A que atribuir o longo período de silêncio observado por um campeão da loquacidade?, perguntaram-se nos últimos meses os curiosos incontroláveis. Um dia depois de assumir o Ministério do Futuro, Roberto Mangabeira Unger - o único filho da Bahia que sabe falar português com o sotaque de quem nasceu no Mississipi, cresceu em Illinois e acabou de chegar ao Brasil - decidiu espantar o país com uma radical abstinência retórica. Como explicar o mistério? Sobretudo, onde andaria e o que estaria fazendo o Grande Mudo?
Escondido no Retiro dos Ex-Professores de Harvard, ainda convalescendo das escoriações impostas pela duríssima luta para garantir o empregão? Enclausurado num convento da Ordem das Carmelitas Descalças, tentando decifrar o significado do que Lula chama de "ações de longo prazo"? Nada disso, soube-se na terça-feira, quando Mangabeira Unger ressurgiu na Amazônia, à frente da tropa formada por 35 soldados da pátria.
Mais falante que nunca, grávido de idéias como sempre, contou que havia emudecido por meses para pensar na Amazônia. Valera a pena, sugeriu o sorriso que precedeu a caprichada abertura da discurseira - uma frase dividida em dois decassílabos, atados pela rima paupérrima. "Numa região sobra água inutilmente", declamou Mangabeira. "Em outra falta água calamitosamente".
O segundo verso revelou que a reflexão sobre a Amazônia, inspiradora do primeiro, acabara induzindo o incansável pensador a meditar também sobre o Nordeste. Como eliminar tão injusta distribuição das águas fluviais? Simples, ensinou: basta construir um grande aqueduto que transportaria para regiões castigadas pela seca bilhões de litros extraídos do colosso aquático amazonense. Uma espécie de transamazônica fluvial.
Não seria mais sensato cuidar primeiro das tantas cidades desprovidas de redes de distribuição de água e sistemas de saneamento básico?, perguntou uma prefeita paraense. Concentrado em ações de longo prazo, Mangabeira não tem tempo de examinar urgências urgentíssimas. Com a cabeça estacionada em 2020, apresentou mais duas idéias singularmente inventivas. Uma envolve o campo do ensino. Outra, a Receita Federal.
Para Mangabeira, em breve só haverá salvação para índios que saibam falar com fluência ao menos dois idiomas. Talvez ignore que, além da língua dos ancestrais, os nativos da selva falam português com mais clareza que Mangabeira. Talvez ignore que, nas aldeias das fronteiras, conversas em espanhol ecoam nas mais modestas malocas. Talvez ache indispensável povoar a Amazônia com professores de inglês. Talvez não saiba o que diz.
Também é necessário criar um imposto destinado a alvejar quem ganha dinheiro com a exploração das incontáveis jazidas semi-ocultas pela mata, comunicou o ministro. E, naturalmente, entregar ao governo o dinheiro sem o qual não será possível levar a região a bom porto. As duas propostas, embora igualmente amalucadas, foram engolidas pelo silêncio coletivo das testemunhas da espetacular reaparição. A platéia perdera a voz depois da história do aqueduto. Por elas falariam os brasileiros que ainda não perderam de vez o juízo.
Alguns sugeriram que se incluísse no PAC, ao lado do aqueduto, a transposição das neves do Rio Grande do Sul para o tórrido Piauí. Outros preferiram presentear Minas Gerais, tão carente de praias, com um bom pedaço da orla cearense. Sem disposição para ironias, o imenso bloco dos indignados reivindicou a imediata devolução de Mangabeira ao campus de Boston, além do enterro sem honras do ministério de araque.
Excelente idéia. O governo federal, que ainda chora o sumiço da dinheirama da CPMF, gastaria na área da saúde o que desperdiça na fantasia forjada para abrigar um maluco de carteirinha apadrinhado pelo vice José Alencar. A Amazônia ficaria livre de um pensador de alta periculosidade. E a sucuri que atuou como figurante na comédia estrelada por Jobim das Selvas escaparia de ser deportada, com as águas do rio que freqüenta, para uma represa no sertão nordestino.
(Por Augusto Nunes,
Jornal do Brasil, 20/01/2008)