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consumismo mídia e sustentabilidade
2008-01-09
Como Paulo Henrique Amorim gosta de enfatizar em seu blog Conversa Afiada: "Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil". A Rede Globo mantém o trono não só pela qualidade técnica de suas produções de entretenimento, como pela ligação que mantém com os donos do poder ao não informar o povo das discussões e polêmicas por trás das notícias, ou ao informar, fazendo-o quase sempre de maneira superficial e tendenciosa.

A TV Cultura, por exemplo, apresenta o programa Roda Viva, que abriga discussões entre intelectuais e jornalistas a respeito de questões que faríamos bem em debater ao menos de vez em quando, se não fôssemos uma sociedade de analfabetos funcionais que não lêem livros por falta de tempo, já que não dá para perder o capítulo de hoje da novela.

Infelizmente, o alcance da Cultura não chega perto da vasta maioria do eleitorado alcançado pela Globo e filiais. Ao contrário, a líder incontestável de audiência mantém no ar, durante o chamado horário nobre, um telejornal que divulga as notícias com o mesmo descompromisso com que um funcionário do rei afixaria uma notícia de aumento de impostos do lado de fora do castelo e voltaria andando para o interior dos altos muros, rodeados de guardas, impune e em silêncio. Ou, quem sabe, talvez até assobiasse, indiferente aos gritos de indignação.

"Crescimento robusto e sustentável"

A edição de 12 de dezembro do Jornal Nacional trouxe ao ar, logo no primeiro bloco, uma seguida da outra, duas notícias típicas da falta de reflexão daquilo a que a Globo se habituou chamar de informação – uma notícia supostamente positiva, sobre o alto crescimento da economia, e outra claramente negativa, sobre a previsão do derretimento da calota polar para logo agora, em 2012.

Na primeira notícia, o crescimento da economia é, como sempre, recebido com otimismo, ao menos até certo ponto. As pessoas estão consumindo mais, as indústrias estão se expandindo, produzindo e vendendo mais. Na lógica global do capitalismo, poucas notícias poderiam ser melhores. Mas ao mesmo tempo, para que se mantenha um crescimento sustentado (ou seria sustentável? A reportagem não deixa claro), o país precisa se equipar com infra-estrutura (leia-se Angra 3 e novas hidrelétricas) para evitar um apagão como o de 2001.

Talvez o mais interessante na reportagem nem seja a forma como a Globo é incapaz de estimular uma discussão sobre os limites que deveríamos nos impor quando falamos sobre crescimento. Que as taxas atuais de crescimento são insustentáveis a longo e médio prazo (e até a curto prazo, como mostra a segunda reportagem), disso já estamos conscientes... não estamos? Mas a fala da repórter, explicando como um maior crescimento da economia permitiria um crescimento sem inflação para o país, "sem sobressaltos, de maneira sustentada, como dizem os economistas", apenas nos confunde sobre o que a economista Zeina Latif tem a dizer logo a seguir:

"Para que a gente não tenha surpresas lá adiante, de ter problemas do tipo de 2001, que foi um apagão de energia, é muito importante a agenda do governo estar focada para evitar esses gargalos de infra-estrutura, que é para que a gente realmente tenha um crescimento robusto e sustentável."

"Amazônia será destruída"

Das duas, uma: ou a economista em questão, como aliás a própria Globo, não entendeu ainda o conceito de sustentabilidade (que, a propósito, significa vivermos de maneira tal que os recursos renováveis do planeta, como a água, os solos e as florestas, não se esgotem), ou estão fazendo de propósito para confundir o telespectador a respeito de um termo que já devia estar claro há muito tempo.

Na segunda notícia, cientistas da Nasa afirmam que as previsões de derretimento da calota polar, no Pólo Norte, estavam equivocadas. A previsão anterior colocava o degelo total entre os anos 2040 e 2100, longe demais dos olhos e corações dos capitalistas de hoje. Agora, os cientistas chegaram à conclusão de que a calota inteira deverá desaparecer ainda no verão de 2012, ou seja, em meros quatro anos e meio.

