O setor de energia elétrica americano e seus sindicatos raramente são líderes de torcida assíduos de campanhas para maiores impostos e regulamentações ambientais mais rígidas. Mas os barões da energia ficaram mais entusiasmados quando os legisladores americanos decidiram tentar impor tais ônus sobre outros países.
Tradicionalmente, muitas autoridades de comércio, particularmente dos países em desenvolvimento, suspeitam que as cláusulas ambientais nos acordos de comércio são uma forma velada de protecionismo por parte dos países ricos. Certamente, vários países ricos estão cogitando taxar as importações de forma a levar em consideração os gases do efeito estufa emitidos durante sua manufatura. Os planos estão em estágios iniciais, mas poderiam no mínimo servir como tática de negociação para fazer com que países relutantes concordem em controlar suas emissões.
Ambientalistas e empresas de setores intensivos em energia dizem que ao adotarem impostos de carbono ou cotas sem exigir que outros façam o mesmo, economias como as da Europa apenas encorajam "free-riders" e "vazamento de carbono" -aumento das emissões de carbono à medida que as empresas (as "free-riders") migram para países menos regulamentados, onde podem poluir mais. Eles defendem que o campo seja nivelado por um "imposto de fronteira e de carbono" -uma tarifa que incida sobre os produtos importados oriundos de países não regulamentados mesmo que seus produtores estrangeiros sejam empresas domésticas.
Dois projetos diferentes que estão sendo considerados pelo Senado americano combinariam um novo sistema nacional de teto e comércio de emissões de carbono com sobretaxas a importados de países que não controlem as emissões de carbono, exigindo que comprem créditos de emissões americanos ou equivalentes -na prática um imposto de fronteira- ou que paguem uma taxa. A proposta contou com contribuição substancial da America Electric Power, uma das maiores empresas de energia elétrica dos Estados Unidos, e da International Brotherhood of Electrical Workers (IBEW), sindicato que representa muitos trabalhadores do setor elétrico. Este último em particular é um conhecido oponente da liberalização que tem feito lobby contra a assinatura pelos Estados Unidos de acordos bilaterais de comércio e contra programas de trabalhadores convidados para imigrantes.
Apesar da Comissão Européia ser contrária à adoção de um imposto de fronteira direto nas propostas desta semana para o regime de emissão de carbono da União Européia (UE), ela apresentou a mesma idéia de exigir dos importadores que comprem créditos no futuro. Medidas de equalização de carbono foram exigidas repetidamente pela França, tradicionalmente um dos países membros mais céticos da UE em relação ao comércio, enquanto parlamentares europeus pediram pela imposição de um "imposto de carbono de Kyoto" aos produtos importados dos Estados Unidos, depois do país ter se recusado a adotar o protocolo internacional de emissões.
O novo debate sobre os impostos de fronteira e de carbono adicionam nova tensão a um sistema de comércio que já luta com o fracasso das negociações da chamada "rodada de Doha" e o surgimento de uma retórica protecionista nos Estados Unidos e Europa.
Se as medidas estarão ou não de acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) depende das complexidades incompreensíveis habituais e das incertezas da lei de comércio internacional. Algum precedente foi estabelecido pelo célebre caso entre vários países asiáticos e os Estados Unidos, em torno das leis americanas que proibiam a pesca de camarão sem redes especiais que permitissem que tartarugas marinhas escapassem -daí os ambientalistas protestando em fantasias de tartaruga na desastrosa reunião da OMC em Seattle, em 1999. A decisão estabeleceu o princípio de que as importações poderiam ser restringidas caso sua produção prejudicasse recursos naturais esgotáveis, e as mesmas regras são aplicáveis aos produtores domésticos. Em teoria, isto poderia ser aplicável aos importados de países sem impostos de carbono. Mas continua controverso se tal tarifa incidiria sobre o produtor de um bem, o que seria ilegal segundo as leis da OMC, ou sobre o produto em si, o que seria permitido.
