrada de ferro Santos-Jundiaí, que trazia os fazendeiros para a cidade, e também os primeiros imigrantes para a região.

Mas início do século XX, os habitantes da cidade não conviviam mais com os rios que marcaram sua fundação. Ambos foram retificados, canalizados e suas várzeas, ocupadas pela cidade, uma apropriação de espaço que virou regra e continua até hoje. A população saltou de pouco mais de 30 mil pessoas em 1870 para mais de 240 mil em 1900. A urbanização se estendeu para outros limites: as várzeas dos rios Tietê e Pinheiros, este último conhecido originalmente como Jurubatuba.

Dos rios vinham os peixes, e de suas margens e fundo a areia e o cascalho, fundamentais para construir a cidade. O Tietê e Pinheiros eram palco de diversos esportes, como o futebol de várzea (as “peladas”), o remo, as regatas e a natação. Em 1924 realizou-se a primeira travessia de São Paulo à nado, que chegou a reunir mais de mil pessoas às margens dos rios.

Além disso, esses rios desempenhavam outras funções essenciais à vida social e operacional da cidade: centenas de lavadeiras ocupavam as várzeas, os portos fluviais tinham intensa atividade dando emprego a estivadores e carroceiros, havia fiscais controlando os diversos usos das margens, as olarias produziam tijolos a partir da argila, e a caça realizada na mata ciliar auxiliava no sustento de alguns.

A cidade chega às várzeas O abastecimento de água, dos chafarizes aos grandes sistemas de distribuição, sempre foi deficiente em São Paulo. A opção adotada até os dias de hoje é buscar água mais longe, em vez de cuidar da água existente dentro da cidade. As principais dinâmicas que imperaram deste então são a expansão urbana sem planejamento, sempre à frente da capacidade de intervenção pública; priorização do uso da água dos rios da região para a geração de energia, sem qualquer preocupação com sua qualidade e tratamento de esgotos.

Entre os eventos mais incríveis de apropriação das várzeas dos rios pela cidade, está a grande enchente de 1929. A empresa canadense The São Paulo Railway Light and Power – concessionária de serviços de transporte e fornecimento de energia elétrica – operava as comportas das represas Guarapiranga e Billings, que desembocam no rio Pinheiros.

A legislação vigente à época previa que toda a área de inundação dos rios seria de utilidade pública e de propriedade da companhia. Em fevereiro daquele ano, após uma grande chuva, as comportas foram abertas alagando as várzeas já saturadas. A inundação atingiu as várzeas do Pinheiros, do Tietê e o rio Tamanduateí. Com esta enchente, a companhia, em uma ação considerada por muitos como criminosa, se tornou proprietária de vastas áreas, que anos depois com a canalização dos rios, se transformaram em loteamentos residenciais de alto padrão.

Até a metade do século XX, foi implantado um grande e audacioso projeto de uso das águas da Bacia do Alto Tietê, onde se insere a Região Metropolitana de São Paulo, para geração de energia elétrica. O projeto foi idealizado pelo engenheiro americano Asa White Billings e implementado pela Light. Previa a utilização das águas do Planalto para geração de energia elétrica na Baixada Santista.

Para tal, foi construída a represa Billings, os rios Pinheiros e Tietê foram retificados e canalizados (respectivamente, década de 1920 e de 1940), tiveram seus cursos revertidos e suas águas bombeadas para a represa, e desta, serra abaixo até a Usina de Henry Borden, em Cubatão. O projeto garantiu quantidade enorme de energia, que possibilitou o desenvolvimento de São Paulo. Infelizmente, o saneamento e a garantia de água de boa qualidade para abastecimento público não foram tratados com a mesma importância.

Ao longo dos últimos dois séculos, os habitantes de São Paulo foram privados de seus rios e de toda a relação que se poderia ter com eles, como sustento, lazer, esporte, cultura e religião. Em troca de obras de contenção de enchente, geração de energia elétrica e construção de loteamentos. A apropriação foi violenta nos últimos 100 anos, os limites da cidade, antes restritos aos rios Tamanduateí e Anhangabaú, foram estendidos para os rios Tietê e Pinheiros, e já chegam quase à Serra do Mar e da Cantareira, ultrapassando as represas que produzem a água para abastecimento da população, como Guarapiranga e Billings.

A mancha urbana continua a se expandir, com enormes áreas de ocupação precária nos mananciais – onde mora grande parte da população de baixa renda da cidade – e o que se vê são mais obras para “levar a cidade” cada vez mais longe, seja por meio da intensa valorização e transformação em vigor na marginal Pinheiros, seja pela construção do Rodoanel em cima das represas Guarapiranga e Billings. A prioridade para geração de energia em detrimento do abastecimento continua, como é o caso da obra de flotação do rio Pinheiros – que retoma o bombeamento constante do rio, ainda poluído – para dentro da Billings.

A escassez de água, em especial nas grandes cidades é apontada como um dos principais desafios para o século XXI. É é fundamental que o paulistano deixe de assistir passivamente a destruição de sua relação com a paisagem e com a natureza. E nos fez tão distantes a ponto de não sabermos de onde vem a água que sai da nossa torneira, e de não termos nenhum interesse em saber para onde vai nosso esgoto.

(Por Marussia Whately, ISA, 25/01/2008)             


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