Contudo, talvez não haja razão para pânico, já que o Brasil reduziu em 60% o desmatamento nos últimos três anos, o que equivale a meio bilhão de toneladas de CO2, ou 14% de tudo que teria que ser reduzido pelos países "desenvolvidos" até 2012. (Alguma vez a mídia brasileira questionou o conceito de desenvolvimento? Ou citou o Nobel da Paz Amartya Sen, para quem o desenvolvimento deve ser a ampliação das liberdades, e não das indústrias?) A boa notícia parece dar esperanças aos telespectadores, mas a emoção dura pouco.

Em seguida a repórter esclarece que o Brasil ainda derruba o equivalente ao estado de Sergipe a cada dois anos, e que salvar a floresta e o planeta depende não só do Brasil, mas também dos países ricos. Não é mentira, mas também é verdade que a nossa imprensa majoritária adora depreciar o mérito de países que tentam uma realidade mais independente daquela ditada pela elite financeira mundial. E se ficarmos esperando que eles dêem o exemplo, talvez seja melhor mesmo abrir mão de qualquer tentativa.

No final da reportagem, um entrevistado, gaguejando, afirma que não adianta salvarmos a floresta se países como Estados Unidos, Japão e Arábia Saudita não aderirem ao protocolo de Kyoto. Segundo ele, "se o aquecimento global continuar, a Amazônia será destruída".

Afirmação temerária

O crescimento da nossa economia deve, pelos parâmetros globais, ser recebido com festas, mas com um alerta: para continuar, precisamos não economizar nossos recursos (a WWF previu que poderíamos economizar até 40% de energia, caso a utilizássemos racionalmente), mas melhorar nossa infra-estrutura, construir mais hidrelétricas, consumir mais, de preferência jogando fora e trocando toda a mobília e utensílios domésticos o mais rápido que pudermos, já que é assim que os norte-americanos fazem. Pensando bem, é isso mesmo que nossas indústrias também fazem, ao produzir produtos cada vez mais descartáveis. E, de fato, o desperdício aquece mesmo a economia, e não apenas as calotas polares.

O Pólo Norte está derretendo, os países ricos não dão a mínima, de forma que o aquecimento global sozinho destruirá o que tiver sobrado da floresta Amazônica. Como ouvi o jornal pelo rádio (tenho a felicidade de não possuir um aparelho de TV), não pude saber quem foi o "especialista" que chegou a tão fantástica conclusão e, ainda que ela não possa ser descartada de antemão, não creio que saibamos o bastante para mantermos uma afirmação tão temerária.

Economistas e ecologistas

Uma entrevistada generaliza dizendo que "o Brasil" tem um plano de combate ao desmatamento. É verdade que o valor da floresta em pé, com sua biodiversidade de valor inestimável até para a indústria – a tradicional vilã do ambientalismo – motivou o governo brasileiro a criar e manter o projeto Zona Franca de Manaus, que mantém preservadas mais de 98% das florestas do estado do Amazonas. E que o desmatamento tem mesmo diminuído nos últimos anos, segundo fontes oficiais. Mas, ao mesmo tempo, vemos as Forças Armadas, por exemplo, fazendo treinamentos diários ao lado de crimes ambientais, como se a preservação das florestas fosse responsabilidade apenas do Ibama. Ou quando o governo divide o Ibama em dois, da noite para o dia, sem o conhecimento de figuras importantes dentro do próprio Ministério do Meio Ambiente, como foi largamente divulgado à época. Ou ainda quando o governo mantém projetos de asfaltar rodovias existentes e abrir novas, em várias regiões da floresta amazônica, parecendo ignorar que a abertura de estradas, sozinha, é a maior determinante do desmatamento.