Joost Pauwelyn, um acadêmico de Genebra que presta consultoria à firma de advocacia King & Spalding e ajudou a elaborar as propostas do Senado americano, acha que seria politicamente explosivo para um painel de disputa da OMC ficar no caminho. "Eu tenho dificuldade em imaginar a OMC dizendo que é permitido aos Estados Unidos se preocupar com as tartarugas na Tailândia mas não com a atmosfera do planeta", ele disse.
Mas mesmo defensores das propostas do Senado, incluindo o professor Pauwelyn, aceitam que tal política pesada, envolvendo comércio de trilhões de dólares, provavelmente provocaria litígio por parte dos países afetados, como China ou Índia. Tais restrições aos importados devem levar em consideração diferenças na aplicação e capacidade regulatória de países diferentes -uma exigência que pode envolver profundamente as autoridades em emaranhados de detalhes administrativos impenetráveis. Greg Mastel, ex-economista-chefe do comitê de finanças do Senado, atualmente na firma de advocacia Akin Gump, em Washington, disse: "A criação de sistemas paralelos que atendam às regras da OMC ao imporem o mesmo ônus a países diferentes será muito difícil".
Como Susan Schwab, a representante de comércio dos Estados Unidos, alertou aos ministros de comércio em um encontro internacional em Bali, em dezembro -um alerta que ele repetiu nesta semana em Bruxelas- tal legislação poderia facilmente provocar uma escalada de retaliações. "A restrição às importações leva facilmente a protecionismo velado, minando tanto os objetivos ambientais quanto econômicos", ela disse. "Restrições ao comércio visando forçar uma ação podem sair pela culatra e levar a uma retaliação."
A China, por exemplo, poderia levar o caso dos impostos de fronteira e de carbono à OMC, apenas para a UE ou os Estados Unidos revidarem com novo litígio ou sobretaxas emergenciais voltadas contra os subsídios chineses à energia.
A mudança climática já começou a provocar casos legais na OMC e outras disputas. O Brasil, por exemplo, impetrou uma queixa contra as tarifas e subsídios americanos que bloqueiam o etanol de cana-de-açúcar brasileiro. Brasília deseja que o etanol seja classificado como "produto ambiental" na rodada de Doha e fique assim sujeito a grandes reduções de proteção de tarifas, uma medida bloqueada pelos Estados Unidos e UE. Um plano da UE de proibir a importação de biocombustíveis produzidos de forma ambientalmente destrutiva, apesar de na teoria também estar protegido pelo princípio estabelecido pelo caso do camarão/tartaruga, também poderia ser contestado legalmente.
Uma autoridade de comércio chinesa disse que, apesar da China ainda não ter adotado uma posição formal, sua impressão pessoal inicial é de que os impostos de fronteira e de carbono seriam legalmente complexos e muitos membros da OMC ficariam preocupados. "Eu duvido que as medidas adotadas em nome do meio ambiente serão sempre aplicadas para proteção ambiental e não para proteção das indústrias domésticas", ele disse. Ele acrescentou que poderiam se tornar uma faca de dois gumes. "Se forem levadas em consideração as emissões per capita de gases do efeito estufa em vez das emissões gerais, serão os países desenvolvidos que pagarão impostos sobre suas exportações."
Sejam quais forem as implicações legais, os oponentes dos impostos de fronteira apontam que implementá-los plenamente seria imensamente difícil. Com as extensas cadeias de suprimento da economia mundial moderna, bens vendidos nos Estados Unidos podem conter componentes de uma dúzia de países, alguns com impostos de carbono domésticos e alguns sem. Separar que parte do processo de manufatura é responsável por que percentual de emissões provavelmente será próximo de impossível.
