Se por um lado o aquecimento global tem sido usado para promover os agrocombustíveis ou para ilustrar as campanhas de responsabilidade social de bancos e transnacionais, por outro, ele possibilita atacar o estilo de vida consumista e dispendioso das pessoas no capitalismo. Especialmente um dos ícones de status social: o automóvel individual. Somente na cidade de São Paulo a frota é quase de 5,9 milhões de veículos individuais, responsáveis por 74% do gás carbônico emitido pelo setor de transporte. Em entrevista, o professor do Departamento de Física Aplicada da Universidade de São Paulo (USP), Américo Kerr, dá sua opinião sobre o tema, avalia as forças envolvidas no debate e aponta saídas. Para o professor, a discussão deve ser realocada da catástrofe “possível” para a catástrofe já existente hoje. “Os agentes que podem possibilitar uma mudança climática no futuro, na verdade, já provocam catástrofes cotidianamente. Olha a cidade de São Paulo: isso aqui não é uma catástrofe?”, provoca.
Como o senhor vê o debate entre os céticos e aqueles que crêem que poderemos enfrentar graves conseqüências decorrentes do aquecimento global?Américo Kerr – O acreditar que vai acontecer ou não, não faz parte da minha seara. Acho que existem trabalhos sérios nessa questão do modelamento que apontam que é possível o aquecimento. Mas ao afirmar que é “possível”, diz-se implicitamente que pode não ocorrer também. Quem afirma que deve haver mudança climática global não diz que é inevitável. Você vê a mídia falando, mas o material do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, órgão ligado à Organização das Nações Unidas – ONU) fala de probabilidades, ou seja, não há certeza de mudança. Mas acho essa possibilidade mais do que razoável, e por conta das ações do homem nos últimos séculos. Há registros naturais de mudanças climáticas globais ao longo do tempo, algumas bem maiores que a cogitada, mas o que estamos discutindo é se essa que está ocorrendo agora é por conta da ação humana, portanto, se mudarmos o modo como o homem age, se isso pode inverter uma mudança decorrente do aquecimento global. Se esses modelos são razoáveis? São. Mas ao mesmo tempo têm um grau de incerteza grande, e o próprio relatório aponta isso.
E os céticos?Américo - Por exemplo, posso levantar uma infinidade de argumentos do “lado cético”. O aumento de temperatura desde 1850 é da ordem de 0,76°C. Bom, com que precisão conseguimos medir a superfície da Terra? Com que precisão conseguimos medir a superfície de um quarto que seja? Medir a temperatura média da superfície da cidade de São Paulo... ou seja, qual é a precisão dessa medição? Como foi medida a temperatura em 1850? Com que qualidade de termômetro e onde? Claro que há técnicas para corrigir e tudo, mas consigo entender os questionamentos dos céticos. Mas eles não têm razão, com absoluta certeza, para mim, pois ficamos na mesma. Se pensarmos em intervir agora para que uma catástrofe futura não ocorra, estamos intervindo na nossa catástrofe cotidiana. Tivemos mudanças climáticas naturais de 10ºC. O que estamos medindo aqui são décimos. Pode ser por causa do homem e pode não ser. Há várias coisas que interferem no balanço radioativo. Quem faz a conta considera variações naturais e antropogênicas.
E em relação às projeções catastróficas?Américo - A questão para mim vai para um outro lado. Nós já temos uma catástrofe. Impalpável e imensurável. Os agentes que podem possibilitar uma mudança climática no futuro, na verdade, já provocam catástrofes cotidianamente. Olha a cidade de São Paulo: isso aqui não é uma catástrofe? Olha o Rio de Janeiro. Apesar de belíssima, é uma metrópole com níveis de poluição e tráfego insuportáveis, assim como São Paulo. Esse sistema de transporte individual – uma das principais causas da interferência que o ser humano causa no meio ambiente – é irracional. Anualmente morrem 5 mil pessoas na cidade de São Paulo diretamente por causa do trânsito. São 35 mil no Brasil, 1,3 milhão no mundo. Se contarmos os que ficam deficientes fisicamente ou feridos, é a principal causa de injúria no mundo.
O modelo de transporte individual, nesse contexto, é altamente questionável, não?Américo - Sim, esse modelo é uma catástrofe para a vida, para o meio ambiente. Consome vidas, consome energia, trabalho. A cidade de São Paulo é desenhada em função dos carros, do tráfego, e mesmo assim são 120 quilômetros de engarrafamento todos os dias. São Paulo tem 5,9 milhões de veículos. Queimamos um monte de recursos naturais não renováveis todos os dias, à toa, andando mais devagar inclusive. Mas quem sobe hoje a avenida Rebouças (uma das avenidas mais movimentadas da capital paulista) de carro já não tem mais vantagem sobre quem anda de ônibus, que hoje vão pelos corredores (faixas da pista em que só podem circular ônibus). Isso é que deve ser criado: transporte coletivo que agilize a vida da maioria da população. O transporte individual só pode existir com a desigualdade social. Se todos tiverem acesso a um veículo próprio, ninguém mais anda. Se hoje já está assim, imagina se todos tivessem carro. Transporte individual num centro urbano como São Paulo é absurdo, só quem ganha é a indústria automobilística.
Então, enfrentar seriamente o aquecimento global sem entrar em confronto direto com grandes forças do capitalismo...?Américo - Sim, por isso que acho que o centro da discussão não deve ser a catástrofe “possível”, mas a já existente. O discurso hegemônico aponta saídas que não resolvem. Não resolvem porque não atacam o cerne da questão, que é o modo de produção capitalista, a forma como organizamos a sociedade. Mas felizmente é um processo dialético. O aquecimento global tanto abre para a ação de pessoas que de fato querem uma sociedade mais justa, igualitária e insustentável, como outros que querem resolver apenas um problema de mudança de matriz energética, dada a escassez do petróleo, mas querem manter o sistema como está.
Qual sua opinião sobre a maior alternativa alardeado hoje em dia, os agrocombustíveis?Américo - Agrocombustível é solução para quem quer continuar com esse sistema. Vai arrebentar com a terra, com monocultura para todo lado. Quanto vão gastar para recuperar essa terra depois? A monocultura é um desastre. Exige um monte de defensivo agrícola que prejudica o meio ambiente. Sendo que a monocultura não garante a alimentação, que é sustentada pela pequena propriedade. O projeto de agricultura, portanto, deve ser sustentável, preservando mananciais e matas naturais, reduzindo drasticamente o uso de defensivos agrícolas. As pessoas estão discutindo se usa transgênico ou pesticida... não quero nem um nem outro, nenhum resolve o problema. Você vai manter um sistema de transporte e um consumo de energia insustentáveis. Na conta que o pessoal faz hoje consegue-se reduzir em 25% o consumo de energia só melhorando a eficiência dos processos, evitando desperdícios. Também temos aí a produção de lixo, que também é uma perda de energia, mas que está ligado também ao consumismo, ou seja, à mudança de valores na nossa sociedade.
(Por Dafne Melo,
Brasil de Fato, 26/12/2007)