A verdade está lá fora e é dolorosa, seja pelo bem ou pelo mal. Ou continuaremos a trilhar o caminho do capitalismo consumista e irresponsável, de recordes sucessivos na economia e da conversão das riquezas naturais em números imediatos para apresentar nas boas notícias dos telejornais, ou reduziremos imediatamente nossa necessidade desse tipo de notícia. Em outras palavras, ou paramos de crescer além do estritamente necessário, dado o aumento populacional (e começamos logo a desestimular até este), ou pagaremos pelas conseqüências cedo ou tarde. Segundo os cientistas da Nasa, cedo.

Passou da hora de economistas e ecologistas começarem a se entender. E que a mídia, políticos e profissionais façam seus mais persistentes esforços nesse sentido. Será tão difícil assim?

Abaixo a transcrição da reportagem:

Jornal Nacional, 12 de dezembro de 2007

O crescimento da economia

William Bonner:

Os números do PIB divulgados hoje pelo IBGE (mostram) que as famílias brasileiras estão consumindo mais.

Repórter:

Nos supermercados os consumidores investem numa mesa mais farta.

Entrevistadas (consumidoras):

– Eu vim comprar tomate (...) o que estou levando. Eu vim comprar tomate e pepino e estou levando muita coisa. Quanto mais a gente vê, mais quer comprar, né?

Repórter:

O entusiasmo na hora das compras explica os números divulgados hoje pelo IBGE. A economia do país está aquecida, impulsionada pelo mercado interno. O crescimento do consumo das famílias brasileiras em julho, agosto e setembro de 2007 foi o maior em 10 anos: 6%, comparado ao mesmo período do ano passado.

Entrevistada (consumidora):

– Por onde você passa, as pessoas dizem: Quer cartão?, Quer cartão?, Quer cartão? A pessoa se empolga, só aí eu tenho milhões de cartões.

Repórter:

Além do crédito, o aumento na renda também ajudou, segundo o IBGE. O PIB, soma de tudo que é produzido pela economia do país, passou de 645 bilhões de reais no terceiro semestre deste ano. Desse total, 93,5 bilhões foram recolhidos de impostos. O crescimento do PIB foi de 5,7% em relação ao mesmo período de 2006. O resultado do trimestre este ano é o melhor desde 2004.

Entrevistada (economista):

– Nesse ano, muito baseado na demanda interna, né, tanto de investimento como consumo das famílias, e naquele ano de 2004 também era muito baseado no setor externo com as exportações de bens e serviços crescendo muito mais que a importação.

Repórter:

Na comparação com o segundo trimestre de 2007 o PIB aumento 1,7%. As boas colheitas da cana-de-açúcar e do trigo garantiram o maior destaque para a agropecuária. A indústria e o setor de serviços também tiveram bons desempenhos. Motivo de alegria para Maria Aparecida, que conseguiu emprego de gerente numa empresa. Com o salário, já comprou DVD, som e um computador, e agora pode explorar as belezas do Rio em viagens de fim de semana.

Entrevistada (gerente):

– É importante perceber que eu sou capaz. Com o meu trabalho, consigo realizar essas coisas e muito mais. Certamente vem mais consumo, me aguardem...

Fátima Bernardes:

Para esse crescimento ser duradouro, os economistas alertam que é preciso melhorar muito as condições de infra-estrutura do Brasil. Mas já existe um sinal importante: o aumento dos investimentos privados na indústria.

Repórter:

Os principais clientes desta fábrica são montadoras e indústrias de autopeças. As encomendas aqui cresceram tanto que foi preciso contratar mais funcionários. Um prédio inteiro foi inaugurado para dar conta do aumento de produção e abrigar as novas máquinas compradas este ano.

Entrevistado (industriário):

Nós vamos expandir uma outra fábrica que nós temos aqui e a nossa expectativa é que com esses investimentos a gente possa crescer 20% em um curto espaço de tempo.

Repórter:

Segundo o IBGE, desde outubro de 2003 as empresas têm investido na compra de máquinas e equipamentos novos e isso é um bom sinal pra economia. Com a indústria tendo a capacidade de produzir mais, o país pode crescer com inflação baixa, sem sobressaltos, de maneira sustentada, como dizem os economistas.

