No momento em que os permanentes conflitos entre a preservação patrimonial e a ordenação urbana ganham dimensões especiais, o livro "Patrimônio: atualizando o debate", talvez a mais importante contribuição sobre o tema neste período recente, não teve ainda a repercussão que merece, simplesmente porque não foi distribuído na praça.
“O livro é uma tentativa de começar a abrir aos cidadãos a verdadeira caixa-preta dos órgãos de preservação, especialmente divulgando a visão dos agentes do Estado. O paradoxo é que a própria obra tornou-se uma caixa-preta em virtude do acesso restrito, circulando somente na esfera das próprias instituições patrimoniais”, afirma o professor Haroldo Gallo.
Gallo, docente do Instituto de Artes (IA) – onde é coordenador associado do curso de Artes Visuais – e da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, foi quem idealizou o livro enquanto superintendente da Regional de São Paulo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no período de 2003 e 2006. Quando deixou o cargo, os textos estavam prontos e faltavam somente retoques de edição.
O livro faz parte de uma compensação ambiental pelos impactos gerados na construção do trecho oeste do Rodoanel Mario Covas – rodovia perimetral que circunda a Região Metropolitana de São Paulo. No trecho oeste está o denominado circuito caipira, onde se encontram construções e artefatos que mostram parte da história da colonização.
A contrapartida oferecida pela Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S.A.), gestora da obra ainda não concluída, também contempla o restauro de sítios arqueológicos e a futura construção de um museu de arqueologia em Carapicuíba para abrigar os achados do Rodoanel.
A seguir, Haroldo Gallo nos oferece uma visão do conteúdo de "Patrimônio: atualizando o debate".
Jornal da Unicamp – Qual é a peculiaridade do livro?
Haroldo Gallo – Embora muito se publique atualmente no Brasil sobre patrimônio cultural, este livro não se enquadra no circuito editorial convencional. Ele nasceu de uma ação concreta de salvaguarda do patrimônio cultural. Tive a idéia do livro durante minha gestão no Iphan – instituição do governo federal pioneira desde 1937 na preservação cultural no Brasil.
JU – Como se obteve a “compensação ambiental” por parte da Dersa?
Gallo – Parte da compensação ambiental oriunda do trecho oeste do Rodoanel foi reorientada para esta publicação valorizadora e incentivadora da salvaguarda do patrimônio cultural. Coube à Dersa este ajustamento de conduta por inadequação de procedimentos relativos à arqueologia. Nessa ação, a Regional do Iphan contou com a decisiva parceria do Ministério Público Federal.
Rendo tributo aos primeiros agentes dessa publicação, a arquiteta Marise Campos de Souza e o arqueólogo Rossano Lopes Bastos, seus co-organizadores, e à doutora Ana Cristina Bandeira Lins, promotora pública federal que soube estabelecer parceria, valorizou a ação dos órgãos preservacionistas e efetivamente criou as condições materiais para a publicação.
JU – Qual era seu propósito com esta publicação?
Gallo – Pretendi ampliar o acesso público à discussão do atual estado da conceituação e problemática da preservação patrimonial, nesse momento em que a questão ganha novos e amplos horizontes sociais. Parti de dentro do aparato do Estado, ou seja, envolvendo aqueles que militam nos órgãos preservacionistas – diretores, conselheiros ou técnicos que estabelecem diretrizes, normas e políticas públicas de salvaguarda do patrimônio.
O conhecimento público dessa questão é fundamental para a ampliação da percepção e da aceitação social dos cuidados e procedimentos para a preservação. Tornar os procedimentos transparentes e acessíveis é, em última instância, reforçar o aprimoramento do estado democrático de direito.
JU – Como se deram o convite aos colaboradores e a escolha dos temas do livro?
Gallo – Como a questão se originou em ação de âmbito regional, o Rodoanel, envolvemos pessoas que atuam na preservação patrimonial de valor nacional do Estado de São Paulo. Dispúnhamos desde o início de um denso material sobre arqueologia, posteriormente completado com os ensaios, que abordam temas como gestão patrimonial, arqueologia pública, programa arqueológico do Rodoanel, arqueologia preventiva, a volta de arqueólogos à metrópole e proteção jurídica ao patrimônio.
JU – O senhor já havia deixado a Superintendência Regional quando o livro foi publicado. Como a obra foi viabilizada?
Gallo – O arquiteto Victor Hugo Mori, que na minha gestão estava à frente da Divisão Técnica do Iphan, também é co-organizador do livro e atualmente ocupa a superintendência da 9SR [sigla da Regional de São Paulo]. Embora os textos estivessem praticamente concluídos quando da minha saída, foi ele que enfrentou a árdua tarefa de tornar o livro realidade, contribuindo também com o seu acervo de fotografias. Resgatando memórias, elegemos dois importantes e inéditos trabalhos do saudoso arquiteto Antonio Luiz Dias Andrade (Janjão), ex-superintendente da 9SR, além de alguns de seus primorosos desenhos, verdadeira forma de investigação e produção de conhecimento.