O mesmo se aplica na esfera subnacional. Como as autoridades européias céticas em relação aos impostos de fronteira e de carbono apontam, exportações americanas oriundas, digamos, da Califórnia, seriam produzidas sob um regime de emissões rígido; as de outros Estados não. Na situação atual, as autoridades alfandegárias européias teriam que separar os produtos importados americanos Estado por Estado e sobretaxá-los de acordo para serem justas e consistentes. Em teoria, este problema poderia ser evitado caso as empresas californianas fossem compensadas por restituições estaduais - Arnold Schwarzenegger, o governador da Califórnia, restituindo seus impostos de carbono por quaisquer bens feitos para exportação. Mas isto apenas criaria um incentivo perverso para essas empresas exportarem para países não preocupados com o clima para evitarem impostos, prejudicando ainda mais o meio ambiente.
As propostas do Senado americano evitam as complexidades ao cobrirem apenas produtos de setores básicos intensivos em energia como aço, cimento, papel e vidro. Mas para os céticos, isto começa a parecer como um meio de beneficiar empresas de setores globais altamente competitivos que já exigem freqüentemente proteção contra importados baratos -e que estão se aproveitando da mudança climática como uma nova desculpa para fazê-lo. Jim Hunter, diretor do departamento de companhias elétricas da IBEW, nega tais acusações. "Esta é uma questão global que não podemos resolver sozinhos", ele disse. "Nós precisamos de algo como isto para que qualquer medida de teto e comércio de emissões passe pela Câmara e Senado." A American Electric Power negou que a medida seja uma sobretaxa e disse que ela "igualaria as condições do comércio global com relação à mudança climática e serviria como um poderoso estímulo para a adesão de outros países à nova iniciativa global de redução de emissões".
Indústrias com ferro, aço e alumínio na UE têm feito um forte lobby contra controles de emissões mais rígidos, argumentando que tal legislação as levaria a deixarem a Europa. A opinião dos especialistas é dividida. Pesquisa pela Comissão Européia apontou perdas significativas de competitividade por setores intensivos em energia, enquanto o Banco Mundial encontrou pouca evidência de amplo vazamento de carbono devido aos impostos ambientais e regulamentações já existentes. O Carbon Trust, uma entidade britânica financiada pelo governo, disse recentemente que o esquema de comércio de emissões da UE afetaria seriamente apenas as empresas britânicas em alguns poucos setores intensivos em energia. Como disse o professor Pauwelyn: "Há um forte incentivo para as empresas exagerarem a extensão do vazamento de carbono por motivos protecionistas. Mesmo se você fizer a China internalizar o custo das emissões de carbono, ela ainda seria competitiva em muitos destes setores".
Aqueles que fazem campanha pelo desenvolvimento, que contam com influência considerável no debate público, particularmente na Europa, se vêem em um dilema. Muitos deslocaram sua atenção no ano passado das questões de ajuda e comércio para a mudança climática. Até o momento eles têm concentrado seu fogo sobre os alvos familiares -os países ricos- por terem fracassado em impor controles de emissões suficientemente rígidos e por introduzirem incentivos à produção de biocombustíveis que encorajam o desmatamento nos países em desenvolvimento. Mas os impostos de fronteira e de carbono colocam em conflito o meio ambiente e os interesses econômicos imediatos de países em desenvolvimento que são grandes emissores.
Jennifer Haverkamp, uma alta consultora jurídica da Defesa Ambiental, um influente grupo ambiental americano, disse ser favorável ao projeto de lei no Senado, que isenta os países pobres e é melhor visto como um meio de arrastar os mercados emergentes para a mesa multilateral de negociação. "Com sorte ele nunca teria que ser implementado", ela disse. "Nós o vemos como um elemento em um esforço mais amplo para ajudar os países em desenvolvimento a cumprirem sua parte na redução das emissões."
De fato, o papel mais importante que os impostos de fronteira e de carbono ou seus equivalentes poderiam exercer é o de uma ameaça a ser mantida na gaveta. Como disse uma autoridade européia: "Eu não consigo imaginar qualquer acordo internacional de carbono que não trate das questões de free-riders e comércio".
(Por Alan Beattie, Financial Times, tradução de George El Khouri Andolfato, UOL, 24/01/2008)