Repórter:

Ao contrário do que ocorria no passado, desta vez os investimentos acontecem em vários setores, inclusive na construção civil, uma área que amargou resultados ruins por muito tempo. No terceiro trimestre do ano, os investimentos no geral subiram quase 15%, se comparados ao mesmo período do ano passado. Um cenário positivo, diz esta economista. Mas é preciso garantir que a infra-estrutura do país não atrapalhe este ritmo de crescimento no longo prazo.

Entrevistada (economista):

Para que a gente não tenha surpresas lá adiante, de ter problemas do tipo de 2001, que foi um apagão de energia, é muito importante a agenda do governo estar focada pra evitar esses gargalos de infra-estrutura, que é pra que a gente realmente tenha um crescimento robusto e sustentável.

O aquecimento global

William Bonner:

A Nasa, agência espacial americana, anunciou hoje que as geleiras do pólo norte vão durar menos do que se esperava.

Repórter:

A imensidão de neve no Ártico parece inesgotável, mas basta mudar o ângulo para notar a ameaça no ponto extremo do planeta. Cientistas da Nasa reexaminaram fotos de satélite e dados, e concluíram que o gelo da calota polar pode derreter totalmente no verão de 2012. A última previsão era de que o degelo total da calota polar aconteceria entre os anos de 2040 e 2100. Segundo os cientistas da Nasa, a nova previsão já é resultado do aquecimento global, que provoca reações muito mais rápidas do que se esperava.

Repórter:

Esta animação da Nasa mostra a velocidade com que o gelo derreteu em 2007 – num recorde de área derretida. A calota diminuiu 22% em relação ao recorde anterior, de 2005. O degelo abriu um canal que liga o Oceano Pacífico ao Oceano Atlântico, possibilitando até a passagem de navios. Esta outra animação dá a dimensão do problema. O mapa da esquerda mostra a variação do degelo nos meses mais quentes entre 1979 e 2006, muito menor se comparada ao verão de 2007.

Fátima Bernardes:

Na Indonésia, na conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, os representantes do Brasil alertaram para o perigo que o aquecimento global representa para a Amazônia. A reportagem é dos enviados especiais Sônia Bridi e Paulo Zero.

Repórter:

O protesto pode ser solitário, mas o secretário-geral da ONU lembrou os ministros que vieram a Bali que o mundo espera um compromisso. Nem a festa pela adesão da Austrália ao protocolo de Kyoto comoveu os americanos, japoneses e sauditas. Eles continuam a rejeitar a meta de redução de 25 a 40% dos gases que provocam o efeito-estufa até 2020, como querem a União Européia e o Brasil.

Repórter:

A delegação brasileira fez hoje um esforço para que o país volte a ter votos fortes nas negociações. Por um lado, tentando agrupar os países que têm os mesmos interesses. Por outro, mostrando que o Brasil já reduziu, e muito, as emissões, ao diminuir em 60% o desmatamento nos últimos três anos.

Entrevistada:

O Brasil está com um plano de combate ao desmatamento que reduziu meio bilhão de toneladas de CO2 nos últimos três anos. Isso representa 14% de tudo que teria que ser reduzido pelos países desenvolvidos até 2012. É significativo.

Repórter:

Mas o Brasil ainda derruba o equivalente ao estado do Sergipe a cada dois anos. 70% das emissões do Brasil são provocadas por desmatamento. Mas salvar a floresta e o planeta depende também dos países ricos.

Entrevistado:

Mesmo que a gente procure reduzindo chegue a zero [sic], mas as emissões do mundo rico continuem a ocorrer, né? Ah, e o aquecimento, é, e a, e a Terra continue a se aquecer, continue o aquecimento global, a Amazônia será destruída.

[Mesmo que a gente continue reduzindo e chegue a zero, mas as emissões no mundo rico continuem a ocorrer e continue o aquecimento global, a Amazônia será destruída]

Os trechos foram copiados do site do JN.

(Por Rodrigo de Loyola Dias, Envolverde/Observatório da Imprensa, 07/01/2008)



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