JU – O livro conta com outros grandes nomes, a exemplo do arquiteto Carlos Lemos, que por sua vez aponta o ensaio de Ulpiano Meneses como carro-chefe do livro.
Gallo – Na verdade, a primazia da publicação coube ao segmento conceitual das políticas e critérios de salvaguarda e restauração de bens culturais, sobretudo arquitetônicos. Foi a partir da visão crítica do professor Carlos Alberto Cerqueira Lemos, e de sua apresentação do livro, que veio o título Patrimônio: atualizando o debate. Mas o carro-chefe conceitual, sem dúvida, é o ensaio do professor Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, historiador, antropólogo e arqueólogo renomado, cuja intensa atuação por décadas no Condephaat (órgão estadual de preservação) e no Conselho do Iphan, afasta o risco do excessivo enfoque intelectual e acadêmico. Seus pontos de vista decorrem do enfrentamento de problemas concretos, emergenciais e atuais, vivenciados nessa verdadeira arena de conflitos de interesses sociais que é a prática da preservação.
JU – O professor Ulpiano aborda a cidade como bem cultural. Pode explicar melhor esse conceito?
Gallo – O professor toma o conjunto da cidade como eixo de articulação dos conflitos entre a preservação e a ordenação urbana, colocando-o em primeiro plano, como bem maior a proteger. Supera assim a abordagem comum da cidade como somatória de bens culturais excepcionais. O ensaio aborda questões de forte impacto contemporâneo, identifica a ampliação dos conceitos e do objeto da preservação e sua diversificação e complexização, ao mesmo tempo em que resgata alguns de seus fundamentos históricos, sempre permitindo identificar nossa especificidade cultural.
O professor Ulpiano não se ateve, como ainda muito se faz, à aplicação mecânica de conceitos exógenos, historicamente superados e, no mais das vezes, inadequados ao nosso contexto e realidade. Sua abordagem é perpassada pelo atual embate entre preservação patrimonial e ordenação urbana, permitindo aproximações para futuros enfrentamentos.
Soma-se a esse instigante ensaio, a contribuição de debatedores não menos renomados como os professores Antonio Augusto Arantes Neto, Edgard de Assis Carvalho, José Guilherme Cantor Magnani e Paulo Ormindo de Azevedo, que trazem outras luzes a essa temática, por natureza de difícil consenso.
JU – Carlos Lemos afirma que o lançamento deste livro é uma oportunidade rara, pois as editoras consideram o tema de pouco interesse para o público em geral. Como tem sido a repercussão?
Gallo – O livro é uma tentativa de começar a abrir aos cidadãos a verdadeira caixa-preta dos órgãos de preservação, especialmente ao divulgar a visão dos agentes do Estado. O paradoxo, contudo, é que ele próprio tornou-se uma caixa-preta, devido ao acesso restrito. Sua distribuição ateve-se à esfera das instituições patrimoniais no país e no exterior. Seu principal objetivo editorial, que é atingir um público mais amplo e cidadão, continua não resolvido. Daí a importância dessa reportagem.
JU – E o que se pode fazer para que a obra chegue ao público?
Gallo – O livro foi produzido dentro dos padrões de texto e imagem da consagrada Revista do Patrimônio do Iphan. Basta disponibilizar uma nova tiragem para compra, nos moldes da revista, fato que não oneraria os cofres públicos e reverteria para a sociedade uma importante e oportuna referência sobre a preservação patrimonial
Autores e temas - apresentação
Carlos Alberto Cerqueira Lemos
O Iphan e o sofá de Mário de Andrade
Victor Hugo Mori
Aldeia de Carapicuíba
Antonio Luiz Dias de Andrade
A cidade como bem cultural – Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
Sob o signo do Aleijadinho – Blaise Cendrars precursor do Patrimônio Histórico
Carlos Augusto Machado Calil
Arqueologia, arquitetura e cidade: a preservação entre a identidade e a autenticidade
Haroldo Gallo
Arqueologia e Restauração: anotações para debate
Victor Hugo Mori
Uma visão da abrangência da gestão patrimonial
Marise Campos de Souza
A arqueologia pública no Brasil: novos tempos
Rossano Lopes Bastos
O programa arqueológico do Rodoanel Metropolitano de São Paulo, trecho oeste: ciência, preservação e sustentabilidade social
Erika Marion Robrahn-González
Reflexões acerca da arqueologia preventiva
José Luiz de Morais
Arqueólogos de volta à metrópole
Paulo Eduardo Zanettini
Da proteção jurídica ao Patrimônio Cultural Arqueológico
José Eduardo Ramos Rodrigues
(Por Luiz Sugimoto, Jornal da Unicamp, 28/12/2007)