A presença do presidente Lula na abertura da 62ª Assembléia-Geral das Nações Unidas, em setembro passado, fez com que os temas energéticos escrevessem mais um capítulo das crônicas de conflito que o assunto provoca na política internacional, principalmente com o petróleo. Os combustíveis renováveis, como o álcool hidratado, por exemplo, embora sendo um bem energético, não fazia parte dos insumos com poder de provocar conflitos na política internacional, até este ano. Com a viagem do presidente Lula a Nova Iorque ficou claro que haveria a necessidade de a diplomacia nacional refutar críticas ao desenvolvimento do projeto brasileiro de biocombustíveis.
As críticas do presidente Hugo Chavez, da Venezuela, e de Evo Morales, da Bolívia, são confluentes na medida em que procuram ligar os esforços nacionais em biocombustíveis a problemas sociais e econômicos, como a fome e a concentração fundiária. Segundo eles, o agravamento das questões sociais e econômicas se daria pela redução de área agrícola para a produção de alimentos de base e pela concentração de terras agricultáveis em mãos (poucas) de usineiros.
Embora sejam pertinentes, não são críticas originais. Já no ano de 1975, na criação do Projeto Nacional do Álcool – Pró-álcool – havia quem falasse numa possível crise do setor de alimentos pelo fato de o governo ter direcionado boa parte das terras agricultáveis à plantação de cana-de-açúcar. Na mesma toada havia também quem não gostasse do Pró-álcool porque, cultural e socialmente, o projeto iria degenerar a sociedade senhorial do Nordeste açucareiro. O competente engenheiro mecânico Amaral Gurgel integrava o primeiro time, sustentando que o álcool combustível seria uma enorme perda financeira pelo fato de o governo ter de subsidiar usineiros e não tirar proveito do petróleo barato, a 12 dólares o barril. Esse preço vigorou por volta de 1985, quando a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) estava em baixa e grassava petróleo barato no mundo em razão da produção do Mar do Norte, entre outras.
Já o segundo grupo de críticas ao Pró-álcool contava nada mais nada menos com o peso intelectual de Gilberto Freyre, cuja crença era a de que a monocultora sob o regime de grandes usinas perturbaria a ordem social tradicional que os engenhos haviam deixado como patrimônio social.
Pensar a pertinência do petróleo pelo preço do barril, no imediato, é correr risco voluntariamente. Não há produto cuja oscilação de preços seja tão violenta quanto o petróleo. Além do mais, há duas assertivas geopolíticas dignas de nota: trata-se de energético finito e geograficamente concentrado, ainda mais em áreas conflagradas por conflitos variados.
Em 2007, a crítica contra os combustíveis renováveis retornou na palavra de presidentes com características contestatórias sobre a forma pela qual os Estados se relacionam. Acreditam que o sistema internacional é desigual e antidemocrático, mas eles não chegam a perceber a atual política energética mundial como parte dessa injustiça. Vale dizer, não criticam o fato de que a cadência mundial sobre o petróleo, o mais importante dos energéticos até este momento, não se encontra nas mãos dos produtores, mesmo com o tão exaltado poder da OPEP ou da Arábia Saudita, seu maior produtor.
Quem muito bem percebeu os meandros da política mundial sobre os combustíveis fósseis foi o engenheiro José Walter Bautista Vidal, ex-professor da Unicamp e criador do Pró-álcool nos laboratórios do ITA, em São José dos Campos. Vidal observou que somente pela abundância e pelos baixíssimos preços do petróleo é que as grandes potências do Hemisfério Norte puderam se industrializar e criar uma economia de escala e de pleno emprego, mesmo sob governos considerados conservadores, como os de Margareth Thatcher, no Reino Unido, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos.
Eis a questão que passa incólume pela nova crítica aos combustíveis renováveis. A Venezuela, em primeiro plano, é grande produtora de petróleo e país-membro da OPEP. Contudo, a política de Chavez não foi além de promover a alta de preços do barril para figurar busca ao “interesse nacional” de forma mais larga, que abarcasse todos os produtores petrolíferos. O controle fundamental que passa pela logística e pela tecnologia sobre novos produtos ainda continua centrado nos grandes consumidores, como os Estados Unidos e o Reino Unido.
Na verdade o Brasil tenciona escapar dessa estrutura, cujo espaço para os países produtores tem sido bastante limitado. A escolha para isso foi a produção e a atual dianteira que o País adquiriu na área do álcool combustível e o investimento em novas pesquisas em biodiesel. Ainda que não seja a busca por “Canaã”, a participação brasileira em insumos renováveis é mais coerente do que intensificar gastos e pesquisas vultosos em exploração de petróleo.
A produção de álcool combustível não será razão de uma eventual crise de alimentos no Brasil. O próprio Bautista Vidal e Adriano Pires, da UFRJ, chegam igualmente a essa conclusão. O terreno agricultável para o etanol, que sempre foi utilizado para algum tipo de cultura, não passa de 2% do que o Brasil destina atualmente para plantações.
E por mais que hoje possa parecer curioso nunca foi a intenção de Vidal trabalhar com o etanol sem considerar a maneira de como se distribui a terra no Brasil. Vale dizer, era necessário intensificar a produção de cana não contando apenas com grandes usineiros, mas sim com a participação de cooperativas de pequenos proprietários que venderiam o produto para o governo. No cálculo final o montante de álcool seria grande.
O problema da fome em si ocorre não por falta de comida – na verdade há muitas culturas que acabam sendo desperdiçadas. A questão da fome deve-se à falta de políticas mais abrangentes, mais apropriadas. Se houver empenho no pleno emprego e na distribuição de renda a fome deverá diminuir em grande parte da vida nacional.
O que devemos esperar do Estado brasileiro nesta nova seara de inserção internacional pela energia é que haja um plano de ação, um projeto estratégico para que o País aproveite tal fase sem comprometer seus esforços. É necessário plano que venha a considerar a parte social do novo Pró-álcool, com exigência em novos métodos de trabalho, respeito garantido ao trabalhador, meios de desenvolvimento social para a região produtora e, por fim, condições de abastecer o mercado internacional sem sofrer crises de infra-estrutura. Esta é a questão a que o Brasil não deve se furtar, pois a oportunidade é única.
(Por José Alexandre Altahyde Hage*,
Carbono Brasil, 17/01/2008)
* José Alexandre Altahyde Hage é doutor em Ciência Política, consultor do núcleo de negócios internacionais da Trevisan Consultoria e professor do curso de Relações Internacionais da Trevisan Escola de Negócios – SP.
E-mail: jose.hage@trevisan.edu.br